Uma divisão inflamável

A situação em que transitamos nos mostra que estamos vivendo em um pais mais do que dividido (se é que isso é possível). Poderíamos pensar que sempre há divisões e isso é verdade. Mas nas últimas semanas estamos assistindo ao alongamento da divisão saudável atingindo níveis de intolerância e insensatez. Vamos primeiro ao ponto bom da divisão.

O caminho é o arrependimento

Não é bom um grupo de pessoas (os cidadãos de um pais, por exemplo) terem uma única e mesma ideia sobre a sua condução. Seu futuro está comprometido desde o início. Mesmo se coincidirmos sobre algum grande valor visceral (a paz, por exemplo) não haveria uma forma saudável de todos pensarem a mesma coisa. Se todos nós fossemos pessoas pacifistas, não haveria quem defendesse as fronteiras por citar um exemplo simples. Esses que estariam defendendo as fronteiras, por mais pacíficos que sejam, devem estar completamente comprometidos e decididos a tomar as armas quando necessário. Um caso similar é o da culinária, se numa casa todos soubessem cozinhar bem, mas ninguém tivesse a facilidade necessária para administrar os bens, rapidamente teríamos uma família obesa e mendicante.

Então assim como temos duas pernas, é bom termos diferentes visões de mundo. Diferentes perspectivas e, consequentemente, anseios e planos. Isso se aplica tanto a uma família como a pequenos grupos como a um pais. Não é errado, pensarmos diferente.

Todavia, é valioso ressaltar alguns casos de exceção. Talvez as exceções à ideia expressa anteriormente sejam os exércitos e grupos de emergência em que todos os indivíduos devem rescindir de suas ideias pessoais para dar lugar às da hierarquia e agirem como se fossem uma única pessoa. Todavia, mesmo assim é desejável que alguma coisa do instinto individualista de supervivência e amor pelo próximo seja mantido. De outra forma, teríamos exércitos e grupos de emergência formados por psicopatas. Isto é, pessoas que apenas sentem alguma coisa por si e, no melhor dos casos, pelos seus íntimos. (Um psicopata não tem como sentir empatia. Ele simplesmente não tem como sentir dó ou se colocar no lugar do outro. Não que não queira: não tem como).

O pleito democrático tem a virtude de colocar pelo menos duas ideias uma contra a outra. Aliás, no frigir dos ovos se resume a apenas duas visões de mundo. Todas as outas formas ou visões devem passar pelo crivo da negociação previa e devem acabar se acomodando nessas únicas duas que sobram no último estágio do pleito.

Se vemos os últimos pleitos (aqueles dos que temos memória) resulta que todos eles mostram um país dividido, mas é a primeira vez (na existência da maioria dos meus leitores) que a divisão chega a beirar a proporção 50/50. Isso, obviamente, gera desconfiança e insegurança de todos os lados. Dai a importância do pleito ser liso e profundo. Mas não é disso que quero falar hoje.

Sobre o silêncio dos que deveriam estar presentes

Me preocupa a branda elasticidade do silêncio da parte derrotada. Se, como é de praxe nas democracias, o rito do reconhecimento do vencido não é cumprido ou é cumprido tardiamente, ou é cumprido de forma pífia, se começa a pensar que há nisso uma deliberada intenção de – no mínimo – confundir. É obvio que nos faltam elementos para interpretar esse silêncio ou a comunicação abruptamente espartana. Então não é um terreno que possamos entrar para elaborar qualquer coisa.

Todavia, resta a interpretação que a massa (os quase 50% da população que votou na parte rendida) faz desse silêncio: nenhuma das leituras que o povo está fazendo falam de paz. Todas elas falam de insegurança e medo no melhor dos casos ou de intolerância e desatino no pior. Conheço pessoalmente algumas pessoas que votaram na parte rendida. A sensação entre esses que conheço é de desamparo, desapontamento e desassossego. Alguns pensam com compaixão naqueles que estão nas estradas se manifestando e ficam estarrecidos pelo absoluto descaso aparente do vencido.

Tenho a impressão de que essas manifestações são convenientemente deixadas para florescer amparadas por um silêncio retumbante. Mas ao falar isso, alguns que estão a favor do silêncio presidencial se confundem e acham que eu sou a favor do outro lado. Obviamente que, por não me conhecerem, devam pensar isso. São obrigados por força do pensamento que lhes governa a pensarem de esse jeito. Resulta que não.

Sobre a democracia

Eu sou é a favor da democracia que – parafraseando Winston Churchill – “É o pior dos sistema de governo, retirando todos os outros”

Winston Churchill foi um exímio defensor da liberdade e da democracia contra o nazismo. Desde a invasão da Polônia em 1939 e até que Estados Unidos pudesse entrar em guerra em final de 1941, foi o único bastião contra o avanço nazista.

Uma vez finalizada a guerra, foi ele quem cunhou o termo “Cortina de Ferro” para se referir à ameaça comunista. Ele usou esse termo por primeira vez em uma palestra que estava ministrando nos Estados Unidos da pós-guerra.

Então, mesmo não concordando que certos candidatos façam parte do pleito (por conta do passado com a justiça por parte de alguns e por conta do completo desinteresse no povo por parte de outros) não posso negar que o rito foi seguido e satisfeito. Que é necessário revisar esse rito, eu não nego. Os pesos e contrapesos da democracia devem ser revisados de tempos em tempos. Isso, me parece, é ponto pacífico.

Sobre alguns líderes ditos evangélicos

Então, sendo defensor intransigente da democracia, me resulta terrível ver como certos líderes ditos evangélicos não se atrevem a orientar de forma definitiva e clara a multidão que votou na parte rendida. Se deixam levar por boatos. Por guerras e rumores de guerra, como se fosse o fim.

Obvio que talvez esse não seja o seu caso, meu leitor. Assim como certamente não é o meu. Tomemos o caso de alguns pastores de renome do nosso país. Eles, nos últimos quatro anos, prestaram apoio político-partidário à opção rendida. Os vimos usando palavras e títulos que apenas eram adequados para o Senhor da Igreja em uma pessoa de carne e osso.

Em lugar de reprenderem e orientarem o seu rebanho a se afastarem dessa cilada, lhes disseram que se não apoiassem o candidato por eles escolhido, seriam banidos da congregação. E muitos foram. Essa conduta, não é condizente com os valores cristãos. Sendo que não é uma conduta que o nosso Senhor aprovaria, cabe a eles o único caminho conhecido: a confissão e o arrependimento. Isto é, a mudança de caminho de forma clara.

Mas, pedir a um desses que se arrependam, é como pedir ao abacateiro que produza bananas. Aliás, pensando em frutos e em árvores, nem pedindo a um abacateiro que dê abacates ele produzirá abacates. A produção tem mais a ver com a natureza do próprio pé do que com a vontade externa. Ou dito de outra forma: de nada adianta esperar outra coisa, apenas isso é o que conseguem produzir.

Então, meu leitor, não se engane pensando que eles fizeram isso de forma inadvertida. Não pense que o fizeram sem o correto concurso da vontade. Entraram na lama para empurrar o carrinho por considerarem que se tratava de uma ótima opção para os ideais deles. Ideais estes que têm se mostrado mais empobrecedores do ponto de vista intelectual e espiritual que aqueles conhecidos da própria idade média.

Como a igreja deve fazer para sair desse atoleiro no qual se meteu?

Talvez mostrando um pouco de humildade e firmeza.

Tomando apenas um exemplo, devemos dizer que a humildade é necessária para reconhecer que – ao concordarmos que a bala era a resposta correta para a violência civil – erramos. Assim, em plural. Mesmo que talvez você, leitor, nunca tenha concordado com isso pessoalmente, por conta de respondermos solidariamente como povo de Deus, devemos nos arrepender. Isto é, darmos meia volta. A velha liturgia que ainda resiste em igrejas como a Luterana e a Presbiteriana (por citarmos apenas duas) de confessar em público, em conjunto e usando a primeira pessoa do plural, se faz muito necessária.

Ao não condenarmos em 2018 o apoio político partidário compulsório que alguns líderes denominacionais impuseram, nos tornamos cúmplices. (Sim, já estou imaginando você dizer “eu não”, mas repare que se você chegou até aqui, é porque quer uma saída. Me acompanhe então). A coragem que nos faltou naquele ano (por conta do medo que nos governava) nos deixou sem qualquer movimento bondoso possível. Parece que é mais importante sermos fieis ao erro do que ao próprio Senhor.

Contudo, falemos da firmeza. A firmeza é necessária para saber expurgar os líderes que nos meteram nessa situação. Novamente, o uso do plural aqui é importante. Talvez nem à nossa denominação pertencem esses que se sujaram com isso, mas – por outro lado – pode ser que essa segmentação denominacional nos sirva apenas para acalmar nossa consciência. Então vamos ao plural similar ao que encontramos no Gênesis quando a trindade assumiu a responsabilidade de criar o Homem.

A firmeza, então, é muito necessária, haja vista o dano que se fez ao tecido social em geral e ao meio evangélico em particular. É necessária porque há um conceito gravissimamente errado de graça em que – como não nos custou nada – achamos que tem valor nenhum. É necessário então que a igreja experimente o Deus da justiça e do amor. Justiça ao afastar os líderes que levaram o nome “evangélico” a essa situação e amor em não lhes cortar a esses líderes o convívio nem a comunhão. Doutra forma se transformaria em uma caçada às bruxas e o remédio seria pior do que a doença. A ideia é a reconciliação, a cura. E isso não é possível se promovemos o ódio ou a revolta.

O caminho, mais uma vez, é estreito, mas a igreja sabe que esse é o caminho certo.

O descaminho da “bancada evangélica”

É muito difícil ela abandonar o poder uma vez que degustou do seu sabor. Mas é esse justamente o caminho a ser seguido para nunca mais voltar. Os católicos não têm bancada, os muçulmanos não têm bancada, os cultos afros não têm bancada. Por que é que os evangélicos têm bancada? É esse descaminho o que precisa ser abandonado pelo povo. Isto é, por cada um de nós. Há uma necessidade imperiosa de escolher o caminho do silêncio, já que o diálogo para o abandono disso é impossível. É muita ânsia de poder. Muito ódio pelo ser humano transvestido de cristianismo evangélico e por isso, são incapazes de abandonar essa canoa furada. Amam a canoa. Almejam a canoa. Fornicam com a canoa.

Eu não pretendo ser um sonhador, perseguidor de sonhos e caçador de vento. O pior que pode existir é uma utopia neste sentido. Sendo, então, bem realista, entendo ser impossível certa fatia da camada evangélica ser restaurada ou regenerada. Transgrediram de forma tão contundente contra o próprio ser humano que o melhor lhes seria se calarem e se abandonarem; se deixarem apagar como o pavio final de uma candela. Quem sabe no silêncio interior conseguem conceber de alguma forma misteriosa que a Igreja de Cristo não é o lugar adequado para esses devaneios.

Se você entrou nessa furada e ainda sente a voz do seu mestre, volte. Largue os porcos e as bolotas. Na casa do pai há paz e amor verdadeiro.

Se você não ouve mais ou se nunca ouviu, não demore: suje-se ainda mais, pois não há mais esperança.

Quem é injusto, faça injustiça ainda: e quem está sujo, suje-se ainda; e quem é justo, faça justiça ainda; e quem é santo, santifique-se ainda.

Apocalipse 22:11

Sobre Esteban D. Dortta

Esteban é um pastor evangélico. Estudou teologia no Seminário Teológico Batista do Uruguai entre 1991 e 1994. Nascido em 1971, vive no Brasil desde 1995. Entende que a liberdade de pensamento, expressão e reunião são essenciais para o desenvolvimento não apenas cristão, mas de toda a sociedade.