Informe Kinsey à la Tupiniquim

Um pouco de história

Alfred Kinsey e sua equipe foram responsáveis por uma mudança profunda nas pesquisas sobre sexualidade humana.

Publicado nos Estados Unidos, o primeiro volume, “Sexual Behavior in the Human Male” (1948), e o segundo, “Sexual Behavior in the Human Female” (1953), revolucionaram a compreensão pública e acadêmica sobre o comportamento sexual.

Este estudo trouxe luz sobre a realidade (em comparação com o ideário popular) sobre assuntos tão variados como Diversidade do Comportamento Sexual, Incidência de Comportamentos Homossexuais, Masturbação e Fantasias Sexuais e Infidelidade e Relações Extraconjugais.

O Informe Kinsey foi controverso e enfrentou críticas por sua metodologia e por desafiar as normas sexuais vigentes. No entanto, também foi elogiado por sua contribuição para a compreensão científica da sexualidade.

Para chegar a tais resultados tão diferentes do que era o ideário popular, Kinsey e sua equipe lançaram mão de uma metodologia rigorosa e inovadora para a época envolvendo entrevistas detalhadas e padronizadas para coletar dados sobre o comportamento sexual de milhares de americanos como entrevistas pessoais e questionários estruturados.

Kinsey também fez um esforço consciente para incluir uma amostra diversificada de pessoas de diferentes idades, gêneros, orientações sexuais, ocupações e origens geográficas. Porém, vale ressaltar que a amostra não era totalmente representativa da população geral, o que foi uma das críticas ao estudo.

Seja como for, os entrevistadores foram rigorosamente treinados para que todas as entrevistas fossem feitas de forma consistentes e sem julgamentos visando garantir a precisão e a confiabilidade dos dados coletados.

Após a coleta a equipe tabulou esses dados e usando os melhores métodos estatísticos avançados analisaram as respostas identificando padrões e tendências no comportamento sexual. Esses dados são a base de muitos estudos e também de várias políticas publicas não apenas no grande pais do norte, mas em quase todo o mundo.

O Instituto Kinsey para Pesquisa em Sexo, Gênero e Reprodução foi fundado em 1947 pelo Alfred Kinsey na Universidade de Indiana nos Estados Unidos.


Uma reflexão

Entendo ser um ponto bastante comum dizer que o que é verdade nos Estados Unidos não necessariamente é verdade no resto do continente e muito menos no resto do mundo.

Isso bem pode ser verdade com aquelas coisas que são conseqüências das decisões culturais de cada povo ou nação, mas eu tenho a forte suspeita que até essas decisões são fruto de uma coisa mais profunda e viceral chamada natureza humana. Com isso não necessariamente me refiro a algo que seja completamente natural, mas sim adquirido na sociedade da qual a menor e mais importante representante é a própria família que absorve e promove certos valores ou o que elas acham serem os valores certos.

Logo, devo concluir que informes do tipo dirigido por Alfred Kinsey trazem à tona uma coisa que o teólogo já conhece: o ser humano é completamente depravado. Mas me aguarde antes de tirar suas conclusões tipo rede social. Isso aqui não é para passar por alto rapidinho.

Umas brutalidades

Dois fatos recentes têm exposto em nosso próprio solo a validade não apenas do informe Kinsey, mas de outros similares e da validade da Escritura em pleno século XXI assim como a necessidade de um aggiornamento nos nossos arraiais evangélicos (no excelente e bom sentido da palavra evangélico)

A pandemia de COVID-19 revelou várias coisas. Não apenas o perigoso desleixo com que vivemos a vida política pública representativa (que nada mais é do que isso, uma representação pública da nossa política mais viceral amarrada aos nossos medos e falências) mas também o quão enviesados somos assim como o quanto estamos longe, como famílias comuns, dos ideais que a própria sociedade promulga. Além dessas coisas, a pandemia também revelou o completo descalabro da igreja institucionalizada que demorou a usar os meios de comunicação eletrônicos e insistiu em aberrações sanitárias como a essencialidade do culto publico.

A outra coisa que a pandemia, ou melhor, o isolamento social decorrente da pandemia demonstrou é a incapacidade que temos de lidar com o diferente. Há várias fontes cientificas (isto é, que têm método mensurável por outras) que poderiam ser citadas, mas um bom resumo disso, vem da Anafe ao dizer:

Estudos demonstram que, durante o segundo ano de isolamento social decorrente da pandemia, o número de divórcios feitos em cartórios de notas do país subiu 26,9% de janeiro a maio só em 2021, em relação ao mesmo período de 2020. Se comparado a igual período de 2020, o crescimento foi de 36,35% em 12 meses.

https://anafe.org.br/divorcios-na-pandemia-que-dizem-os-dados/

Esses dados são seguros pois na conformação social em que vivemos, um divorcio formalizado impacta a criação dos filhos, mas – e isso é mais importante para muitos – as finanças do casal que se desmancha.

Então para além desses rompimentos formais, deveriam ser adicionados os informais.

Esta brutalidade da pandemia com todas suas conseqüências, e sendo um evento natural, expôs – como se o recuo das águas de um rio se tratasse – as pedras afiadas que estão no leito.

O que muito afligiu é que a igreja (em particular a ala evangélica em contraposição da fundamentalista) não deveria ter sido pega de surpresa. Ou seja, somos plenamente cientes não apenas da depravação humana (e com isso concordamos com o fundamentalismo) mas também temos acesso e aceitamos informes não ortodoxos como o de Kinsey que nos falam dos problemas e das agruras reais dos relacionamentos para lá dos ideais que pregamos. Voltaremos sobre isso.

As enchentes no Rio Grande do Sul (e é preciso falar em plural não apenas pelo fato ter se repetido mais de uma vez nos últimos anos, mas porque desta vez – em maio de 2024 – se repetiram várias vezes e de forma devastadora em um curto período de tempo) empurrou boa parte da população dos mais diversos estratos sociais a terem de viver e conviver de um modo diverso ao que estavam acostumados.

Se vendo nessa situação de mudança do seu habitat natural, o bicho ser humano manteve seus instintos mais viscerais funcionando em um numero que – espero – não é o total, mas o suficientemente alto como para alarmar. Tanto assim que o próprio governo do Estado do Rio Grande do Sul teve que disponibilizar abrigos separados para as mulheres e crianças numa volta rápida e obvia ao velho ditado de “mulheres e crianças primeiro”.

Nos inúmeros reportes televisados e “youtebizados” aos que assisti, um deles me chamou a atenção em que o repórter ou “youtuber” (não me peça para lembrar agora) mostrava uma rata escapando da agua da enchente. Triste representação gráfica do que acontece não apenas no RS mas no pais inteiro.

É redundante dizer o obvio: a população toda (ou pelo visto a grande maioria) sofre com o que está acontecendo no estado mais ao sul do nosso pais. Famílias inteiras mortas, mulheres e crianças sendo abusadas, casas sendo assaltadas e a infraestrutura tão necessária para a pronta recuperação quase que completamente destruída pelo poder da água.

Esse sofrimento – que já de por si seria terrível – se vê incrementado pela resposta irresponsável de alguns cidadãos. Algumas coisas me chocaram se bem que não mais deveriam porque eu sei que é fruto da mesma árvore e tenho visto esses frutos em repetidas ocasiões das mais diversas formas.

A mais simples dessas e aparentemente superficial é a disseminação de noticias mentirosas, ou fake news. Isso aliado com as teorias conspiratórias. Lia esses dias de que quem vive sozinho é mais propenso a crer e a disseminar teorias conspiratórias. Faz sentido. A noticia mentirosa – que muitas vezes surge como piada, sarcasmo ou informação parcial – encontra seu combustível nos vieses confirmatórios que todos nós temos. Ou seja, todos nós tendemos a aceitar e repetir informação que de alguma forma confirma ou reforça uma crença previa. Se bem ela encontra seu combustível na subjetividade individual, a via pela qual trafega atualmente é a das redes sociais onde um certo espirito de aparente anonimidade governa os usuários das mesmas as que – por sua vez – apenas lhe interessa o lucro sem lhe importar de forma séria e autônoma alguma forma de verificação de fatos. O remédio para isso? O mesmo que para a velha e conhecida fofoca: não repita se não sabe se é verdade. Se a “noticia” confirma alguma coisa que você acredita, desconfie. Se vem por uma rede social, desconfie mais ainda. Se vem apenas da família, tenha todas as reservas possíveis.

A outra coisa que me chocou e que acho cada vez mais repugnante é a falsa ideia propagada em nosso meio (falo do nosso por não ter autoridade para falar de outros, mas presumo que seja parecido) de que essas brutalidades como a tsunami na Indonésia ou a pandemia de COVID-19 ou as enchentes no Rio Grande do Sul são um castigo divino. Ou na sua expressão mais simples, desrespeitosa e carente de conhecimento tanto bíblico como social: “mereceram”ou “bem feito” ou “é castigo divino”

Há pessoas que não tem o mais mínimo temor ao falarem uma coisa dessas. Vamos primeiro pelo lado social. Conheço o povo gaucho. Viajei muito nos estados do Sul com meu pai. Se há algum lugar em que me sinto seguro é com os gaúchos. E não que não me sinta bem ou seguro em qualquer outro lugar já que sei dos anjos que o Senhor coloca em sua providência para cuidar-nos. Mas é que minha vivência com os gaúchos é de viceral confiança.

Lembro de que quando minha primogênita tinha alguns meses a levamos para que minha família a conhece-se. Era julho de 1996. Fomos de Corcel II movido a álcool numa viagem de 1700KM aproximadamente. Chegamos no Chuí, RS no horário limite para poder encontrar um lugar onde deixar o carro e pegar o ônibus para atravessar a fronteira até a casa dos meus pais. Não haviam serviços de internet como agora que pudéssemos ir abreviando tempo. Tinha que ser face a face. Dei uma olhada naquela noite escura e fui num posto de combustíveis que costumava ir com meu pai de pequeno. Fazia uns doze anos que não passava pela cidade. Enquanto orava, olhei para os frentistas e escolhi um. Chamavam ele de “alemão” por razões notórias. Falei “Boa noite, você mora aqui no Chuí, correto?”. Ele me respondeu “sim”. Ai afirmei “Você tem lugar onde eu deixar minha ximbica (já declarando que não morava em RS pois ximbica é carro velho em SP). Quanto me cobra para deixar ele vinte dias?”. Ele olhou assombrado para os lados atrás de mim e atrás dele e falou “Mas você me conhece?”. “Nem um pouco” – lhe disse – “mas conheço quem te conheçe”. Ele terminou de abastecer e me levou até a casa onde larguei o carro após desconectar a bateria e fui correndo para o terminal rodoviário. Quando voltei lá estava meu breguinha azul-calcinha completinho esperando por mim. Bateria conectada e duas partidas depois ele estava em marcha… a álcool e em pleno inverno gaucho.

Se alguém te diz que é merecido por causa do caráter deles, pergunta de imediato pela experiência que eles tem com tal povo. Pode ser que seja superficial, parcial, inexistente ou apenas está repetindo um ódio que recebeu de alguém. Agora, mesmo que alguns se comportem de um jeito inapropriado, é isso motivo de assegurar que é um merecimento para a população em geral?

Me é necessário atacar finalmente o problema do “castigo divino”. Não porque negue o castigo divino, mas porque nego a falta de seriedade e temor com que essa frase é dita. Há uma passagem de simples compreensão na escritura que deveria selar nossos lábios para dizer uma barbaridade dessas:

1 E, naquele mesmo tempo, estavam presentes ali alguns que lhe falavam dos galileus cujo sangue Pilatos misturara com os seus sacrifícios. 2 E, respondendo Jesus, disse-lhes: Cuidais vós que esses galileus foram mais pecadores do que todos os galileus, por terem padecido tais coisas? 3 Não, vos digo; antes, se vos não arrependerdes, todos de igual modo perecereis. 4 E aqueles dezoito sobre os quais caiu a torre de Siloé e os matou, cuidais que foram mais culpados do que todos quantos homens habitam em Jerusalém? 5 Não, vos digo; antes, se vos não arrependerdes, todos de igual modo perecereis.

Lucas 13:1-5 (ARC2009)

Esse é meu problema. No fundo da expressão “Deus os castigou” está o pensamento de que eles são piores que os outros. Não, os gaúchos são iguais aos nordestinos, aos paulistas, aos paraenses, enfim… No sentido de culpabilidade perante o juiz eterno, somos iguais.

E pensamos assim, ao respeito de tudo, governo, família, opção sexual, religião, etc… Quando acontece uma desgraça nos apressuramos a dizer “E também, com a conduta que têm, o que você esperava?. Merecido foi.” Não apenas ao respeito de uma catástrofe natural, ou do estado do Sul, de tudo e todos. Nos parecemos ao fariseu da parábola:

11O fariseu, em pé, orava em seu íntimo: ‘Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens: roubadores, corruptos, adúlteros; nem mesmo como este cobrador de impostos. 12 Jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho’.

Lucas 18:11-12 (KJA)

A patética condição humana

Foi a pandemia chegar ou as aguas subirem que se colocaram em funcionamento duas coisas: pessoas realmente interessadas em ajudar o próximo e os aproveitadores de plantão.

Sobre o primeiro grupo, não tenho nada a falar a não ser que nunca é de menos e de que – mesmo a própria tarefa sendo ingrata ou incômoda – o resultado final é muitíssimo bom e agradável. Vale a pena.

Já sobre os outros, gostaria de me distanciar dos pensamentos de segregação como se eles fossem outra coisa que não seres humanos. Precisam sim serem tratados de forma diferenciada porque seus atos (alguns deles bestiais) demonstram o quão baixo caíram e o convívio com o restante da população é impossível. Esse é um desafio constante para a sociedade mas é bem simples de resolver se aceitamos que há inocentes ou que – de fato – há pessoas mais vulneráveis que outras. O velho adagio de “mulheres e crianças primeiro” deveria ter aparecido antes nessa equação.

Agora, o que estes seres de conduta réproba colocam em claro é que a raça humana está degradada. Há os que escondem melhor que os outros. Há alguns que nunca serão tido como pessoas de baixo calão ou de alma imunda. Pelo menos não deste lado da eternidade. E há os outros que – quase como animais – mantêm suas práticas privadas em ambientes de convívio público emergencial. (Como a grande maioria faz nas redes sociais)

Em lugar de assustarmos e apontarmos o dedo, devemos de aceitar que sob a camada idealizada de uma sociedade composta por famílias que funcionam de acordo com um determinado padrão, há uma realidade obscena, suja, violenta que insiste em se manter com vida.

Não que os ideais não estejam corretos. Os ideais estão certos. Mudar os ideais por ideias mais simples é apenas baixar a barra. Diminuir o ideal apenas contribui para descobrirmos novas formas de violência talvez mais sutis e sorrateiras.

Agora, declararmos que vivemos em dissonância com o ideal proposto com a Bíblia, ajuda grandemente na resolução dessa equação. Aliás é apenas o primeiro ponto para uma possível solução. São coisas que devem ser ventiladas em nossas Escolas Bíblicas, nos nossos cultos e nos nossos estudos bíblicos nas casas. Não se trata de abandonar o ideal, se trata de reconhecer que acreditar num ideal não é de forma alguma uma garantia de que nossa construção social está em consonância com ele.

Em algum sentido o ideal bíblico é uma utopia. Ou seja, é um lugar que não existe. Uma fantasia, um devaneio, um sonho. Ou dito de outra maneira: não existem famílias perfeitas. Ficou mais fácil assim? Então, a formula fácil esconde a dificuldade. A utopia nos propõe um local para além da realidade. Ou seja, um ponto no infinito para ser o alvo pelo qual caminhar nesta vida. Alvo este que – sabemos desde o início – não será alcançado em 100%, mas o mais perto que cheguemos do alvo é melhor do que trazer o alvo para níveis mais palatáveis ou “menos utópicos”

As enchentes no Sul, assim como o informe Kinsey, nos escracha uma realidade patética da nossa sociedade que tentei expor brevemente aqui. É uma forma brutal de expor a realidade. O apelo deste pequeno escrito é a lidar com essa realidade sabendo que – assim como o informe Kinsey tem se comprovado na observação de outras sociedades distintas da estadounidense – essa mesma realidade está presente em nossa sociedade em geral e em nossa igreja em particular. Viver em negação além de não ajudar em nada a não ser piorar as coisas, é uma vergonha e perca de tempo.

Sobre Esteban D. Dortta

Esteban é um pastor evangélico. Estudou teologia no Seminário Teológico Batista do Uruguai entre 1991 e 1994. Nascido em 1971, vive no Brasil desde 1995. Entende que a liberdade de pensamento, expressão e reunião são essenciais para o desenvolvimento não apenas cristão, mas de toda a sociedade.