A herança esquecida – O caminho ao mercado

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Na medida em que Júlio ia crescendo, suas responsabilidades iam aumentando. Isso implicava em sair mais vezes da sua pequena aldeia circular e ir até o mercado. Era toda uma aventura. Só o fato de que o caminho até lá era uma longa e imperceptível curva lhe fazia pensar que os circulões mais antigos sempre enfatizavam: “o caminho até o mercado pode ser transitado por se tratar de um pedaço de um círculo muito grande. Nós é que – por sermos infimamente pequenos – o percebemos como uma reta“.

Júlio ficava encanado e encantado. Se isso era verdade, eles e apenas eles – os circulões – estavam no caminho certo. Claramente deveria ser assim já que se até o caminho ao mercado fazia parte de um grande círculo, logo, a origem de tudo deveria ser um circulo, um circulão ou alguma coisa assim. Não podia ser de outro modo, já que os pais deles eram circulões, os avós, os bisavós, todo mundo era um circulão e quem não era, acabava sendo excretado de uma forma ou de outra. “Uma aberração perturbadora” – como diziam os mais velhos – que precisava ser “purificada” vivendo fora da aldeia. Só que Júlio – por mais encantado que estava com a ideia – não conseguia desencanar. Havia alguma coisa que não se encaixava nesses ares de perfeição circular.

No caminho haviam coisas que Júlio admirava. Era um caminho longo que levava em média dois a três dias para ser realizado. Pelo menos na ida porque na volta a coisa era bem complicada pois tinha que voltar com as compras e o único jeito era empurrar, puxar, arrastar em pequenos grupos sobre tábuas ovais (pois não passavam de círculos deformados e formas imperfeitas podiam ser usadas mas não interiorizadas). Certa vez lhe contaram a história de um circulão jovem que quis colocar quatro círculos ao lado das tábuas ovais de transporte só que em pé vinculados por um eixo dois a dois. Demorou mais tempo em explicar o que ele pretendia do que em ser excretado. Enquanto era colocado para fora da aldeia ele esperneava, falava qualquer coisa ao respeito de que ele estava seguindo as ideias de Salvador; que era bom buscar formas de viver melhor; que era uma bênção usar essas tais de “rodas” como ele chamava os círculos na vertical. Coitado. Um verdadeiro perigo.

Bom, mas voltando ao caminho, nesse trajeto de ida (que era pelas razões que lhes contava mais leve e rápido que o de volta) Júlio se maravilhava com várias coisas. Uma das coisas que ele achava boa era que na primeira metade do caminho – onde ainda era plano e não havia nem barranco nem despenhadeiro – outros caminhos se juntavam ao maior. Era desses caminhos que triangulões, quadradões e outros iam se somando ao trajeto. Nesses percursos, Júlio – de alma inquieta e explorador por natureza – havia aprendido algumas palavras em vários dos dialetos falados pelos povos e até hexagonés, a língua do povo de igual forma.

Saindo da parte lisa do trajeto – se bem que o caminho até o mercado era liso já que todos esses povos não poderiam chegar até o mercado se o caminho fosse de qualquer outro jeito – ao lado do caminho haviam partes não planas a um lado e ao outro. Por vezes de um lado havia uma elevação com uma coloração verde em sua grande maioria. Por vezes do outro lado havia uma depressão, um vale, com a coloração verde também mas salpicada de outras como marrom, verde mais escuro, branco, amarelo, enfim, a lista era enorme.

Muitas vezes era ali que eles paravam para fazer a refeição. Três coisas faziam com que todos eles se unissem quase que em um mesmo pensar: a diferença de altura entre um lado e o outro do caminho, as cores que podiam ser vislumbradas e que mudavam conforme o horário em que chegavam no ponto e o vento. Ah o vento. Não havia nada parecido com o vento nas suas aldeias. Ele parecia preenche-lo tudo e todos. Às vezes forte, outras vezes quase imperceptível mas sempre presente trazendo cheiros e aromas que causava neles uma atitude quase solene de fechar os olhos e respirar fundo como querendo hospedar nos seus pulmões toda aquela beleza sensorial.

Tipicamente ficavam em silêncio no inicio. Apenas ouvindo o vento. Apreciando a música que só ele sabia tocar. Aos poucos esses minutos iam ficando para atrás dando lugar a uma sadia folia com o correspondente intercâmbio de abraços, presentes, desejos de boa caminhada, atualização das noticias. Ao final das contas, viam-se apenas uma vez por ano. Obvio que se os circulões mais antigos vissem uma coisa dessas iriam deserdar os mais novos. E pelo que contavam nesses encontros, não era muito diferente com os outros, apenas os hexagonões eram dados a aceitarem outros povos mas eles também eram dados a darem risada de si mesmos, então não eram padrão.

Mais para frente essa confraternização e confiança mútua era necessária para atravessarem a ponte. Então eles sabia, que não era errado gastar um tempo se interessando pelo outro já que precisariam um do outro ao enfrentar os fortes ventos sobre a longa ponte que atravessava sobre um grande cânion no fundo do qual um rio tempestuoso corria livre e desimpedido.

Continuará…

Sobre Esteban D. Dortta

Esteban é um pastor evangélico. Estudou teologia no Seminário Teológico Batista do Uruguai entre 1991 e 1994. Nascido em 1971, vive no Brasil desde 1995. Entende que a liberdade de pensamento, expressão e reunião são essenciais para o desenvolvimento não apenas cristão, mas de toda a sociedade.