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Um perdão diferente

Somos uma espécie estranha. Precisamos do perdão para viver, mas não sabemos perdoar nem pedir perdão. Tenho a impressão que não queremos o perdão.

Faz uns anos atrás um colega de serviço traiu a mulher (e os filhos, obvio) Como eu já tinha passado por essa experiência, me aproximei para ver se podia – de alguma forma – ajudá-lo a reverter a situação. Grande foi minha surpresa quando em lugar de ouvir “eu já pedi perdão para minha esposa” ouvi “eu já perdoei minha esposa“. Tentei sem sucesso lhe explicar que era ao contrário. Ele não conseguia entender que quem havia errado era que devia confessar, se arrepender e ser perdoado. Mas não era que ele culpasse a esposa não. Era que ele não entendia mesmo a diferença entre “pedir perdão” e “perdoar alguém“. Na cabeça dele, ele estava fazendo corretíssimo porque ele era quem tinha errado. Óbvio que era um problema de ordem semântico, mas imagina como a mulher não entendia nada do que ele falava.

Na oração modelo, Jesus nos ensina “E perdoa nossas ofensas assim como nós perdoamos aqueles que nos têm ofendido“. Ou seja, há uma relação direta entre nossa capacidade de perdoar e a medida de perdão que temos recebido.

Um livro que minha esposa gosta muito é “Um amor que vale a pena” de Max Lucado. Há vinte anos eu me neguei a ler por pura altaneria, orgulho e ignorância. A tese do livro é simples: você só pode dar aquilo que tem. Então, se nunca você foi amado, nunca vai conseguir amar. Se nunca foi perdoado, nunca vai conseguir perdoar.

A ideia vale no sentido inverso: se alguém não ama, é porque não conhece o amor. Se alguém não perdoa, é porque não tem tido acesso ao perdão.

As características de um novo pacto

A nova aliança em Jeremias 31:27-34 não é um remendo na velha, mas um ponto de ruptura. O ciclo de erros herdados termina. Antes, os filhos arcavam com as falhas dos pais, como se o pecado fosse uma dívida automática. Agora, cada um responderá por si. Deus planta e colhe indivíduos, não mais apenas um povo como bloco monolítico. A fé não se transfere por osmose, nem a justiça se delega. A Liberdade está no centro da questão.

Isso muda tudo. Não há mais desculpa. “Ah, fui criado assim”, “me ensinaram assim”, “meu avô era assim”. Jeremias anula a terceirização da culpa. Cada geração recebe uma folha em branco para escrever sua história com Deus. Cada um decide se será escravo do passado ou agente de uma nova realidade. A aliança agora se inscreve no coração. Se está dentro, não há para onde correr. Ou se assume ou se rejeita.

Na teoria da recapitulação (Irineu de Lyon, que viveu aproximadamente entre 130 d.C. e 202 d.C.), Cristo não apenas morre e ressuscita; Ele refaz a história da humanidade. Ele é o novo Adão que não falha, que obedece onde o primeiro desobedeceu. A nova aliança não joga fora o que veio antes, mas leva ao destino que a primeira não conseguiu alcançar. A lei gravada em pedra ensinou, mas não transformou. Agora ela é impressa no coração. Não se trata mais de decorar preceitos, mas de ser tomado por eles.

Paulo, em Romanos 5:12ss, desenha essa linha do tempo. O primeiro Adão trouxe condenação; o segundo traz restauração. Mas restauração não é automação. O fato de que Cristo pagou o preço não significa que todos os boletos foram automaticamente quitados. A nova aliança coloca o indivíduo diante de sua responsabilidade. Se antes havia um peso herdado, agora há uma decisão intransferível. Não adianta mais jogar a culpa no contexto, na sociedade, nos outros. Ou se nasce de novo ou se permanece na morte.

As consequências na igreja hoje.

Se a igreja de hoje entendesse isso, ela não seria um sistema fechado, mas um organismo vivo. Não existiriam mais cristãos de tabela, aqueles que apenas seguem a onda porque foram criados assim. O erro de muitos hoje é tentar viver um evangelho herdado, como se fosse possível ser genuíno por tradição. Jeremias destrói essa ilusão. A fé tem que ser escolhida, assumida, gravada no peito como um selo que não sai.

Isso também acaba com o moralismo vazio. A nova aliança não gera um povo de aparência santa, mas de santidade real. Não é mais sobre seguir regras externas, mas sobre ser transformado internamente. O problema do legalismo sempre foi tentar produzir frutos sem raiz. Jeremias resolve isso ao colocar a Lei dentro. A mudança acontece de dentro para fora, ou não acontece. Isso significa que a hipocrisia morre. Não dá mais para fingir quando a exigência não está numa placa da igreja, mas cravada no próprio ser.

Outra consequência? A missão se torna inevitável. Quando a aliança estava fora, precisava ser ensinada. Agora, “ninguém ensinará ao seu próximo, dizendo: ‘Conheça o Senhor’, porque todos me conhecerão” (Jr 31:34). Isso não significa que a evangelização acabou, mas que ela se tornou natural. Quem tem a lei dentro testemunha sem precisar fazer esforço forçado (por mais pleonasmo que pareça). A missão deixa de ser um evento para ser um transbordamento. O evangelho não é mais algo que se aprende, mas algo que se vive. Quem está cheio derrama.

Se isso fosse real hoje, não haveria igrejas frias. O evangelho teria a força de uma explosão, porque não seria imposto, mas ardente em cada coração. A fé não dependeria de líderes carismáticos ou estruturas bem organizadas. Não precisaria de “entretenimento gospel” para atrair gente. Quem tem sede não precisa de publicidade para procurar água. A igreja seria irresistível, porque não se sustentaria em marketing, mas em testemunho vivo.

E o perdão? Jeremias 31:34 é categórico: “Perdoarei sua maldade e não me lembrarei mais dos seus pecados.” Esse é o corte definitivo com o passado. A nova aliança não recicla pecados; ela os elimina. A culpa não é mais uma corrente no pé, arrastada por gerações. O pecado não define mais ninguém. Quem entra na nova aliança recebe uma nova identidade.

Se a igreja vivesse isso, ninguém ficaria preso ao erro de ontem. Não haveria mais a praga do rancor, das acusações, da cultura do cancelamento. O evangelho não seria uma religião de gente que se olha torto, mas de um povo que sabe o que significa ser perdoado e, por isso, perdoa.

No fim, Jeremias nos entrega uma bomba: a fé não é mais um contrato, é uma regeneração. Deus não quer um povo domesticado, mas um povo que vive a partir de uma nova natureza. E isso muda tudo. Não é mais sobre seguir Deus. É sobre ser de Deus.

Então, talvez, a derradeira pergunta (a “preocupação última” no estilo Paul Tillich) seria não se é possível ser perdoado, é se você está disposto a cortar com seu passado.