Você celebra a páscoa?

Há muitos cristãos que acreditam piamente que o que se encerra hoje é a celebração da páscoa.

É verdade que a comemoração dos judeus é verdadeiramente a páscoa. Está certo em celebrarmos a data deles? Sim, se você conseguisse celebrar o Ramadã morando ou estando sob influencia muçulmana, a resposta é sim. Ou seja, não é uma festa de origem cristã, ela em si mesma não lhe diz à cristandade. Portanto, não é uma festa nossa assim como não o é o Natal que é uma apropriação da festa pagã do “Sol Invictus” do tempo dos romanos. (Mais sobre isso aqui)

Porém, ficando claro que é uma festa que não é da nossa origem, uma segunda análise nos leva exatamente na direção contrária. O que se celebrava na páscoa? A liberação que havia de vir ainda. Ou seja, naqueles dias da primeira páscoa se escolhia e preparava o cordeiro durante os dias anteriores. Por quatro dias, ele era preservado e todos na casa sabiam o que estava se preparando. Imagino que a sensação deveria ser similar à que sentimos perto do Natal no mundo cristão ou do Ramadã no mundo muçulmano. Ou seja, grande e aberta expectativa.

No final do quarto dia, ele era abatido (Ex12:6). Lembro meu vó abatendo um carneiro. Eles morrem em silêncio. Em todas as casas haveria um certo silêncio naquela mesma hora. Talvez um certo murmurio suave e um tanto solene enquanto se explica aos mais novos o que está acontecendo e como isso é uma preparação do que haveria de vir.

Parte desse sangue serviria para marcar o batente da porta. Num claro sinal público de comprometimento pela fé no que haveria de acontecer. (Ex12:7)

Depois começaria a outra parte da celebração. O churrasco (Ex12:8), o jantar. Quem nunca comeu ou comeu e não gostou não tem noção de como é gostoso um churrasco de carne de carneiro (meio adocicada) acompanhada com ervas amargas. É uma delicia ao palato. Quem nunca esteve numa churrascaria gaucha de verdade (não as imitações paulistas) não sabe o como é gostoso comer não apenas a carne, mas também todas as outras partes do animal. Uma verdadeira festa de sabores.

Comento estes detalhes culinários apenas para trazer à tona um fato que geralmente não associamos com as celebrações religiosas judaicas: São uma baita festa. Os povos semíticos são povos expressivos e as celebrações tem música, dança e, claro, por ser uma festa judia iniciada em solo egípcio, tinha cerveja e da boa não das feitas com arroz e/ou cereais não maltados, eles usavam a melhor cevada disponível na região. Ao final das contas a saúde de adultos e infantes dependia disso. (Veja mais aqui)

Assim como a entrega dos dízimos, a festa das colheitas e tantas outras, a celebração da páscoa era exatamente isso, uma grande e ousada festa. Temos o costume infernal de solenizar tudo. Talvez pela herança dos conquistadores, talvez por achar que existe alguma diferença entre o sagrado e o criado, ou talvez por não nos sentirmos relaxados de fato na presença do Criador, quem sabe?

O cheiro do churrasco na brasa no ar, a noite caindo e as sensações se juntando. Havia expectativa, ansiedade, alegria e tristeza. Tudo junto. Mais ou menos como a morte do único parente rico e muito bem querido e respeitado em uma família pobre. Os sentimentos se misturam, não tem jeito.

Havia expectativa por ser a primeira vez que iria a acontecer o que estava por acontecer. Tristeza porque iam deixar tudo o que tinham conhecido como realidade nos últimos quatrocentos e trinta anos. Alegria, porque ao fim seriam libertos e ansiedade porque o que estava por acontecer, se escapava da mão deles.

A festa era de cunho divino no sentido que tinha sido uma idealização de YHWH transmitida a Moisés. A própria celebração era realizada com componentes culturais próprios. A abrangência do sacrifício era para todos os escolhidos e apenas para eles (Ex12:3,45). A participação era -como todas as celebrações do antigo testamento- pela fé já que a pessoa poderia se abster de crer e deixar de pintar o batente da porta, por exemplo. A realização prática era na família e, se ela for pequena, junto com a família do vizinho numa demonstração particular de fé comunitária.

Então a noite foi ficando escura. Algumas músicas foram parando. Algumas risadas diminuindo. Após a meia noite (Ex12:29) os primeiros gritos foram se ouvindo. As primeiras frases de arrependimento ditas em pranto foram sendo ouvidas. Em todas as casas onde a marca de sangue no batente da porta não tinha sido feita, o anjo do Senhor entrou e matou o filho mais velho não apenas das pessoas, mas dos animais. Em todas as casas no Egito havia um filho morto (Ex.12:30)

Nessa mesma madrugada, o Egito manda os judeus – sua grande e barata mão de obra – ao deserto. A liberação que uns poucos esperavam, pela qual muitos clamavam, mas que de fato a maioria não desejava que se concretiza-se estava sendo finalmente realizada. (Ex.12:31-33)

Deus era fiel ao seu próprio plano. Deus não tinha esquecido da sua promessa. Deus não tinha abandonado seu povo como muitos achavam. Deus, continuava sendo O Soberano. A fé não era mais necessária pois estava claro até para o mais obstinado descrente que Deus era quem mandava no pedaço. Não se tratava mais de crer que um dia a salvação chegaria, era obvio e manifesto que o lance estava acontecendo ali e nesse momento.

cruz-vazia

Uns 1400 anos depois um outro cordeiro morreria. Um judeu de origem humilde. Um carpinteiro de profissão. Ele falava que a salvação da qual muitos falavam, poucos acreditavam e menos pessoas ainda esperavam de fato que se concretiza-se, dependia dele. Especificamente da morte dele.

A morte de Jesus o Cristo se dá justamente na celebração da páscoa. Ele morre e aqueles que ouvem hoje sua mensagem e depositam a fé nele (pois pode-se ouvir, entender, concordar mas não se render) são salvos. A ressurreição dele (que celebramos todo domingo) apenas nos lembra de que ele prometeu voltar da morte e também prometeu um dia vir buscar os seus. Logo, se se mostrou poderoso para cumprir a primeira promessa (muito mais difícil de cumprir do que a segunda por se tratar dele mesmo) é capaz de cumprir a segunda.

Então, meu querido, que páscoa você celebra? A dos ovinhos de chocolate e das frases feitas? A de evitar comer certos tipos de comida? A do recolhimento vazio? A do tempo do Êxodo? O apostolo Paulo tem uma frase muito linda sobre este momento.

O orgulho de vocês não é bom. Vocês não sabem que um pouco de fermento faz toda a massa ficar fermentada?
Livrem-se do fermento velho, para que sejam massa nova e sem fermento, como realmente são. Pois Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi sacrificado.
Por isso, celebremos a festa, não com o fermento velho, nem com o fermento da maldade e da perversidade, mas com os pães sem fermento da sinceridade e da verdade.
1 Coríntios 5:6-8

Então não se trata de celebrarmos a festa judaica ou a europeia. Se trata de celebrarmos a morte e ressurreição do amado. Mas não uma celebração como evento isolado da vida. Está mais para uma celebração por causa da nova vida que nele temos.

Sobre Esteban D. Dortta

Esteban é um pastor evangélico. Estudou teologia no Seminário Teológico Batista do Uruguai entre 1991 e 1994. Nascido em 1971, vive no Brasil desde 1995. Entende que a liberdade de pensamento, expressão e reunião são essenciais para o desenvolvimento não apenas cristão, mas de toda a sociedade.