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Acolhida transformadora

A liberdade com o conteúdo que o seu criador quer

“COMO é possível que ele queira ser policial!?” bradou Ernesto, “Olha só o passado que ele tem”.

Ele se estava referindo ao relato que estava sendo transmitido em que uma policial rodoviária federal contava sobre a vida de alguém chamado Biel. 

Ela tinha conhecido Biel numa abordagem por roubo. Assaltante a mão armada, violento, nada na vida do Biel parecia indicar que havia um bom caráter ou alguma coisa assim que condissesse com a ideia persistente  ” quero ser policial”

Certo dia esta policial chamada Pamela encontra o Biel num carro que – obviamente – tinha sido roubado. – “Não fui eu que roubei” disse Biel  à policial. Ela cumpriu com seu dever e o levou para a delegacia para atua-lo. Não foi pouca a surpresa dela quando reparou que ele era bem conhecido naquela delegacia. O coração dela (ou como ela mesmo disse: “o coração de mãe“) se abalou. Como era possível que alguém de tão curta idade já fosse tão conhecido numa delegacia?

Sob a premissa de “alguma coisa devo fazer por ele” começou a buscar um jeito de ajudar o Biel a se endireitar. Pensou em adoção até ou quem sabe uma interdição. Entrou em contato com vários policiais de diversas guarnições que ela conhecia: civil, militar, federal, rodoviária. Falou com assistentes sociais, promotor, juiz. Ela tinha que fazer alguma coisa.

Havia uma razão muito forte para Biel viver nessa contradição existencial: ele tinha sido estuprado quando pequeno. Quem sofre este tipo de violencia podem reagir de diversas formas: ostracismo, rebeldia, ódio, pavor, e outro sem fim que fogem ao propósito desta análise. Biel tinha ficado cheio de ódio pelo momento de impotência e submissão forçada. Mesmo tendo bons desejos, mesmo sabendo qual era um bom caminho para ele, não encontrara outra forma de expressão do que esse ódio mortal numa forma de devolutiva visceral para a sociedade que não o soube cuidar.

Na busca por proteger o Biel, Pamela junto com o promotor, a assistente social e o juiz chegaram à conclusão de que uma interdição poderia ser o apropriado. Com a papelada pronta para a interdição e em mãos a policial foi à procura do Biel.

Tarde demais. Biel tinha sido morto de forma violentíssima. Tinha apenas onze anos.


A atitude da Pamela é, sem lugar a dúvidas, aquela que mais faz falta na sociedade. A sociedade que nos tocou viver, está rapidamente se degradando para o ódio e a polarização. A incompreensão do outro – em plena época da hiper comunicação assistida por computador – roda solta amparada por um falso anonimato e uma pseudo-impunidade.

A coisa mais simples e legalmente correta a ser feita seria o de deixar o Biel crescer desse jeito entrando e saindo de diversas instituições até que o próprio crime tomasse conta dele ou se tornasse civilmente adulto para responder por algum crime e, então, trancafiar ele pelo maior tempo possível.

Só que Pamela, contrariando a ditadura do ódio, vá ao encontro do desvalido. Consegue perceber atrás dessa couraça de ódio e ressentimento um menininho carente, solitário, machucado com uma ânsia louca pela vida e com bons ideais mas apavorado, em pânico.

A estas alturas, os partidários de “bandido bom é bandido morto” já devem de me estar crucificando pois “uma vez bandido, bandido para sempre”. Vão me dizer que estou vitimizando o agressor mas isso não passa de uma simplificação absurda que apenas serve para alimentar mais a roda do ódio em que vivemos.

Por outro lado, a turma do “a culpa é da sociedade” já deve estar achando que eu penso desse jeito e culpo aos pais, à sociedade, ao governo, ao estado a Deus ao diabo por tudo o que de ruim acontece com a humanidade. Não se vista tão rápido que com certeza não vai querer me acompanhar no restante da viagem.


Algumas práticas que anteriormente eram crimes, hoje já não são mais e outras estão indo caminho a deixarem de ser crimes. A sociedade (por ser em maior números que os defensores da lei e da ordem) acaba se impondo mesmo que a escolha dela não seja a melhor ou a mais adequada a longo prazo. 

Veja o caso de uso de Cannabis. O porte para uso pessoal é uma evasão à regra de que todo tráfico de entorpecentes é crime. Há uma suavização perigosa em que se deixam as famílias lutando sozinhas com tão grande flagelo. E não me estou referindo ao uso medicinal ou ao uso recreativo após 24 anos. Me refiro ao uso desenfreado em crianças de todas as idades.

Um outro caso que deixou de ser crime e vá em vias de deixar de ser chamado de pecado é o adultério. Independente das razões que possam impelir uma pessoa a pular a cerca, antes era um crime passível de morte, de cadeia, de multa e agora não é nem sequer infração. Já já vai surgir alguém falando que é uma “virtude libertadora” ou coisa assim.

Ainda conservamos um pouco de decência nos assassinatos. Mas isso é porque pode afetar a qualquer um e a qualquer hora. Não é porque queremos – como sociedade organizada – seguir algum mandamento divino ou sequer porque desejemos construir coisas boas e virtuosas. Trata-se apenas de medo. É fácil descaracterizar o aborto como crime, ou o adultério como crime, ou o uso de entorpecentes como crime pois a chance de que isso passe sob o teto do legislador é bem baixa e se acontece, não é tão grave como a morte, já que ela vem para ficar permanentemente ao passo que os outros sempre cabe a chance esdrúxulamente hipotética de desfazer o mal perpetrado.


Pamela queria acolher o pequeno criminoso. Os atos que ele praticara não se qualificam como atividades extracurriculares do ensino fundamental ou tarefa de casa da escola bíblica da igreja local. Todavia, enxergar alí outra coisa do que um microcosmos da realidade humana é de uma brutalidade e desconhecimento terríveis. 

Há em cada um de nós três necessidades básicas: Aprovação, Aceitação, Apreço. (Coloquei as três com A para facilitar a memorização). Em condições ideais, uma família (e por extensão a sociedade à que pertence) irá entregar essas três coisas para seus participantes em especial os mais novos.

É importante mencionarmos isso, porque a palavra acolhida para muitas pessoas acaba soando como se fosse sinônimo de uma das três ou das três quando se trata de outro termo que precisa ser explorado.

Se bem as três características estão amarradas, não são equivalentes nem uma substitui a outra. Por exemplo, uma filha que sempre foi aprovada por ter notas altas na escola e que é aceita devido às amizades que tem, mas que nunca recebe um sinal de apreço do pai, cresce com uma ideia bem distorcida de si e – por conseguinte – da relação com os outros, em especial os homens. É uma forma complexa de dizer para a menina: “Você serve apenas para produção. Não para ser amada”

Pamela escolheu o caminho difícil: acolher o pequeno apesar e por causa da sua vida de criminoso. A turma do “bandido bom é bandido morto” não consegue enxergar o individuo com suas mazelas. Me parece que é uma opção por medo e não por razão. Já a turma do “a culpa é da sociedade” também não consegue enxergar o individuo com suas responsabilidades. A vergonha da própria incapacidade de decidir pelo certo torna este grupo num alvo fácil do “divide e vencerás” ou de “nivelar pelo mais baixo”.

Pamela escolheu o caminho complicado da acolhida que não tem a ver com aprovação, não tem a ver com aceitação não tem a ver com apreço mas tem muito a ver com o amor sacrificial esperançoso. É uma forma bem prática de reconhecer algumas coisas: 1) Sim, a sociedade na sua forma mais básica (a familia) falhou em te proteger, Biel. 2) Sim, você tem um propósito bom, Biel. 3) Sim, do jeito que você está fazendo vai continuar a se machucar e machucar os outros, Biel. 4) Sim, a vida pode ser terrivelmente dura mas estou aqui para te ajudar, Biel.

Pamela não estava aceitando os crimes do Biel, estava aceitando o Biel.

Pamela não estava aprovando as decisões do Biel, estava aprovando os sonhos e futuras decisões do Biel.

Pamela não estava apreciando esse Biel que machucava os outros mas sim aquele que fora machucado no seu ser mais íntimo e fraco.


A acolhida cristã deve ter esses componentes em que se permita a um individuo fitar os olhos em Cristo – apesar de suas decisões e desejos errados – e o fortaleça nessa caminhada. 

A acolhida cristã estabelece um padrão elevado e responsável de conduta pessoal sem deixar de observar que “o pecado que tão fortemente nos assedia” faz um estrago tremendo na imagem do ser humano. Há um delicado equilíbrio entre o “fui tentado” e “reconheço que cedi”. Isso é assim desde o Eden e não vai mudar até a finalização do estabelecimento do Reino.

A acolhida cristã não reduz o nível da vara para facilitar a entrada do pecador empedernido. Também não alarga a porta para que o camelo possa passar com toda sua carga. A acolhida cristã transita o estreito caminho que desvia o pecador da larga estrada que ele está levando elevando o nível da sua consciência e levando-o a um patamar até então desconhecido.

A acolhida cristã não se espelha na acolhida mundana em que não se chama mais o pecado de pecado por não ter a sociedade qualquer forma de solução para dito problema. A acolhida cristã passa pelo modelo de Jesus o Messias em que – por amor a esta sua criação – se aproxima dela em forma humana bem definida e de lá resgata os seus para poder levar “cativa o cativeiro” (Ef 4:8)

Finalmente, é necessário lembrar que todo pecado nada mais é do que uma expressão dos desejos mais viscerais do indivíduo. Isso se aplica à prática do adultério, à prática do assassinato, à prática da homossexualidade, à prática do estupro, à prática do roubo, à prática do abandono da congregação mas também se aplica ao que anda no coração do indivíduo sem por isso chegar alguma vez a ser praticado e é ali onde se desmancha toda a ideia de uma acolhida para continuar a prática do pecado sem peso na consciência, pois é lá – no fundo do mais recôndito da nossa identidade – que Jesus, o Cristo quer ser Rei.  Fazer qualquer outra coisa e continuar a chamar de “cristianismo” é um deboche da fé cristã já que na fé cristã o alvo maior é a restauração do plano original e é para lá que nós vamos.

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