A herança esquecida – O Mercado

Anteriormente…

Júlio foi crescendo e às vezes podia ver pessoas felizes mas que não eram circulões. As visitas ao mercado – lugar decadente em que pessoas com linguajar deselegante e formas variadas sorriam de tudo, de todos e de si mesmos quase que o tempo inteiro – o colocavam em contato com uma coisa diferente que os outros circulões insistiam em chamar de “irrealidade externa”.

À falta de melhor palavra, Júlio acabou chamando essa coisa de “alegria”. Era um neologismo engraçado aos ouvidos dele já que se parecia com a palavra “alergia” que era isso que ele achava os circulões mais velhos sentiam nas suas idas ao mercado. Ao final de contas, que outra coisa a não ser uma alergia explicaria o rito de purificação e lavagem no reingresso ao grande círculo simulado voltando do mercado.

Com o decorrer do tempo, Júlio foi tomado de certas perguntas sobre a “alegria”. Haviam algumas coisas que não encaixavam. Ele conseguia, com certeza, entender como rir do outro. Ou seja, todo o mecanismo doutrinador básico dos circulões passava pelo fato de rir das ideias alheias. Aliás, se possível fosse, queriam mesmo era morder a carne do suposto proprietário da ideia diferente. A ironia era reservada para o círculo particular. Era a forma em que os pais tinham de castrar os circulões menores no intuito de que fossem aceitos no grande círculo simulado. Já o sarcasmo era a forma em que publicamente um circulão dissidente era exposto ao ridículo no grande círculo simulado. Não estranhava então o final que teve Salvador já que as ideias deles e a proposta que essas ideias levantavam contradizia o orgulho público número um que era pensar de forma circular.

Ele conhecia muito bem o efeito que a vergonha disparada pelo sarcasmo produzia num circulão; em especial aqueles menores. Um circulão menor não aprendeu ainda que pensar é perigoso e que – caso alguma ideia vaze para fora do círculo íntimo – esta não pode de forma alguma chegar aos outros círculos. Só que o Júlio em suas idas ao mercado, via que a risa do outro era bem recebida pelo outro. Ele não conseguia entender como isso era possível mas o deixou de canto por um tempo essa incompreensão, observando e – secretamente – fazendo certas anotações mentais sobre o lance.

Passou a concentrar-se sobre rir de si mesmo. Os circulões não erravam, logo, não havia lugar para rir de seus próprios erros e muito menos de si mesmo. Júlio concluiu rapidamente que o “não errar” dos circulões estava fortemente vinculado ao fato de eles não tentarem nada novo e também ao fato de terem sido disciplinados desde pequenos a descartar ideias não circulares. Isso lhe resultou estranho. Por isso decidiu esperar até ter mais informação o que viria, certamente, com mais visitas ao mercado.

Sobre Esteban D. Dortta

Esteban é um pastor evangélico. Estudou teologia no Seminário Teológico Batista do Uruguai entre 1991 e 1994. Nascido em 1971, vive no Brasil desde 1995. Entende que a liberdade de pensamento, expressão e reunião são essenciais para o desenvolvimento não apenas cristão, mas de toda a sociedade.