A paternidade e a pátria

Parece que não faz muito tempo que escolhi ser pai, mas se me ponho a fazer as contas lá se vão 29 anos. Quem quiser uma versão mais leve destas mesmas ideias, dê uma olhada neste outro artigo. A decisão de ser pai é anterior ao chamado ao pastorado e é concomitante com a escolha profissional; deu-se em circunstâncias de plena admiração pelo meu velho.  Lembro que naqueles dias pediram para levar uma foto da personagem que mais admirávamos e, então, levei uma foto 3×4 de meu progenitor. A nossa relação (marcada por um profundo e perpetuo silêncio desde que eu tinha lá meus 8 ou 9 anos), sempre foi no sentido em que eu entendia meu velho, mas sentia como que o contrário não era sempre igual. Faz uns dias liguei para ele por conta do dia do amigo.  Isso porque no âmago da minha definição de gente está a figura do meu pai-amigo, segurando a mão quando eu era um pivete. As minhas primeiras lembranças são com ele. Todas e cada uma das cicatrizes que levo foram feitas estando com ele e de nenhuma delas me arrependo.  As coisas que sei e as que imagino da escritura tem como referencial meu velho que -ao final das contas- soube nos passar bem a teoria da coisa. Todavia, ver as ambiguidades que nele havia, me levaram a tomar a decisão de ser pai. Ou seja, de ser um outro tipo de pai na realidade.  Acessível, compreensivo, presente, interessado, ouvinte, firme, acolhedor.  Me lembro exatamente onde e como estava naquela noite, assim como  o frio invernal uruguaio  batendo no meu rosto. Me lembro da primeira namorada. Ele me apoiou, me bancou, me deixou livre, mas não me aconselhou, não me levou para conversar. Uma única vez me falou sobre o relacionamento marido mulher e falou assim: “quando um homem assume um compromisso com uma mulher, tem que levar esse compromisso até o fim“.  Isso causou um vácuo em mim porque queria dizer -naquela época- que eu não mais podia errar, não podia sequer tentar conhecer uma mulher.  Então decidi beber desse poço de imensa sabedoria ao meu ver, e desse ponto em diante não mais namoraria até que fosse para casar. Casei. Tentei ser e fazer a mulher feliz; tivemos uma filha maravilhosa e um que partiu antes de ver este mundo. Mas esta relação não chegou ao bom termo almejado no inicio. Eu estava, de todo coração, tentando ser um bom filho. Mas nessa relação de paternidade/amizade havia faltado o mais relevante: o diálogo. Hoje eu entendo meu pai. Eu sei que ele não estava falando para mim ou de mim.  Estava falando dele mesmo e de sua frustração particular. Seu poço silencioso e solitário se tornara insuspeitavelmente estreito e, do alto (ou do fundo) da sua meia-idade, observava como se esvaiam os últimos anseios de felicidade elaborados durante a juventude. O mais difícil e perfurante no processo de queda, separação, solidão, divorcio, não foram as noites sem dormir nem a falta de apetite. Não foi também o sentimento de culpa nem os olhares fulminantes dos que tinham formado um ideal além da minha capacidade e, agora, não tinham outra opção a não ser mudar de lado na rua quando me viam andando. O que mais doía era não poder estar com minha filha no final do dia. Abraça-la, faze-la dormir, aconchega-la nas noites de chuva, assistirmos um bom filme juntos, ou andar de mãos dadas. Isso até hoje me faz falta, pois, de ser o homem que transmitia segurança, passei a ser o traidor dos sonhos infantis de uma menina inocente. Continuei então a trabalhar com o que tinha sobejado: acessibilidade, compreensão, diálogo, presença sempre que possível e graça, muita graça. Me expus ao ridículo e à critica pública por passar tempo demais na casa da ex porque era ali que minha filha estava; mas era o preço a ser pago para -de alguma forma- suprir o que eu mesmo tinha tirado. A ninguém, mais do que a mim mesmo, chamo como responsável pelo que aconteceu. E com isto também não assumo culpas que não me pertencem, mas como homem-adulto-cristão, eu mesmo respondo pela minha conduta. Vieram mais dois filhos com a atual esposa. Um já pronto e outro por fazer. Enquanto ando nesta vida, tento com os três, ser o pai que me propus há 29 anos.  Não do cume de uma suposta perfeição imarcescível e inatingível, mas de um simples homem que se reconhece pecador, falho e principalmente carente da graça divina. Aos que já são avós, esqueçam o que para atrás fica. Seja o melhor vó/vô possível. No fim das contas, somos a única espécie que tem chances de ver os filhos dos netos crescerem. Aos que são pais, esqueçam o que para atrás fica. Enquanto seus filhos estão em idade de estar perto de você, esteja você perto deles. Converse, dialogue, ouça, olhe, conheça, espere, mime, anime, exija, alente, motive, se exponha. Aos que ainda não são pais, esqueçam o que para atrás fica. Observe seu velho, veja como ele vive, fique com a melhor parte do bolo. Você pode escolher só reproduzir aquilo que seu pai faz de bem. Seu pai não está por perto? Não se preocupe. A imagem de “pai” está bem guardada no seu inconsciente, o arquétipo do que é um pai e de como deve comportar-se estão lá.  Seja então aquilo que você mesmo não teve para seus filhos que ainda estão por vir. E finalmente, não perca de vista que -como diz o tango- “vinte anos é nada“; ou seja, o tempo passa muito rápido.  Relaxe, curta o fato de ocupar a função mais gritantemente necessária na época que vivemos: Ser pai. Não se acanhe. Não morgue. Não adie. Não envileça. Não tema. Não retroceda. Não suma. Não desanime. Não se envergonhe. Viva, curta, desfrute, ame, compartilhe. E seja pai onde lhe tocar ser pai e do melhor jeito porque ali onde você é pai, fique tranquilo que ali e só ali, será sua pátria.

Uber pater sum, ibi pátria (Aurora, Friedrich Nietzche)

Sobre Esteban D. Dortta

Esteban é um pastor evangélico. Estudou teologia no Seminário Teológico Batista do Uruguai entre 1991 e 1994. Nascido em 1971, vive no Brasil desde 1995. Entende que a liberdade de pensamento, expressão e reunião são essenciais para o desenvolvimento não apenas cristão, mas de toda a sociedade.