Chamados à infância do Reino: proteger, acolher e formar

Há algo profundamente errado quando uma criança deixa de brincar cedo demais. O fenômeno da “adultização” infantil não é apenas sobre roupas inapropriadas, exposição a conteúdos violentos ou pressões escolares exageradas. É sobre uma infância sequestrada pela pressa do mundo — uma pressa que transforma filhos em miniaturas de adultos ansiosos e pais em espectadores cansados diante da avalanche de telas e discursos.

Robert Raikes
Robert Raikes – Fundador da Escola Bíblica

Antes um pouco de história.

Se tomarmos em conta a Idade Média até o início da Idade Moderna (Séculos V a XVII) observamos que a infância não era vista como uma fase diferenciada da vida. Assim que saíam da primeira infância, as crianças eram tratadas como adultos em miniatura. Ou seja, usavam roupas semelhantes às dos pais, participavam do trabalho familiar (Tarefas domésticas, oficinas, campo, etc.) e a educação formal era restrita a poucos.

Com o avanço da pedagogia nos séculos XVII-XVIII, do pensamento iluminista e mais tarde de Rousseau, surge a ideia de que a criança é um ser em desenvolvimento, com necessidades próprias. A educação passa a valorizar o ritmo infantil e a infância começa a ser vista como uma etapa específica da vida.

É justamente nesse contexto que surge a primeira escola bíblica em moldes bastante parecidos com as atuais e cujo espirito faríamos bem em resgatar. Robert Raikes (o senhor na imagem anterior. Um anglicano leigo que era jornalista e filantropo) organiza a primeira Sunday School (Escola Dominical). O objetivo era educar as crianças pobres e trabalhadoras, ensinando-as a ler e escrever a partir da Bíblia. E isso acontecia aos domingos, pois as crianças passavam a semana em fábricas. Se bem era um projeto social e missionário, estava longe de ser proselitista. (Hoje temos um problema serio com isso, somos tão mesquinhos que se a pessoa não congrega, não damos ajuda. Uma vergonha)

Se avançamos para o século XIX com a sua revolução industrial, vemos que ela trouxe (a um ritmo alarmante para a época) sérias contradições. Crianças eram exploradas em fábricas e minas, mas, ao mesmo tempo, começaram os primeiros movimentos de legislação protetiva que eram contra o trabalho infantil na Inglaterra a partir de 1833. A escola pública obrigatória (final do século XIX) reforçou a separação entre infância e vida adulta.

Foi durante esse período que o movimento se espalhou rapidamente pela Inglaterra e depois pelos Estados Unidos e outras partes do mundo. Lentamente a ênfase passou de alfabetização para instrução religiosa sistemática. A primeira escola bíblica em solo tupiniquim foi realizada em 1855 em Petrópolis/RJ organizada por Sartah Kalley, missionária escocesa da Igreja Congregacional e esposa do Dr.Robert Kalley considerado um dos pioneiros do protestantismo no Brasil.

Finalmente, no século passado, se consolida a concepção moderna da infância como tempo de proteção, educação e formação. As roupas se diferenciam nitidamente, brinquedos e literatura infantil se multiplicam e convenções internacionais (como a declaração dos direitos da criança da ONU em 1959) cristalizam a infância como categoria própria

A adultização de crianças em solo tupiniquim

Vivemos num país em que, paradoxalmente, se discute tanto a proteção da infância e, ao mesmo tempo, se normaliza a exploração dela. As redes sociais transformaram crianças em produto. A publicidade lhes rouba o encanto da descoberta. O sistema educacional, muitas vezes, lhes impõe competitividade antes de tempo. E nós, famílias e igrejas, ficamos atordoados diante de um cenário onde o “deixai vir a mim os pequeninos” (Mc 10:14) parece ecoar contra nós como acusação.

A Escritura nunca romantizou a infância. Mas Jesus a ressignificou como metáfora da entrada no Reino: dependência, confiança e vulnerabilidade. A criança não é um adulto em miniatura, nem um projeto de consumo. Ela é dom de Deus, herança preciosa (Sl 127:3), chamada a florescer sob cuidado e disciplina que não provoque à ira, mas à vida (Ef 6:4).

A neo-ortodoxia de Barth e Tillich lembraria que não se trata de um problema moral isolado, mas de um sintoma da queda: nossa tendência de instrumentalizar o outro, inclusive os mais frágeis. N.T. Wright acrescentaria que a comunidade cristã é chamada a ser sinal do novo mundo de Deus, onde os pequenos não são explorados, mas acolhidos como protagonistas da fé.

Atitudes necessárias a partir do Reino

O que fazer, então? A primeira resposta não é política pública, embora ela seja necessária. É conversão comunitária: famílias que redescobrem o tempo da escuta, igrejas que não apenas “dão espaço” às crianças, mas reconhecem nelas mestres da fé. Um espaço onde brincar não é perda de tempo, mas sinal de eternidade; onde a formação não é pressão, mas cultivo paciente.

A pressa em fazer das crianças adultos cedo demais revela, no fundo, nossa incredulidade. Não confiamos no tempo de Deus, não confiamos no Reino que cresce como semente em silêncio. Transformamos filhos em fardos ou vitrines, quando deveríamos recebê-los como parábolas vivas da graça.

Se não nos arrependermos, repetiremos o ciclo: filhos cansados, famílias esvaziadas, igrejas sem infância. Mas se ousarmos, como comunidade, recuperar a infância — não apenas a das nossas crianças, mas a nossa diante de Deus — então seremos, de fato, “pequenos” no Reino. E ali, paradoxalmente, encontraremos grandeza.

Sobre Esteban D. Dortta

Esteban é um pastor evangélico. Estudou teologia no Seminário Teológico Batista do Uruguai entre 1991 e 1994. Nascido em 1971, vive no Brasil desde 1995. Entende que a liberdade de pensamento, expressão e reunião são essenciais para o desenvolvimento não apenas cristão, mas de toda a sociedade.