A herança esquecida – Júlio

Anteriormente…

Júlio não era de todo circular. Suas ideias iam e vinham. Algumas eram ideias estranhas. Bom, ao menos não eram circulares. Para falar a verdade, Júlio era mesmo meio amassado. Ele não girava muito bem. Até o círculo particular se incomodava com o jeito em que ele girava. No círculo simulado ele não se encaixava e vira e mexe falava de coisas que só podiam ter vindo do círculo externo irreal. Para que o leitor me entenda melhor, mais do que girar em círculos, o Júlio rodopiava alternando a volúpia rodo ativa com certo degringolamento na própria rota: Um louco solto.

Uma das coisas mais perigosas que Júlio falava era que o último círculo estava mal etiquetado. Ele dizia que o último círculo não podia levar nunca a palavra irreal na etiqueta. Apenas círculo externo seria suficiente. Apenas pensar nesta ideia fazia os circulões (assim eram chamados os membros deste povo), como dizia, apenas pensar nesta ideia fazia os circulões mais velhos estremecerem na base. Como o leitor pode imaginar, uma estremecida neste povo não era o mais desejável já que um círculo poderia bater no outro, fazendo-o estremecer-se e podendo desencadear uma reação em cadeia.

Da última vez que isso tinha acontecido o desmoronamento, o tombo, a sensação de insegurança tinham invadido o povo ao ponto que – não podendo mais rejeitar as ideias – tiveram que se desfazer do circulão ousado. Como era que se chamava? Era um nome com ésse. Sofos? Saliente? Solidão? Salvador? É isso ai! O circulão aloprado chamava Salvador.

Salvador tinha a mania de mostrar que círculos, por mais enormes e velhos que fossem, nunca seriam linhas retas. Ele insistia que haviam outras formas igualmente válidas de construir um povo; triângulos, quadrados, pentágonos, etc. O problema estava com o caminho. Segundo Salvador, o essencial era reconhecer que o andar não podia estar limitado à reprodução da própria forma do povo. Ou seja, ele dizia que haviam outros povos no círculo externo irreal que alias, ele -que nem Júlio- insistia em tirar a palavra irreal da etiqueta. Estes povos tinham as formas mais variadas mas todas elas, assim como os circulões, insistiam em que o caminho a ser seguido tinha a própria forma do membro individual do povo apenas mudando em tamanho e – por consequência – em historicidade. Quando mais velho e maior, tanto melhor e seguro o caminho a ser seguido; isso contanto a forma fosse idêntica à do povo que o transitasse.

Salvador insistia em que a forma que o caminho assumia e o tempo transitado não eram um atestado de que o próprio caminho era certo. Por outro lado, estas coisas não tinham como competir com a relevância do destino a ser atingido nem muito menos com a aventura das descobertas que o próprio caminho poderia vir a oferecer.

O orgulho com que os circulões se gabavam de quão seguro era seu próprio caminho, quão elegante e suave era se comparado ao dos triangulões ou dos quadradões via-se gravemente ameaçado pelo sorriso meigo e simples de Salvador que – na sua aparente loucura – conseguia enxergar vida além do círculo externo irreal.

As pessoas que o ouviam falar, o faziam por meio do círculo simulado. Este era meio como que uma última linha de defesa para a pseudo realidade particular e a quase realidade interior. No círculo simulado, a realidade era antagônica à aceitação. As ideias eram expostas sempre e quando fossem circulares. Maiores, menores; com traços largos ou finos; mas circulares. Os mais ousados traziam ideias ovais que não passavam de círculos deformados. Passado o choque inicial, a ideia passava a ser considerada pois não se tratava de nada mais do que um círculo sob forte pressão ou qualquer eufemismo do tipo.

Salvador vinha e falava de triângulos, quadrados, hexágonos e outros polígonos como se eles também fossem formas válidas de vida. Mostrava aos circulões que tanto fossem triangulões, quadradões, ou circulões, o importante mesmo era escolher um outro caminho que não era a mesmice de sempre. Porém a coisa realmente pegava quando ele abandonava os polígonos e passava a falar dos poliedros. Onde já se viu ter três dimensões? Volume? É claro que ele fazia isso não apenas para chacoalhar as ideias dentro do círculo íntimo de cada circulão o que já de por si constituiria um objetivo bastante ousado. O propósito dele era mostrar que o importante era o caminho e não a forma de quem o transita.

Júlio se sentia de certa forma conectado com Salvador. Não que fossem contemporâneos. Nada disso. Havia uns dois mil anos de separação histórica. A coisa era mais profunda.
Júlio tinha nascido como qualquer outro circulão; ou seja: dois circulões complementares se uniam, mitigando as diferenças do círculo simulado e passando a constituir um novo círculo particular, abandonando – na medida do possível – os respectivos círculos particulares ao que tinham pertencido para formar um outro circulo melhor e maior na medida do possível ou pelo menos aparentar que assim era.

Bem, particularidades à parte, Júlio foi crescendo bastante bem. Aprendeu as habilidades de simular o pensamento, esconder a verdade, fugir das ideias que não fossem circulares, enfim, tudo aquilo que os mais antigos achavam essencial para o pequeno Júlio chegar com sucesso a participar do círculo simulado e evitar o mais possível o contato com o círculo externo irreal. A não ser, claro, aquelas vezes em que a necessidade o empurrasse para obter algum recurso com os triangulões ou os quadradões vizinhos.

Sobre Esteban D. Dortta

Esteban é um pastor evangélico. Estudou teologia no Seminário Teológico Batista do Uruguai entre 1991 e 1994. Nascido em 1971, vive no Brasil desde 1995. Entende que a liberdade de pensamento, expressão e reunião são essenciais para o desenvolvimento não apenas cristão, mas de toda a sociedade.