Homem cria homem

Somos seres gregários e como tais enfrentamos vários desafios juntos. Concordamos por exemplo que é importante termos as contas em dia, tratar bem o próximo, termos uma alimentação saudável e aparentar -pelo menos isso- estar bem resolvidos. Provamos então que o nosso pequeno quintal nada mais é do que uma reprodução do universo humano e que as coisas que nos acontecem não nos acontecem só no foro privado, mas nos acontecem também gregariamente.

Todavia, uma coisa na qual gostamos de aparentemente nos diferenciar é na criação dos filhos. Na realidade, parece que é ali que discordamos de tudo e de todos. Queremos fazer nossa própria linha, ao final das contas, o nosso rebento nada mais é do que uma extensão de nós mesmos e -em certo sentido- uma perpetuação ou “eternificação” do que somos. Nos tornamos egoicos, autosuficientes e virtualmente intocáveis para aquilo para o que justamente o conselho alheio deveria servir mais: perpetuar a espécie uma cria de cada vez.

Dependendo de em que ocasião histórica tenha nascido e em que canto do planeta, sua visão será mais ou menos sofisticada, mais ou menos sócio-dependente, mais ou menos espiritualizada. Os termos que usamos para falar da educação ou criação dos filhos nos delatam. Por exemplo, são comuns as palavras como ‘investir’, ou ‘construir’ em sociedades mais industrializadas, ao passo que ‘deixar’, ‘liberar’ etc se manifestam mais em sociedades menos exigentes.

Porém -e voltando um pouco à ideia de seres gregários- podemos identificar algumas linhas gerais, algumas abstrações universais que podem nortear esta peça teatral sem ensaio que é a vida. 1) O que é realmente importante para você? 2) Quais parte do seu caráter você acredita firmemente que gostaria de serem vistas no seu rebento quando se torne adulto? 3) Se você tivesse certeza que sua vida acabaria hoje à noite, o que deveria ter feito ontem e por que não o fez?

Já volto sobre esses pontos, deixe eles de molho um pouco. Enquanto isso, permita-me filosofar um pouco. Aceitamos como terreno comum o fato de que se é mais feliz quanto mais liberdade financeira se tem, e se obtêm essa liberdade por meio de profissões em que se ganhe muito fazendo pouco. Ao mesmo tempo, e porque não sabemos qual caminho a criança vai escolher, nos vemos obrigados a disponibilizar para ele aulas de judô, muay-thai, artes, inglês, espanhol, japonês, religião (alguma, uma ao menos), informática básica, culinária, etc. Em um escambo descabido, prendemos então nossos filhos agora e os deformamos o suficiente para que quando lhes chegue a oportunidade de exercer a liberdade, se prendam a dívidas infinitas para fazer a mesma massacre com nossos netos perpetuando uma sociedade cada vez mais fria, mecânica e ataráxica.

Temos sido enganados. A liberdade como absoluto não existe. É quimera. Mas mesmo sabendo, sentindo, apalpando isso, corremos atrás do vento e ensinamos aos nossos descendentes a fazerem a mesma coisa. Por isso pergunto: o que é realmente importante para você pai? Quais elemento do seu caráter são para serem perpetuados? Quais precisam ser abandonados?

Entenda-me bem, aquilo que você realmente acha importante vai vazar por outros cantos que não são a sua boca. No final das contas, o que realmente é importante para você vai chegar para seus filhos na forma de atitudes concretas bem palatáveis que a cria vai entender pelos sentidos e não pela educação formal. O que quero frisar, é que se você pode clarificar sua cabeça sobre o que é realmente importante, correrá menos risco de cair no buraco de pretender ser uma coisa que não é, levando seus filhos a um auto-desprezo por não conseguirem atingir um alvo imaginário e impossível que você mesmo não alcança ou se alcançou, não é seu platô de felicidade.

É o pai que define o filho. Com isso não estou defendendo a velha ideia de que o pai decide cada passo que o filho dá, a profissão, a esposa, etc. Mas me levanto contra essa crendice popular que tem ganho nossos corações de que existe a liberdade absoluta e nossos filhos devem correr atrás dela. Ao dizer que o pai define o filho, o termo em inglês que me vem à cabeça é shape. Ou seja, dar forma, imagem, etc. O que me parece, é que com a pregação na liberdade utópica como realizável numa geração, cria uma carga emocional pesada demais na vida de quem deveria estar livre, leve e solto para curtir a vida, porque é na curtição que o lúdico transcende e ensina de per-si.

Então, deixe esboçar alguns exemplos de como você define (shape) a vida do seu filho: Quando ele é pequeno você troca as fraldas dele, alisa a cabeça dele, lhe diz que o ama. Passa o tempo, ele segura seus braços para andar. Os medos passam, porque o pai acolhe e firmemente segura as mãos do guri. Depois chega o tempo de usar o pinico, lá está você para ajuda-lo. Mais adiante, ele começa ir à escola, você o leva e o traz, ou o espera, ou se encontra com ele, mas pergunta: “Como foi hoje?” “Como foi com seus colegas?” “Do que você brincou meu filho?” E seus olhos olham os seus e você se comunica. Ele se aproxima da puberdade e você fala das coisas da vida. Aquelas que lhe farão falta para ser feliz.

Você lhe ensina a cozinhar, anda com ele de vez em quando, ouve o que ele tem a dizer, ao final de contas, você também gosta de ser ouvido. Chega o tempo das primeiras namoradas. Você acaba concordando com ele que a escola é um saco. Que a grade curricular é exatamente isso, uma grade e o delegado de ensino, bom, é delegado oras, mas as regras do jogo são essas. Você o acompanha, o anima. Vê as asas irem brotando. A testosterona começa a falar mais alto. Ai você o lembra que é natural, que é normal isso tudo ai, assim como foi o aprendizado com o uso do esfincter, agora tem que lidar com a normalidade do desenvolvimento e seus medos. Vai se aproximando o tempo de decidir o que vai “fazer da vida” de fato.

Ele pede água. Está assustado. Você o recolhe, deixa ele descansar, pois você sabe que a vida moderna é uma pedra de moer carne humana. Ele se define por um curso técnico, nada a ver com o PhD em astrofísica que você tinha sonhado ontem para ele. Saem juntos como tem feito na última década em todo segundo sábado do mês só para se curtirem e ele estar com um homem de verdade e saber como este se conduz com os amigos, a profissão, as outras mulheres. Ele se decide. Tem medo. Antes era o andar ereto, agora é usar as asas. Você continua ai. Ele acaba se mudando de cidade, te liga, você fala uns minutos com ele que são caríssimos, mas não há problema, anos de prosa, sustentam um papo rápido.

Ele volta. Barbado, sorridente. Feliz. Você o abraça, sente o coração dele batendo perto do seu. Não há nada neste mundo que se pareça com isso para um homem. O coração do filho batendo junto, perto, parece que no mesmo peito. Ele se vai com os amigos. Vão de passeio para um morro. Coisa de macho. Passam uns dias, te ligam que ele caiu de um penhasco, se machucou, o resgate demorou e ele não resistiu. Chega o caixão. Você o toca. Não há mais olho no olho, nem coração batendo, só resta a satisfação de ter cumprido com seu papel de homem: formar outro homem.

O que é realmente importante para educar um filho: seu tempo.

Sobre Esteban D. Dortta

Esteban é um pastor evangélico. Estudou teologia no Seminário Teológico Batista do Uruguai entre 1991 e 1994. Nascido em 1971, vive no Brasil desde 1995. Entende que a liberdade de pensamento, expressão e reunião são essenciais para o desenvolvimento não apenas cristão, mas de toda a sociedade.