Fé sem garantias

Um pouco de filosofia

Søren Kierkegaard, aquele dinamarquês de nome complicado que os manuais de filosofia apelidaram de “pai do existencialismo cristão”, dizia que a fé não era um cálculo seguro. Não era um contrato com cláusulas bem assinadas. Era um salto no escuro. Um pulo diante do absurdo. O que o sustentava não era a certeza de onde cairia, mas a confiança em quem o chamava a saltar.

Mais tarde, John Caputo, já no nosso tempo, resolveu complicar ainda mais. Para ele, a fé é “fé sem fé”. E o que significa isso? Que a fé verdadeira não é uma fortaleza de pedra, mas um vaso de barro que racha, quebra, precisa ser colado de novo e de novo. É fé que não se apoia na segurança das respostas prontas, mas que sobrevive às rachaduras, ao silêncio, à incerteza. É fé que se reinventa a cada passo.

Umas brutalidades

Costumamos pensar que a dúvida mata a fé. Mas a história bíblica insiste em nos lembrar o contrário. Abraão riu do absurdo de ter um filho na velhice. Jó amaldiçoou o dia em que nasceu. Tomé exigiu colocar o dedo na ferida. Nenhum deles saiu ileso. Nenhum deles saiu “herói” no sentido romântico. Mas todos, de alguma forma, atravessaram a noite e encontraram fé do outro lado.

Essa é a brutalidade da coisa: a dúvida não é inimiga, mas parteira da fé. Ela arranca as ilusões, desmascara a confiança no automático, obriga a reinventar a caminhada. A fé que nunca duvida é como notícia de rede social: fácil de repetir, difícil de confiar. A fé que passa pela dúvida, essa sim, é real — porque não depende do verniz da certeza, mas da confiança no Deus que permanece.

Uma reflexão

Na verdade, fé e dúvida não brigam como rivais mortais. Elas se encontram, se cruzam, até dançam juntas. O pai aflito que gritou a Jesus não sabia esconder suas rachaduras: “Creio, Senhor; ajuda a minha incredulidade” (Marcos 9:24). Eis o retrato mais honesto da fé. Não triunfante, não blindada, mas ferida e ainda assim viva.

É preciso abandonar a ilusão de que fé é ausência de rachaduras. Não é. É justamente ali, na rachadura, que a luz entra.

Conclusão

Portanto, se alguém lhe disser que dúvida destrói a fé, desconfie. Diga que a fé sem dúvida é caricatura. A verdadeira é a que sangra, a que se ajoelha no escuro, a que balbucia com vergonha: “Eu creio, mas ajuda a minha incredulidade”. Essa é a fé que sobrevive porque não se apoia em si mesma, mas naquele que a chama para seguir mesmo sem garantias.

Sobre Esteban D. Dortta

Esteban é um pastor evangélico. Estudou teologia no Seminário Teológico Batista do Uruguai entre 1991 e 1994. Nascido em 1971, vive no Brasil desde 1995. Entende que a liberdade de pensamento, expressão e reunião são essenciais para o desenvolvimento não apenas cristão, mas de toda a sociedade.

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