Arquivo da categoria: A herança esquecida

Texto alegórico experimental.
Conta as peripécias do Julio – um circulão – na sua descoberta da vida e como ele chega a viver a sua e não a dos outros.

Inclusão cristã

No movimento de Jesus, a mensagem de liberdade e inclusão era uma das características centrais. Jesus desafiou as normas sociais de sua época, acolhendo e convidando todas as pessoas a segui-lo, independentemente de sua origem étnica, status social, gênero ou histórico de vida. Sua ênfase na amorosa inclusão ecoou nas palavras e ações dos primeiros seguidores de Jesus.

No contexto cristão dos dias de hoje, no entanto, ainda podemos identificar movimentos e teologias que, infelizmente, excluem certas pessoas da comunhão dos seguidores de Jesus. Às vezes essa exclusão é feita com base em doutrinas rígidas, diferenças sociais ou culturais, e orientação sexual ou identidade de gênero.

Isso demanda de nós um exercício bem eclético que nos leva para longe do assim chamado fundamentalismo cristão. Fundamentalismo aqui nada mais é do que tirar sempre as mesmas conclusões sem nada haver de novo ou que nos cutuque na leitura e interpretação da escritura.

Todavia, esse movimento não pode ser confundido com liberalismo mesmo requerendo liberalidade amorosa. É aquilo de se arriscar no acantilado para resgatar a ovelha.

Vivemos numa sociedade mimada que confunde o amor com liberdade irresponsável. Por outro lado, observamos que a igreja se vê acuada diante de tanta pressão social que – convenhamos – é uma pressão espiritual. Como se amar não fosse também almejar mudanças! Que o digam os pais que amam seus filhos. (Há aqueles que os detestam e também os que praticam alienação parental. Esses servem como exemplo de como não proceder)

Desde a Torá nos seus lembretes de amar a Deus por cima de todas as coisas e amar o próximo como a si mesmo que a mesma ideia se vem repetindo uma e outra vez: não deixe que seu próximo vá para a morte. Ou dito de outra forma, Jesus faz menção aos textos do antigo testamento e no contexto de Levitico 19 encontramos o seguinte:

Não odiarás a teu irmão no teu coração; não deixarás de repreender o teu próximo, e não levarás sobre ti pecado por causa dele.  

LEVÍTICO 19:17

Então, e antes que diluamos o poder do evangelho em afetos puramente terrenos e agendas antropocentristas, é urgente salientar que essa aceitação do Novo Testamento não é uma inoperante ou ineficiente, mas sim aquela que sacia a alma e transforma a totalidade do ser humano.

Talvez seja tempo de resgatar a velha ideia da theosis a partir do novo Adão que teólogos antigos como Irineu promoviam. Não para uma salvação apenas espiritual da alma no além, mas para uma vida enriquecedora e significativa agora.

Então Jesus pôs-se em pé e perguntou-lhe: “Mulher, onde estão eles? Ninguém a condenou?”

“Ninguém, Senhor”, disse ela.
Declarou Jesus: “Eu também não a condeno. Agora vá e abandone sua vida de pecado“.

João 8:10-11

A herança esquecida – O caminho ao mercado

Anteriormente…

Na medida em que Júlio ia crescendo, suas responsabilidades iam aumentando. Isso implicava em sair mais vezes da sua pequena aldeia circular e ir até o mercado. Era toda uma aventura. Só o fato de que o caminho até lá era uma longa e imperceptível curva lhe fazia pensar que os circulões mais antigos sempre enfatizavam: “o caminho até o mercado pode ser transitado por se tratar de um pedaço de um círculo muito grande. Nós é que – por sermos infimamente pequenos – o percebemos como uma reta“.

Júlio ficava encanado e encantado. Se isso era verdade, eles e apenas eles – os circulões – estavam no caminho certo. Claramente deveria ser assim já que se até o caminho ao mercado fazia parte de um grande círculo, logo, a origem de tudo deveria ser um circulo, um circulão ou alguma coisa assim. Não podia ser de outro modo, já que os pais deles eram circulões, os avós, os bisavós, todo mundo era um circulão e quem não era, acabava sendo excretado de uma forma ou de outra. “Uma aberração perturbadora” – como diziam os mais velhos – que precisava ser “purificada” vivendo fora da aldeia. Só que Júlio – por mais encantado que estava com a ideia – não conseguia desencanar. Havia alguma coisa que não se encaixava nesses ares de perfeição circular.

No caminho haviam coisas que Júlio admirava. Era um caminho longo que levava em média dois a três dias para ser realizado. Pelo menos na ida porque na volta a coisa era bem complicada pois tinha que voltar com as compras e o único jeito era empurrar, puxar, arrastar em pequenos grupos sobre tábuas ovais (pois não passavam de círculos deformados e formas imperfeitas podiam ser usadas mas não interiorizadas). Certa vez lhe contaram a história de um circulão jovem que quis colocar quatro círculos ao lado das tábuas ovais de transporte só que em pé vinculados por um eixo dois a dois. Demorou mais tempo em explicar o que ele pretendia do que em ser excretado. Enquanto era colocado para fora da aldeia ele esperneava, falava qualquer coisa ao respeito de que ele estava seguindo as ideias de Salvador; que era bom buscar formas de viver melhor; que era uma bênção usar essas tais de “rodas” como ele chamava os círculos na vertical. Coitado. Um verdadeiro perigo.

Bom, mas voltando ao caminho, nesse trajeto de ida (que era pelas razões que lhes contava mais leve e rápido que o de volta) Júlio se maravilhava com várias coisas. Uma das coisas que ele achava boa era que na primeira metade do caminho – onde ainda era plano e não havia nem barranco nem despenhadeiro – outros caminhos se juntavam ao maior. Era desses caminhos que triangulões, quadradões e outros iam se somando ao trajeto. Nesses percursos, Júlio – de alma inquieta e explorador por natureza – havia aprendido algumas palavras em vários dos dialetos falados pelos povos e até hexagonés, a língua do povo de igual forma.

Saindo da parte lisa do trajeto – se bem que o caminho até o mercado era liso já que todos esses povos não poderiam chegar até o mercado se o caminho fosse de qualquer outro jeito – ao lado do caminho haviam partes não planas a um lado e ao outro. Por vezes de um lado havia uma elevação com uma coloração verde em sua grande maioria. Por vezes do outro lado havia uma depressão, um vale, com a coloração verde também mas salpicada de outras como marrom, verde mais escuro, branco, amarelo, enfim, a lista era enorme.

Muitas vezes era ali que eles paravam para fazer a refeição. Três coisas faziam com que todos eles se unissem quase que em um mesmo pensar: a diferença de altura entre um lado e o outro do caminho, as cores que podiam ser vislumbradas e que mudavam conforme o horário em que chegavam no ponto e o vento. Ah o vento. Não havia nada parecido com o vento nas suas aldeias. Ele parecia preenche-lo tudo e todos. Às vezes forte, outras vezes quase imperceptível mas sempre presente trazendo cheiros e aromas que causava neles uma atitude quase solene de fechar os olhos e respirar fundo como querendo hospedar nos seus pulmões toda aquela beleza sensorial.

Tipicamente ficavam em silêncio no inicio. Apenas ouvindo o vento. Apreciando a música que só ele sabia tocar. Aos poucos esses minutos iam ficando para atrás dando lugar a uma sadia folia com o correspondente intercâmbio de abraços, presentes, desejos de boa caminhada, atualização das noticias. Ao final das contas, viam-se apenas uma vez por ano. Obvio que se os circulões mais antigos vissem uma coisa dessas iriam deserdar os mais novos. E pelo que contavam nesses encontros, não era muito diferente com os outros, apenas os hexagonões eram dados a aceitarem outros povos mas eles também eram dados a darem risada de si mesmos, então não eram padrão.

Mais para frente essa confraternização e confiança mútua era necessária para atravessarem a ponte. Então eles sabia, que não era errado gastar um tempo se interessando pelo outro já que precisariam um do outro ao enfrentar os fortes ventos sobre a longa ponte que atravessava sobre um grande cânion no fundo do qual um rio tempestuoso corria livre e desimpedido.

Continuará…

A herança esquecida – O Mercado

Anteriormente…

Júlio foi crescendo e às vezes podia ver pessoas felizes mas que não eram circulões. As visitas ao mercado – lugar decadente em que pessoas com linguajar deselegante e formas variadas sorriam de tudo, de todos e de si mesmos quase que o tempo inteiro – o colocavam em contato com uma coisa diferente que os outros circulões insistiam em chamar de “irrealidade externa”.

À falta de melhor palavra, Júlio acabou chamando essa coisa de “alegria”. Era um neologismo engraçado aos ouvidos dele já que se parecia com a palavra “alergia” que era isso que ele achava os circulões mais velhos sentiam nas suas idas ao mercado. Ao final de contas, que outra coisa a não ser uma alergia explicaria o rito de purificação e lavagem no reingresso ao grande círculo simulado voltando do mercado.

Com o decorrer do tempo, Júlio foi tomado de certas perguntas sobre a “alegria”. Haviam algumas coisas que não encaixavam. Ele conseguia, com certeza, entender como rir do outro. Ou seja, todo o mecanismo doutrinador básico dos circulões passava pelo fato de rir das ideias alheias. Aliás, se possível fosse, queriam mesmo era morder a carne do suposto proprietário da ideia diferente. A ironia era reservada para o círculo particular. Era a forma em que os pais tinham de castrar os circulões menores no intuito de que fossem aceitos no grande círculo simulado. Já o sarcasmo era a forma em que publicamente um circulão dissidente era exposto ao ridículo no grande círculo simulado. Não estranhava então o final que teve Salvador já que as ideias deles e a proposta que essas ideias levantavam contradizia o orgulho público número um que era pensar de forma circular.

Ele conhecia muito bem o efeito que a vergonha disparada pelo sarcasmo produzia num circulão; em especial aqueles menores. Um circulão menor não aprendeu ainda que pensar é perigoso e que – caso alguma ideia vaze para fora do círculo íntimo – esta não pode de forma alguma chegar aos outros círculos. Só que o Júlio em suas idas ao mercado, via que a risa do outro era bem recebida pelo outro. Ele não conseguia entender como isso era possível mas o deixou de canto por um tempo essa incompreensão, observando e – secretamente – fazendo certas anotações mentais sobre o lance.

Passou a concentrar-se sobre rir de si mesmo. Os circulões não erravam, logo, não havia lugar para rir de seus próprios erros e muito menos de si mesmo. Júlio concluiu rapidamente que o “não errar” dos circulões estava fortemente vinculado ao fato de eles não tentarem nada novo e também ao fato de terem sido disciplinados desde pequenos a descartar ideias não circulares. Isso lhe resultou estranho. Por isso decidiu esperar até ter mais informação o que viria, certamente, com mais visitas ao mercado.

A herança esquecida

Era uma vez um povo que vivia sua pequena felicidade. Não se sentia infeliz nem muito menos. Tinha achado seu ponto de equilíbrio e – mesmo que ocasionalmente os membros desse povo falassem uns ao outro da triste situação dos que não pertenciam a este povo – pouco e nada faziam ao respeito. Era mais uma formalidade que ajudava na aceitação por parte dos outros do mesmo povo, do que realmente uma carga.

Tudo nesse povo era circular. Nele nada era quadrado, triangular, hexagonal, ou de qualquer outra forma poligonal. Tudo era simplesmente um círculo. Alguns maiores, outros menores, mas sempre círculos. Haviam por vezes círculos tão enormes que, observados de perto e por pouco tempo, pareciam uma reta.

Para se ter uma ideia, os planos e projetos eram circulares. Eles começavam e acabavam sempre no mesmo ponto que tinham começado (ou acabado antes, ninguém mais sabia). De esta forma, se podia ter a ideia de movimento sem nunca ao menos passar por lugares ou situações novas. Tudo quanto se observava já era conhecido por alguém de alguma forma e com isso os mais novos não tinham necessidade de sentirem medo ou aflição já que alguém da geração anterior (ou anterior à anterior, ninguém mais sabia) já tinha passado por lá.

Haviam ao menos quatro círculos básicos na vida deste povo: o íntimo, o particular, o simulado e o externo irreal. No círculo íntimo ninguém entrava a não ser a própria pessoa. Neste espaço, as ideias e sonhos se revolviam de forma mais ou menos desorganizada mas sem nunca ao menos poderem sair para os círculos mais externos. Como muito, alguma ideia que já tinha sido ouvida nos círculos mais externos era devolvida ao círculo particular, com muita dificuldade ao simulado (sempre e quando a aceitação fosse de alguma forma garantida) mas, com certeza, nunca, mas nunca mesmo, sairiam ao círculo externo irreal.

Por conta dos círculos serem concêntricos o equilíbrio do esquema todo dependia em grande medida do ponto mais básico assim como da velocidade de giro dos círculos mais externos, mais ou menos como o rodopiar de um pião. Enquanto tudo continuasse a girar com a suficiente velocidade o pino continuaria como ponto de apoio e enquanto o ponto de apoio continuasse lá, tudo iria a continuar girando e a tão bem conhecida e estática felicidade estaria garantida.

A herança esquecida – Júlio

Anteriormente…

Júlio não era de todo circular. Suas ideias iam e vinham. Algumas eram ideias estranhas. Bom, ao menos não eram circulares. Para falar a verdade, Júlio era mesmo meio amassado. Ele não girava muito bem. Até o círculo particular se incomodava com o jeito em que ele girava. No círculo simulado ele não se encaixava e vira e mexe falava de coisas que só podiam ter vindo do círculo externo irreal. Para que o leitor me entenda melhor, mais do que girar em círculos, o Júlio rodopiava alternando a volúpia rodo ativa com certo degringolamento na própria rota: Um louco solto.

Uma das coisas mais perigosas que Júlio falava era que o último círculo estava mal etiquetado. Ele dizia que o último círculo não podia levar nunca a palavra irreal na etiqueta. Apenas círculo externo seria suficiente. Apenas pensar nesta ideia fazia os circulões (assim eram chamados os membros deste povo), como dizia, apenas pensar nesta ideia fazia os circulões mais velhos estremecerem na base. Como o leitor pode imaginar, uma estremecida neste povo não era o mais desejável já que um círculo poderia bater no outro, fazendo-o estremecer-se e podendo desencadear uma reação em cadeia.

Da última vez que isso tinha acontecido o desmoronamento, o tombo, a sensação de insegurança tinham invadido o povo ao ponto que – não podendo mais rejeitar as ideias – tiveram que se desfazer do circulão ousado. Como era que se chamava? Era um nome com ésse. Sofos? Saliente? Solidão? Salvador? É isso ai! O circulão aloprado chamava Salvador.

Salvador tinha a mania de mostrar que círculos, por mais enormes e velhos que fossem, nunca seriam linhas retas. Ele insistia que haviam outras formas igualmente válidas de construir um povo; triângulos, quadrados, pentágonos, etc. O problema estava com o caminho. Segundo Salvador, o essencial era reconhecer que o andar não podia estar limitado à reprodução da própria forma do povo. Ou seja, ele dizia que haviam outros povos no círculo externo irreal que alias, ele -que nem Júlio- insistia em tirar a palavra irreal da etiqueta. Estes povos tinham as formas mais variadas mas todas elas, assim como os circulões, insistiam em que o caminho a ser seguido tinha a própria forma do membro individual do povo apenas mudando em tamanho e – por consequência – em historicidade. Quando mais velho e maior, tanto melhor e seguro o caminho a ser seguido; isso contanto a forma fosse idêntica à do povo que o transitasse.

Salvador insistia em que a forma que o caminho assumia e o tempo transitado não eram um atestado de que o próprio caminho era certo. Por outro lado, estas coisas não tinham como competir com a relevância do destino a ser atingido nem muito menos com a aventura das descobertas que o próprio caminho poderia vir a oferecer.

O orgulho com que os circulões se gabavam de quão seguro era seu próprio caminho, quão elegante e suave era se comparado ao dos triangulões ou dos quadradões via-se gravemente ameaçado pelo sorriso meigo e simples de Salvador que – na sua aparente loucura – conseguia enxergar vida além do círculo externo irreal.

As pessoas que o ouviam falar, o faziam por meio do círculo simulado. Este era meio como que uma última linha de defesa para a pseudo realidade particular e a quase realidade interior. No círculo simulado, a realidade era antagônica à aceitação. As ideias eram expostas sempre e quando fossem circulares. Maiores, menores; com traços largos ou finos; mas circulares. Os mais ousados traziam ideias ovais que não passavam de círculos deformados. Passado o choque inicial, a ideia passava a ser considerada pois não se tratava de nada mais do que um círculo sob forte pressão ou qualquer eufemismo do tipo.

Salvador vinha e falava de triângulos, quadrados, hexágonos e outros polígonos como se eles também fossem formas válidas de vida. Mostrava aos circulões que tanto fossem triangulões, quadradões, ou circulões, o importante mesmo era escolher um outro caminho que não era a mesmice de sempre. Porém a coisa realmente pegava quando ele abandonava os polígonos e passava a falar dos poliedros. Onde já se viu ter três dimensões? Volume? É claro que ele fazia isso não apenas para chacoalhar as ideias dentro do círculo íntimo de cada circulão o que já de por si constituiria um objetivo bastante ousado. O propósito dele era mostrar que o importante era o caminho e não a forma de quem o transita.

Júlio se sentia de certa forma conectado com Salvador. Não que fossem contemporâneos. Nada disso. Havia uns dois mil anos de separação histórica. A coisa era mais profunda.
Júlio tinha nascido como qualquer outro circulão; ou seja: dois circulões complementares se uniam, mitigando as diferenças do círculo simulado e passando a constituir um novo círculo particular, abandonando – na medida do possível – os respectivos círculos particulares ao que tinham pertencido para formar um outro circulo melhor e maior na medida do possível ou pelo menos aparentar que assim era.

Bem, particularidades à parte, Júlio foi crescendo bastante bem. Aprendeu as habilidades de simular o pensamento, esconder a verdade, fugir das ideias que não fossem circulares, enfim, tudo aquilo que os mais antigos achavam essencial para o pequeno Júlio chegar com sucesso a participar do círculo simulado e evitar o mais possível o contato com o círculo externo irreal. A não ser, claro, aquelas vezes em que a necessidade o empurrasse para obter algum recurso com os triangulões ou os quadradões vizinhos.