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Deus sem “evangeliquês”

A construção do ser de Deus é gradativa, cumulativa e enorme no texto que nos é sagrado a cristãos.

Contudo, não é apenas na Bíblia que há uma grande construção do ser de Deus. Na realidade, seja por um arquétipo (a la Carl Gustav Jung) ou por um vazio no tamanho de Deus (como em Blaise Pascal), todos e cada um dos seres humanos tem uma ideia sobre o divino.

Essas ideias são herdadas e compartilhadas na sociedade em que o indivíduo está inserido. Muitas dessas ideias não são simples ou pobres. A maioria delas é elaborada e muito rica, geralmente com relatos de alguma forma de interação com esta sociedade.  

Por outro lado, podemos ver pessoas com ideias de índole menos pessoal como os estoicos (universo governado por uma razão universal natural) ou epicureus (se existe um deus é distante e irrelevante à vida cotidiana).

Obvio que ter esses conceitos não necessariamente ajudam na tarefa de apresentar o monoteísmo bíblico, mas é exatamente o ponto de partida que devemos buscar: em outras palavras, qual é a fé da pessoa e que formas adquire no cotidiano. Isso determina não apenas o conteúdo como a fraseologia a ser utilizada.

A partir de ai, o esforço deve se focar em mostrar Jesus, seu ensino e sua vida. É onde entra o tal de “testemunho”, isto é, uma vida de serviço aos nossos irmãos de raça. Jesus é simultaneamente, a forma mais completa e a mais simples de apresentar o Criador à criatura. Descobrir a linguagem específica, pode levar uma vida.

“Pregue o evangelho em todo tempo. Se necessário for, use palavras”

São Francisco de assis

Dúvida, Fé e angustias

Geralmente a dúvida é tida como contrária à fé, já que esta é definida como a certeza de aquilo que não se vê. Todavia, a dúvida é parceira da fé no sentido que estabelece os limites dela e a fortalece.

Uma dúvida simples entre o rebanho é se Deus responde ou não determinadas orações. A simplificação da dúvida reduzindo ela a uma falta de fé por parte e quem ora, não resolve a dúvida nem tira a angústia. Então a dúvida, existe e é comum.

Estabelecido o ponto da dúvida existir, e vendo que a supressão da mesma por uma resposta simplista não enxuga a questão, sobra apenas bendizer a dúvida como parte do processo em que “a prova da vossa fé, mais preciosa do que o ouro” forja um caráter cristão de melhor qualidade.

Resta então analisar a razão de fugirmos à dúvida. Suponho que fugimos da angústia que a dúvida traz. Logo, não seria mais a fé a que nos traria certeza, mas a falta de dúvida, de onde concluo que não é possível uma fé significativa sem uma dúvida angustiante.

Sistematizar a dúvida é estar ciente do processo de amadurecimento da fé.

A importância da quinta-feira da semana santa

Introdução

Vivemos em uma época em que as palavras são esvaziadas de seus conceitos originais de forma proposital para poderem ser usadas em outros contextos e – obviamente- com outros propósitos.

O exemplo mais simples que vem na minha cabeça é a antiga palavra caridade. Esta palavra originalmente transmite a ideia daquele amor que surge no coração de Deus e que se manifesta para minha pessoa mas também para meu próximo em ações concretas. Todavia, hoje a palavra caridade é quase um insulto. Pensar que um homem forte e trabalhador seja passível de caridade é -nesta época- um contrasenso, já que a palavra passou a significar um ato quase desprezível de dar o mínimo para quem não tem o que comer. E para piorar, geralmente este “ato de bondade” é feito com material da pior qualidade, ou tirando fotos para poder postar em redes sociais. Ou seja, a pior de todas as situações.

O mesmo acontece com as palavras misericórdia, humildade, bondade, perdão e por ai vai. Lembro de uma ocasião em que alguém ficou extremamente bravo comigo por sugerir que ele era humilde. A reação violentíssima dele demonstrou que eu estava errado e que ele não sabia do que se tratava a humildade. Por duas ocasiões me vi perante pessoas que tinham cometido um erro grave contra outrem e insistiam em que eles tinham que perdoar a parte ofendida quando na realidade o que deveriam de fazer era confessar o fato e pedir o perdão da parte afetada. A lista é interminável.

Com o adágio de “dá para entender”, simplesmente vamos permitindo que as palavras percam seu conceito, passem a significar geralmente o contrário e a comunicação (que é a base dos relacionamentos e as construções humanas) virem uma pequena torre de babel sem qualquer necessidade.

Falando nisso, “adágio” nada mais é do que um provébio popular do qual se pode tirar algum tipo de ensinamento moral. O que chamamos de ditado popular. Com isso entramos em outro assunto que são as palavras esquecidas por falta de uso no dia-a-dia. Quando se juntam as duas coisas a comunicação vira uma torre de babel atômica em que qualquer parte que se mexa, explode tudo pois não há compreensão do que se quer dizer seja pelas palavras, seja pelo conteúdo das mesmas ou seja pelo uso pouco comum destas.

Uma das palavrinhas que é usada nestes dias é Páscoa e ela tem um conceito todo especial para o povo judeu e – por transferência ou posse – também para os cristãos em sua maioria.

Propósito

Busco hoje, que você adquira o uso correto da palavra páscoa e finque uma posição clara e definida ao respeito do que – como cristãos de liturgia livre – pensamos (ou deveríamos pensar) ao respeito. A trilha pela qual chegaremos a essa definição e aplicação prática passa por entender o significado original da palavra e entendermos a aplicação certa e errada que se faz do termo. Como brinde desse percurso vai poder observar o mundo no qual vive com olhos renovados e entenderá a razão pela qual falamos que “somos uma nova criação”

Uma primeira aproximação do texto a ser usado.

Bem sabido é de que gosto bastante do evangelho de João. E também é conhecida a frase de que “é um evangelho desequilibrado”, brincando com a palavra “desequilibrio” tendo plena clareza de que talvez “desbalanceado” faria mais sentido mas não ficaria tão chamativo.

Todavia, quero com isto fazer referência ao fato de que dos 21 capítulos deste evangelho os primeiros 11 (na realidade até o 12:12) são dedicados à encarnação de Jesus e o seu ministério público e privado. Do 12:12 até o 20:23 João nos apresenta apena a última semana de Jesus até sua crucificação e ressurreição, deixando um pequeno epílogo (20:24-21:25) para cuidar de Tomé, os discipulos e Pedro.

Mais da metade do evangelho é usado para essa semana. Logo, ela deve ser muito importante. Uma outra coisa que eu fico admirado é a aussência de um registro entre o 19:42 e 21:1. O sábado simplesmente falta no relato.

O que tem de tão especial essa semana (que coincide com a celebração da páscoa judaica) para nós cristãos do século XXI?

O ápice da semana santa.

Costumamos colocar o ponto mais alto da semana santa como sendo o domingo. E não há erro nenhum nisso e já veremos a razão. Mas há três dias que costumamos esquecer. Talvez por sermos de liturgia livre, não damos tanta atenção a isso. Ou talvez por não entendermos o que esses dias significam. Ou por nunca termos parado sequer para pensar neles.

Venho de uma cultura evangélica livre em que se preza pelo pensamento autônomo mas também pelo andar como um só povo. Não fosse que há virtude nessas duas coisas, diríamos que se trata de uma grande ironía. Todavia, o pensar independente acha sua maior manifestação na compreensão do fato de que ser cristão é pertencer voluntariosamente ao povo que segue Jesus o Cristo.

É por essas e outras que lá temos durante a semana santa diferentes tipos de atividades que relembram os diferentes momentos da semana santa. Aqui no Brasil isso é notoriamente mais um terreno utilizado pelo rebanho católico romano e o reformado. Acho que podemos aprender com eles.

A quinta-feira

Não querendo me estender muito, e precisando que os conceitos burbulhem em sua mente e aqueçam seu coração, elencarei então rápidamente a razão de cada dia ser tão especial assim, antes de debruçar-nos sobre o domingo.

O capítulo 13 de João nos coloca na quinta-feira e o detalhe é “tendo amado os seus que estavam no mundo, os amou até o fim“. Uma outra forma de traduzir seria “mostrou-lhes então que os amou perfeitamente“. Isso é apenas uma nota introdutória para uma seqüência de dialogos e discursos de Jesus centrados em preparar seus discipulos para algo que iria acontecer.

É nesse contexto que encontramos Jesus lavando os pés dos seus discipulos em uma ceremônia privada antecedendo a ceia (13:5-17). Vemos Jesus anunciando que será traído (13:18-30) que Pedro o negará (13:31-38) que é necessário guardar a calma e a fé porque um dia ele voltará para buscar os seus (14:1-3) e que seus discípulos conhecem o caminho ao Pai (14:4).

Mesmo tendo ele gasto três anos mostrando o caminho, vivendo a verdade e sendo a vida entre seus discípulos, eles não tinham compreendido esse fato. Quem traz essa dúvida é Tomé mas do jeito que está colocada, vemos que era uma dúvida do grupo. Suspeito que se eu estivesse entre os doze, também não teria entendido.

Seja como for, ele deixa claro que ele mesmo é – ao mesmo tempo – as três coisas: O caminho, A verdade e A vida (14:5-7). Ele é a realização das três necessidades básicas de todo ser humano em qualquer época. Até uma organização criminosa luta por se manter no caminho escolhido, condena a mentira dentro da sua sociedade e quer – a qualquer custo – preservar sua própria vida. Já Jesus é o climax da revelação divina ao ser humano total.

Mas Filipe (aquele que foi atrás de Natanael, e também o que recebeu os gregos que queriam ver Jesus, e também aquele ao que Jesus perguntou onde conseguiriam pão para alimentão a multidão) reforça a ideia de que -mesmo perante o autor da vida- eles não estavam entendendo coisa nenhuma do que acontecia. Não é de estranhar que hoje, para nós cristãos nominais de qualquer rebanho do século XXI, a quinta-feira nos comunique pouco e nada de forma prática.

A resposta de Jesus é simples na aparência. Superficialmente simples apenas. Mas que a podemos resumir aos efeitos práticos no seguinte: Jesus e o Pai formam uma unidade indivisível; dai que crer no Filho é Crer no Pai e não se pode crer no Pai sem crer no Filho. Eles estão em pé de igualdade. Logo a seguir, Jesus acrescenta o Espirito Santo nesta equação e o lance fica ainda mais confuso pois Judas (não o traidor) continua entendendo toda a operação em termos universalistas ao passo que Jesus volta a insistir na obra limitada do Espírito Santo naqueles que amam Jesus não como ato filosófico, ilusório ou abstrato, mas como seu Senhor. A resposta para Judas vem no final do capitulo 14 (14:31) e indica claramente que é necessário que o mundo saiba que o Filho ama o Pai como seu Senhor. Isto é na mesma forma em que ele espera que seus discípulos o amem.

Logo a seguir, encontramos a parábola da videira e os ramos, o aviso de que o mundo odiará seus discípulos (não apenas que vai achar eles chatos, mas sim que desejará a morte dos mesmos) e insiste na relação estreita que há entre os discípulos, o Filho, o Pai e o Espírito Santo (15:18,19,21,26). Jesus torna a falar do Espírito Santo e sua obra (16:5-16) – que por sinal é magnífica e completa 16:8- e conclui avisando que a tristeza que seus discipulos pronto haveriam de sentir, se convertiria em alegria (16:17-37).

Este momento privado de Jesus com seus discípulos se encerra com uma oração por si mesmo, pelos seus discípulos e pelos que haveriam de crer no futuro, ou seja, cada um de nós.

Tudo isso (13:1 ao 17:26) ou seja, mais de 19% da obra de João é dedicada apenas à quinta-feira da páscoa judaica e aos cuidados e preparativos que Jesus tinha que fazer antes da sua crucificação, morte e resurreição.

A maior parte do material que João utiliza é inédita. Ou seja, não está presente nos outros evangelhos. Isso de por sí só, deveria levar nossos olhos a revirar mais esses textos. A cultura à qual o evangelho de João é encaminhada (a greco-romana) é mais parecida com a nossa do que queremos aceitar. Por isso que este evangelho entre os quatro se encaixa mais nas perguntas que temos e é por isso que o escolho recorrentemente para a cosmovisão que tenho sobre a ação de Jesus o Cristo na sua criação.

Logo a seguir, temos o relato da prisão, a crucificação, a morte, o silêncio de sábado e a resurreição. Tudo isso apertado em dois capítulos e meio (18:1 – 20:22) que representam 11% do livro de João. Se levamos em conta que 18:1-18:27 ainda acontece na noite de quinta para sexta, a nossa atenção deveria ser redobrada para aquele dia sem por isso tirar alguma atenção da sexta, do sábado e do domingo.

Todavia, como geralemente sexta e domingo recebem bastante atenção gostaria de centrar minha atenção na quinta e no sábado (o dia mais relatado e o dia mais esquecido de João) para tentar sugerir que o foco da vida da igreja é a fé, resolução e esperança que Jesus queria estabelecer nos seus discípulos nesse dia já que se fosse após, não seria mais pela fé.

A páscoa

Falar em páscoa judia é um pleonasmo. Todavia, é uma redundância necessária pois achamos que a páscoa é cristã.

Aliás, com tanto ovinho feito de chocolate e coelhos saltitantes o significado original da páscoa tem se perdido que nem o do natal com seu Papai Noel, sua árvore, e seus presentes não dados mais ao menino rei mas sim às crianças que as temos colocado (de forma absurda e errada) como reis do lar, com o qual damos lugar a gerações cada vez mais frágeis e quebradiças. A estratagema de tirar o conteúdo original da palavra e substituir por outro igual e contrário tem dado certo. Ninguém associa Jesus com Natal nem com a Páscoa.

Se faz necessário, então, usar a redundância, o pleonasmo, a repetição de “Páscoa Judaica” para chamar a atenção sobre o fato de que ela tem um significado e não é exatamente o que celebramos como cristãos e em especial como cristãos de liturgia livre.

Para os judeus, a páscoa é a celebração da libertação liderada por Moisés do Egito. A palavra páscoa tem origem na palavra hebraica חג הפסחא (Pêssach) que significa “passar além”. Não só faz referência a passar adiante geográficamente no sentido de sairem do Egito, mas também no passar além da escravidão chegando à liberdade.

É então a festa que marca o inicio do êxodo do povo hebreu. E o Êxodo marca o inicio do ano judeu. Então a sensação que nós sentimos perto do Natal é semelhante à que os Judeus sentem nesta data toda especial para eles.

Encontramos o relato em Êxodo 12.

O Êxodo

A páscoa é uma celebração feita antes da saída, onde não haviam garantias nenhuma ainda de que iriam sair. As ultimas noticias que tinham era que o rei egipcio estava endurecido (11:10).

O cordeiro pascal (que havia sido separado no dêcimo dia do mês) seria morto à tarde do decimoquarto dia ao mesmo tempo em todas as casas (12:6).

Sempre lembro da vez que vi meu vó matar um cordeiro. Eles morrem sem fazer barulho, em completo silêncio. Não é errado imaginar como essa imagem se impregrnaria na retina dos mais novos.

A primeira coisa a ser feita após matar o cordeiro, era um ato de fé também: o sangue seria usado para marcar o batente da porta do local onde seria comido mais tarde. Geralmente queremos injetar no texto a ideia de uma coisa pesarosa, angustiante. Só quem já comeu cordeiro assado com algum molho amargo sabe o gostoso da mistura. Um pão não fermentado acompanharia essa ceia da qual não poderia sobrar nada (12:10) Ela seria comida de forma apressada, prontos para partir (12:11).

Enquanto isso acontecia do lado de dentro da casa, o pior dos terrores dos egipcios estava acontecendo. Lembre-se que a religião deles lhes garantia que era necessário fazer os rituais noturnos apropriados para poder ajudar o sol a vencer seus inimigos noturnos e sair novamente o dia seguinte. O “Terror Noturno” do que fala o salmo 91 ou a “peste que se move sorrateira nas trevas” aparentemente faz referência a esse pavor que noite após noite tomava conta dos egipcios.

Após Yavé destronar as divindades egipcias restava um último ato que mostraria sua superioridade como único Deus mas também sua justa vingança pela morte dos filhos hebreus relatada em Êxodo 1:22; a morte dos primogénitos egipcios. A soma de todos os medos egipcios tivera sua completa vazão nessa noite em que o anjo do Senhor passara sobre o Egito varrendo com mortandade todas as casas do Egito (12:29) poupando apenas as casas em que -pela fé- tinham marcado o batente da porta com sangue do cordeiro.

Logo depois, na manhã seguinte, os hebreus sairiam do Egito para nunca mais voltar. Era o início de uma nova época para o povo. A liberdade (com todos seus sensabores) se descortinava perante eles, ficando para atrás não apenas 430 anos de escravidão mas também os últimos meses de angustia ocasionados pela resposta de Deus ao clamor do povo.

A páscoa é então esta celebração anual que os judeus têm desde aquela época até o presente. E é numa festa dessas que encontramos Jesus com seus discípulos nas passagens que nos ocupam hoje.

A celebração cristã

É na páscoa judaica que Jesus é preso, morto e resurreto. Esse é nosso ponto de contato com a páscoa judaica. O cordeiro pascal perfeito (Jesus o Cristo) já foi sacrificado (1 Co. 5:17) não havendo – portanto – possibilidade de celebrarmos outra páscoa. O que nos resta é a celebração da ceia do Senhor que é a ordenança por meio da qual relembramos e anunciamos a morte de Jesus o Senhor e Messias até que ele volte.

Todavia, é também a páscoa judaica e a ceia cristã o ponto de inicio de uma nova criação. Assim como a primeira páscoa é o inicio do ano hebreu, o inicio do êxodo que depois daria lugar à conquista da terra prometida, é a ceia do Senhor (a última da qual ele participou até voltar Mt.26:29) o inicio de uma coisa completamente nova. Em certo sentido é nosso Êxodo mas também nossa Gênesis. Ou seja, o nosso peregrinar nesta terra, mas também o inicio da nova criação.

Geralmente as pessoas que habitam este planeta podem ser agrupadas em dois grandes categorias: aqueles que acham que Deus sim criou o mundo mas o deixou abandonado a sua própria sorte e os que acreditam que chegar ao prazer sem sentir nenhum tipo de dor ou efeito dos afetos é o ideal.

A ceia do Senhor nos relembra aos cristãos que exatamente estamos fora desses dois grupos. Primeiro porque o prazer pessoal nunca pode ser a filosofía de vida já que ele está preso a esta criação. A não ser que seu maior prazer seja Jesus o Cristo, não há lugar para ser o prazer sem dor a bússola de sua vida. Segundo porque é exatamente na ultima páscoa celebrada e na primeira ceia que vemos que Deus não deixou sua criação degringolar.

A criação

Ele não fez robozinhos aos quais se dá corda e se abandona rodando sozinhos. Adão, Noé e Abraão são apenas precursores de um mesmo projeto: uma criação com vida própria cuja maior alegria é servir seu criador com espírito voluntarioso.

Nesse sentido, Jesús – então – não é um plano de emergência ativado de última hora porque nem Adão, nem Noé, nem Abraão conseguiram atingir o alvo de criar uma familia universal consagrada a servir alegremente ao criador. Trata-se na realidade da realização do projeto original em que apenas Deus – o criador – leva absolutamente toda a gloria.

Se Adão, Noé ou Abraão tivessem conseguido o alvo de se tornarem um único povo ou uma única e extensa familia de adoradores, logo, o plano original não teria razão de ser pois Deus seria – basicamente – redundante.

Celebramos então – junto com toda a atividade da quinta-feira e o silêncio do sábado – a consumação do plano divino: o inicio de uma nova ordem cósmica em que o Rei conquista o território e ocupa o lugar que lhe é por direito seu e que seus servos insitiram muitas vezes em dar ao seu inimigo.

Se paramos um pouco para olhar a última palavra de Jesus antes da sua morte registrada por João no 19:30 “tetelestai” – “está consumado” precisamos parar e ficar em silêncio observando essa manifestação do Rei.

Não se trata apenas de uma palavra se bem que ela aparece apenas duas vezes no Novo Testamento (João 19:28 e 19:30) mas uma declaração formal de que a sexta-feira da nova criação chegara ao fim. Na primeira criação o homem é criado na sexta-feira. Na segunda criação o homem perfeito morre na sexta-feira para poder dar lugar à nova criação.

Da mesma forma que na primeira criação Deus descansou das suas obras (Gên 2:2;3) João nos registra um dia inteiro de silêncio sem nenhum registro. Ou dito de outra forma: não há sequer uma linha escrita no evangelho de João ao respeito do sábado. Tetelestai: está consumado; agora vem o descanso.

Na primeira criação sendo o homem criado na sexta feira, o primeiro dia completo dele seria o sábado ou o dia de descanso.

Na segunda criação o homem perfeito descansa o sábado inteiro.

Os dois sábados nos levam apenas à conclusão de que Deus continua no controle. Ao final das contas, é exatamente o que o sábado relembra: independente do seu esforço a criação continua funcionando na boa.

A morte não pode impedir Deus de realizar sua obra. Da mesma forma que a morte entrou por meio de Adão, é por meio de Jesus que a vida entra profusamente na antiga criação. A ordem se inverte colocando as coisas de novo no lugar que eram para estar sempre.

É exatamente isso que celebramos: Jesus colocou as coisas de novo no lugar e ele tomou as rédeas. A vida – que hoje se extende a todos – só é possível porque Jesus o Ungido nos libertou da escravidão.

Se é somente para esta vida que temos esperança em Cristo, dentre todos os homens somos os mais dignos de compaixão.
Mas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo as primícias dentre aqueles que dormiram.
Visto que a morte veio por meio de um só homem, também a ressurreição dos mortos veio por meio de um só homem.
Pois da mesma forma como em Adão todos morrem, em Cristo todos serão vivificados.
Mas cada um por sua vez: Cristo, o primeiro; depois, quando ele vier, os que lhe pertencem.
Então virá o fim, quando ele entregar o Reino a Deus, o Pai, depois de ter destruído todo domínio, autoridade e poder.
Pois é necessário que ele reine até que todos os seus inimigos sejam postos debaixo de seus pés.
O último inimigo a ser destruído é a morte.

1 Coríntios 15:19-26

Essa nova ordem mundial, que está sendo implementada não pelas instituições cristãs mas pela vida transformada daqueles que tem entregado a vida ao Rei, terá sua realização completa na segunda vinda de Jesus o Cristo.

Propósito de vida

É esta a razão de existência da igreja. Não apenas de cada congregação local, mas da Igreja do Senhor que não conhece limites de credo, raça, sexo ou passado como vemos em Efésios 2.

É apenas em razão da morte e ressurreição de Jesus que você e eu podemos ter a vida do Eterno em nós mas também ter acesso à vida eterna já iniciada. Essa nova ordem não se distancia muito daqueles propósitos originais que Deus tinha na criação. Não poderia ser diferente, já que o que Deus está fazendo hoje por meio da igreja é colocar essa criação em ordem até chegar o momento adequado de eliminar os inimigos que ainda – abusando da liberdade – se levantam contra a ação de Deus.

É por isso que tudo que você faz, cobra um novo brilho e um novo sentido, porque não se trata de grandes construções físicas ou materiais mas apenas de saber tocar com ternura e firmeza a vida do próximo.

Contudo, pode ser que você desanime. Que em algum momento diga: a vida cristã não vale a pena; estou cansado; de nada vale meu esforço; tudo o que aqui fizer aqui vai ficar; o que vale é a alma apenas e por ai vai.

Lembre então do seguinte versículo:

Portanto, meus amados irmãos, mantenham-se firmes, e que nada os abale. Sejam sempre dedicados à obra do Senhor, pois vocês sabem que, no Senhor, o trabalho de vocês não será inútil.

1 Coríntios 15:58

Salvos pela fé, apenas.

É de compreensão comum que as pessoas se salvavam no antigo testamento por seguir as obras da Lei, ao passo que no novo testamento seria apenas pela graça.

A salvação sempre foi, é e será apenas por fé.

Fé num salvador que haveria de vir no caso do antigo testamento.

Fé num salvador presente no tempo de Jesus.

E fé num salvador que já veio nos tempos do novo pacto. Isto é; agora.

Dêem-me um ponto de apoio e moverei o mundo diz a frase de Arquimedes. Tal parece que isso foi o que aconteceu com Lutero entre 1515 e 1522 ao se deparar com Romanos 1:17 e 3:23-26

Lutero

Lutero era um homem atormentado com a falta de segurança da sua salvação. Ao final das contas, ele se conhecia bem e sempre havia um outro pecado para ser confessado, uma outra penitência para ser praticada, uma outra punição para ser aplicada.

Sendo Deus santo e ele tão pecador, não havia oportunidade para ele ser salvo, já que não havia fim nessa espiral de auto-perseguição espiritual que o afastava cada vez mais da solução.

Aprouve a Deus ter Lutero um confessor que lhe encaminhou a ler a Bíblia, em particular a epístola de São Paulo aos Romanos.

A vida comum

Lutero não era o único a estar atormentado por este assunto. Na realidade a sociedade como um todo vivia sob esta pressão.

A igreja de Roma estabelecia penitencias para pecados veniais. Isto é: aqueles que não levam à perdição mas que trazem castigo segundo a doutrina Romana. Para tais, exisitíam missas particulares, indulgências, e outras cerimônias dependendo da quantidade, da gravidade e do poder adquisitivo do pecador.

Diferente dos tempos atuais, a vida no fim da idade média estava permeada completamente pela hegemonia da igreja Romana. Ou seja a vida politica, social, familiar, intelectual, artística e todas as outras áreas que você consiga imaginar, estavam impregnadas pelos conceitos, ideias, filosofias, ritos e leis que emergiam na igreja de Roma.

Não que Lutero tenha sido a primeira voz a se levantar contra o sistema. Porém ele foi o primeiro a articular formalmente uma representação do que não mais se encaixava, em especial na esfera espiritual. Não era mais possível que – tendo o renascimento mostrado a importância das ideias, o valor do ser humano, a relevância da liberdade na vida comum – seres pensantes como Lutero permanecessem quietos.

No tempo de Lutero, a sociedade inteira estava fervilhando. Nomes como Nicolau Maquiavel, Nicolau Copérnico e Leonardo Da Vinci já tinham ou estavam fazendo sua contribuição quando Lutero entra em cena.

Logo, o que às vezes se atribui apenas a Lutero tem que ser visto num contexto mais amplo e fiel aos fatos comprovados.

Então, o que esses dois textos chamaram a atenção deste monge alemão e porquê trouxeram tal mudança tão profunda e marcante que até hoje a cristiandade ocidental se divide entre Católicos e Protestantes?

Romanos 1:17

O profeta Habacuque, observando a sociedade em que vivia, exige do Senhor uma resposta. Anseia por um desdobramento de um Deus justo sobre uma sociedade encardida no pecado.

Nesse contexto, o profeta registra a frase:

Eis que sucumbe o que não tem a alma íntegra, mas o justo vive por sua fidelidade.

Paulo, escreve a epístola aos cristãos da capital do império romano por volta do ano 56 da nossa era. Nela ele recolhe o trecho de Habacuqe mas com uma ênfase um pouco diferente:

Porque no evangelho é revelada a justiça de Deus, uma justiça que do princípio ao fim é pela fé, como está escrito: “O justo viverá pela fé”.

Se o “justo” a que Paulo faz referência fosse um que consegue estabelecer sua própria justiça, então carece sentido a frase imediatamente anterior em que diz “no evangelho é revelada a justiça de Deus” Pois se o justo se faz a si mesmo, não há necessidade de uma boa notícia e nem de intervenção divina.

Assim sendo, há quem diga que a frase fica melhor com uma reorganização. Ficando assim: “O justo pela fé, viverá“.

Justificação é um termo judicial que se opõe – no seu conceito – ao de ser condenado. O juizo final não admite mais do que dois resultados apenas: Justificado ou condenado.

É justamente o fato de ser justificado o que trouxe paz a Lutero. Ele se deparou com Romanos 5:1 e 8:1 textos nos quais o apóstolo Paulo declara que

  1. estamos em paz com Deus e
  2. não há mais condenação possível.

Não é apenas um ato imaginativo de Deus em que ele se elude com a situação do Homem tentando convencer-se de que o Homem é uma coisa que não é: justo. Trata-se mais da injeção do seu Espírito na vida do ser humano por meio do qual a justiça divina começa a fazer morada no individuo.

Lutero, plenamente embuido do espírito da sua época que colocava em realçe o individuo e em relevo o ser humano, se apropia desta verdade e a transforma no seu ponto de apoio ao redor do qual todos os outros começam a girar. Mais tarde a reforma colocaria eles em ordem: Sola Fide, Sola Scriptura, Solus Christus, Sola Gratia, Soli Deo Gloria. Ou seja, Apenas Fé, Apenas a Escritura, Apenas Cristo, Apenas a graça e unicamente a Deus se deve Glória.

Romanos 3:23-26

Demos agora uma olhada na outra passagem que escolhemos hoje para exemplificar o pensamento de Lutero.

É obvio que não dá em uma pregação de 20 minutos encaixar tudo o que deve ser dito sobre Romanos 3. Nem sequer da para colocar aquilo que Lutero descobriu já que a vivência deste homem neste texto foi muito marcante. Apenas conseguiremos vagamente exemplificar o pensamento de Paulo e Lutero sobre estes assuntos e isso de forma muito superficial. Entendemos, todavia, ser o mínimo que pode ser dito sobre o texto.

O versículo 23, faz uma generalização daquelas que costuma provocar grandes problemas.

todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus

Paulo poderia ter dito “há algumas pessoas realmente ruins nesta vida”. Poderia ter pontoado que “há alguns que não mereciam estar vivos por causa da sua ruindade”.

Mas não. Paulo diz: “todos pecaram“. Simplesmente não há distinção. Judeu ou não, todos pecaram. Não se trata apenas – como algum bom agostiniano diria – de sermos por natureza pecadores. Mas sim de que cada um dos seres humanos tem pecado.

Pecado é uma palavra muito simples nas línugas neo-latinas e anglosaxonas para traduzir uma variedade bem ampla de palavras que trazem a ideia de errar ao alvo.

Não é um errar ao alvo por incapacidade ou por falta de vontade apenas. É errar ao alvo colocado pelo criador por incapacidade, por falta de vontade e por exercicio da vontade humana.

Pode parecer desgarrador – aos olhos humanistas da nossa época – o fato de Paulo dizer que “todos pecaram“. Mas se você para para pensar um pouco na depressão profunda à que Lutero estava exposto por não conseguir agradar a Deus, você rápidamente verá que se trata de motivo de grande alegria saber que está a humanidade toda no mesmo barco.

Não que o fato de estarmos “destituidos da glória de Deus” seja motivo de alegria ou de louvores. Mas sim o que o texto fala: Deus é quem justifica mediante a fé em Cristo a todos os que crêem. (Rom 3:22) Isso sim é motivo de grande alegria: sabermos que ao crermos temos sido não apenas justificados, mas remidos.

Redenção é um termo comercial. É o preço pago em nosso resgate. Na analogia bíblica, éramos escravos e agora fomos libertos pois o preço de nossa liberdade foi pago completamente. Ou como diz o hino “foi pago de um modo cabal“.

Não cabe mais possíbilidade do antigo dono reclamar nenhum direito sobre nós pois o preço justo e satisfatório foi pago na cruz.

Deus ofereceu [Jesus Cristo] como sacrifício para propiciação mediante a fé, pelo seu sangue, demonstrando a sua justiça

Isso sim é motivo de alegria!

Somos plenamente salvos. Se bem éramos completamente escravos. Se bem estávamos completamente condenados. Se bem éramos completamente incapazes de salvar a nós mesmos. Deus se mostra justo ao nos salvar. Como assim justo?

Bem, porque a encrenca em que nos havíamos metido era tão grande e a dívida era tão grande que – mesmo Deus tendo todo o poder para reverter a situação pela força – escolhe o caminho do sacrifício e do pagamento completo da dívida que nós -seres humanos- tínhamos criado e que nos era impossível saldar.

Ele é justo e justificador de todos os que nele crêem. (Rom. 3:26) Quando a Biblia diz “é” se refere ao caráter de Deus. Agir de outra forma seria deixar de ser Deus. E isso é impossível.

É por isso que esse texto lúgubre de “todos pecaram” traz tanta luz e alegria. Estamos todos no mesmo nível. Todos precisamos da mesma graça e nenhum de nós merece coisa alguma por mais que todas as propagandas do momento sinalem o contrário.

Conclusão

Assim como nos tempos de Habacuque, de Paulo, de Lutero, estámos perante uma sociedade que a cada dia se degrada e busca sua própria corrupção.

Não é de agora que há necessidade de uma redescoberta do caráter básico de Deus. É contra essa descoberta que o sistema deste mundo atua e é contra esse sistema diabólico que a voz da igreja em constante reforma se deve levantar mais uma vez.

Meus araminhos e os cravos dEle

Marco é um bom amigo e irmão de uma igreja local que costumamos frequentar.

Ele também passou por uma operação de peito aberto e uma manhã qualquer ele me disse “Eu sei onde estão meus araminhos”. Pronto: fiquei fixado com aquilo. Eu não queria saber onde estavam meus araminhos. Deixa eles quietos lá dentro. Nem me lembra deles.

Para quem não sabe, quando seu peito é aberto ele precisa ser sujeito com arames.  Sua responsabilidade é ficar de repouso absoluto até os araminhos fazerem o serviço deles que é apenas manter o osso no lugar até ele soldar certinho. Penso  – no meu desconhecimento – que depois disso poderiam ser retirados por não serem mais necessários visto terem cumprido sua missão…. mas isso não me parece que seria uma opção viável.

Tem dias que você acorda e não há nenhuma sensação de que tenha ocorrido uma alteração tão grande no seu peito. Ai você fica quietinho. como que querendo lembrar como era a vida antes da intervenção. Em algum momento você tem que se mexer porque ao final das contas tem que sair da cama, e ai você lembra que seu peito está ali no lugar por conta dos araminhos.

Há alguns anos – em 2001 mais precisamente – quando tive que pregar pela primeira vez após minha ex e eu termos perdido o Natan nos dias do seu nascimento, lembro que foquei na morte de Jesus na cruz e divaguei pela ideia de como Deus pai deve ter sentido quando a morte do seu Filho unigênito. Se não houvesse morte de um justo, não haveria possibilidade de retirar do Diabo o poder sobre a morte já que ela é o pagamento justo pelo pecado. Se a morte fosse apenas uma simulação, não haveria possibilidade de quebrar esse laço pois seria uma mentira que é um pecado tornando todo o resgate uma grande palhaçada. A morte de Jesus, o Cristo, devia ser completamente real. Assim sendo, o sofrimento do Pai deve ter sido também terrível ao final das contas, omnipresente do jeito que é, não poderia se esconder muito longe do filho enquanto dizia “por quê me abandonaste?”

Anos se passaram e os meus araminhos me fazem refletir nos pregos que fixaram Jesus na cruz. Mais do que os pregos, o que fixou o Cristo lá foi a própria e decisão de sofrer em nosso lugar. Então mais do que nos pregos penso na mutação do perfeito divino para o completo humano e como isso mudou não apenas nossa história mas também a história do divino.

Me parece que pouco paramos para pensar que a mutação sofrida pelo Cristo acontece em tempo específico (Ef.1:10 e Gá.4:4) e as conseqüências disso são pela eternidade. Ou seja, Jesus após a glorificação não volta ao seu estado inicial mas sim continua sendo o homem perfeito. Por isso ele é o primogênito da ressurreição. Como ele é, nós seremos (1Jo.3:2; Fil.3:21). Ele veio para nós mas nós vamos para ele e por causa dele. Quando ele volte, será perfeitamente reconhecível (Lc.21:27; Ap.1:7)

Então não se trata mais de apenas dizer que Jesus é Deus encarnado mas também de fixar que as conseqüências disso se estendem pela semi-eternidade que começou no ato da encarnação. E com encarnação não me refiro ao nascimento e sim à mesma fecundação.

Meus araminhos me acompanharão ao túmulo. Caso seja cremado, eles se derreterão e fundirão com o material orgânico e outra parte se tornará volátil. Mas caso seja enterrado, quando forem me colocar na urna, lá estarão os meus araminhos como um lembrete constante de ter passado pelo fundo do olho da agulha.

Como será que é com Jesus? Será que ele lembra como era antes dos pregos? E se lembra, como o faz? Sendo que é vitorioso, há possibilidade de que ele sinta saudades sobre o estado anterior? Sei que estou indo longe com estas perguntas mas acho elas válidas para talvez de alguma forma lhe fazer entender – querido leitor – que o sacrifício completo foi realizado pelo Cristo e não adianta querer conquistar qualquer coisa eterna pelas obras. Também não é possível torcer o braço do criador, já que ele fez tudo e de forma completa. Se não fosse uma obra completa, para que fazê-la?

Bom, seja como for, meus araminhos me fazem lembrar dos pregos dEle.

Perdendo a vez

Dizem que se colocamos um sapo em água fria e aos poucos vamos aquecendo ela, ele morre fervido sem sequer perceber o que está acontecendo. Não fui atrás da veracidade científica disto mas – como em tantas outras situações – pegarei apenas o conceito popular bem conhecido para tratar de coisas mais profundas. Um outro dia vemos se é verdade ou não que os batráquios morrem fervidos aos poucos sem perceber.

O fato é que a igreja (não a sua congregação local apenas, mas todas e cada uma das congregações cristãs locais) se está desfazendo. Em um sentido isso é bom porque houve uma tentativa de reconstrução ao longo dos últimos quinhentos anos de um certo “catedralicismo” evangélico na tentativa de emular inconscientemente (ou não) o lugar do qual saímos.

Todavia, há um outro sentido que é preocupante. Básicamente a igreja não mais se congrega. Ela pode até se juntar de vez em tanto… uma vez por semana, uma vez por mês… mas não se congrega. Os processos evolutivos volitivos são deixados de lado por uma busca de certa “espontaneidade” que nada mais é do que uma fina camada de verniz sob a qual se esconde uma procrastinação generalizada e – vista de certa distância até poderiamos falar de uma “procrastinação harmônica” já que a mesma atinge todos e cada um dos nichos evangélicos.

Em conjunto, consideramos o fato de congregar-se como limitador, castrador, desmotivador quando na realidade é apenas no ato de congregar-se que o discípulo pode crescer. Obvio que não digo com isso que há momentos de estar sozinho ou de retiro ou de reencontro com certas essencialidades individuais. Mas meu foco é o desleixo com o que tratamos o ato da congregação

Para alguns, congregar-se é ir no culto de domingo à noite. Para falar a verdade, acho que a maior parte das pessoas – se consultadas – falariam que se congregar-se trata-se disso. Para quem não se congrega, para quem não participa ativamente da construção da identidade local, sair do sofá e ir a um culto domingo à noite, realmente é um avanço. Só que a vida cristã não tem a ver com micro-avanços e sim com uma mudança na raiz da vida, isto é, na forma de pensar, de ser.

Há uma ideia que parece boa permeando as nossas congregações: somos todos parte da mesma e única igreja. Se bem isso é uma verdade teológica visceral, ela apenas dissimula nosso completo desleixo com a construção da identidade particular. O equivalente é mais ou menos como dizer que somos todos seres humanos e por isso não há necessidade de construirmos famílias.

Tenho convivido com três meios evangélicos diversos e conheço mais três de forma indireta (por meio de amigos, conhecidos etc). De primeira mão conheço os batistas, os presbiterianos e os pentecostais. Indiretamente conheço os menonitas, os irmãos livres e os metodistas e um grupo neo-pentecostal. Tirando os neo-pentecostais da equação (por conta de ser o foco apenas a prosperidade financeira/emocional/terrena da pessoa) os outros grupos me merecem especial atenção porque – observando-os – vejo uma degradação paulatina, lenta e constante do tecido evangélico.

Todos os meios sérios de construção da identidade evangélica local enfrentam o mesmo problema: o povo não mais se congrega, quando se congrega o faz simbólicamente e o símbolo (o culto) é esvaziado do seu propósito principal que é apenas a exposição da palavra de diferentes formas (pregação, louvor, adoração, esclarecimento do funcionamento local).

Lembro que nos tempos do seminário a gente debatia se o anuncio das atividades da igreja deveria ir antes ou depois da mensagem; no inicio, no meio ou no fim do culto. Temia-se naquela época – e com razão – cair no ativismo. Contudo, a igreja em funcionamento ao longo da semana é uma necessidade fundamental dela. Ninguém espera que você esteja presente a todos os cultos, seria mais ou menos como esperar que você engolisse o cardápio inteiro que um restaurante está oferecendo. Mas em lugar de mostrar as atividades da igreja como tal, o pêndulo tem-se movido ao extremo contrário, ao ponto de achar até pecaminoso participar de alguma atividade da igreja fora do culto. O equilíbrio então – para mim – está em entender que se trata apenas de um cardápio e que é responsabilidade do membro (sim do membro e não do pastor) manter uma alimentação espiritual saudável. Quase com certeza no seu estomago o Strogonoff ganha de uma boa salada de brócolis com chuchu sem sal. Mas é quase uma certeza que um culto de domingo com uma boa equipe de louvor, um banco aconchegante, uma boa iluminação, um ar condicionado e uma pregação suave ganham de 1000 a 1 do evangelismo na rua, da ajuda social, ou do ministério de oração da igreja.

Aos poucos, a igreja local vai se desconstruindo. Lastreado num conceito teológico bom (somos todos parte de uma mesma, única e grande igreja) transvestimos nossa incapacidade chamando-a de liberdade e – como pastores – abandomanos o posto, jogamos a culpa nos membros, na instituição, no momento e a coisa toda degringola.

Neste inicio do século XXI há necessidade sim de reforçar as identidades locais. O “neoliberalismo” teológico apenas ajuda para ir tornando a água fria em água morna e matando -aos poucos- a vitalidade da igreja. Ai a pergunta do poeta se torna bem oportuna “Como pode um peixe vivo, viver fora d’agua fria?

Minha mãe – forjada no discipulado de um pastor russo que escapou da imbecilidade bolchevique – é da opinião que a igreja apenas pode florecer sob pressão. Que não há nada que substitua uma perseguição para – ao final das contas – revelar a verdadeira igreja. Pelo que entendo os diamantes são feitos assim também: carvão sob alta pressão.

Congregar-se, então, é para mim uma questão de vitalidade. Ou a igreja local tem vida e se congrega ou ela apenas é um simulacro de igreja. Não pode ser que a igreja do século XIX tenha-se tornado tão cega, surda e muda e que apenas almeje uma boa pregação. Não pode ser que os pastores tenham perdido tanto assim o foco que não mais chorem, sofram e vivenciem dores de parto pela formação da identidade do Cristo na igreja local. Ou vai me dizer que um reflexo da luz – mesmo não sendo a luz completa – não deveria de se parecer com a luz? É obvio que sim! A igreja local do Cristo vivo deve – de mais de uma forma – refletir Ele e apenas Ele. Este “deve” aqui não se trata de ações compulsórias imposta por uma cúria que quer se evadir das suas responsabilidades pessoais mas sim de demonstração da essencialidade vital da congregação local.

Por outro lado, a vida é sofrimento. Sem crise não há mudança. Sem sofrimento não há vida porque sem sofrimento não há escolhas apenas porque “em time que está ganhando, não se mexe” e – como não sabemos se uma decisão nos leva à vitória ou à derrota, preferimos o marasmo do que o risco, a morte do que a vida. Congregar-se é sofrer. É arriscar-se a amar e não ser amado, a se entregar sem receber nada em troca, a se dedicar e sentir que é o único, a chamar e observar que quase ninguém responde, a conclamar e ver que quase ninguém atende. Nada mais parecido com o chamado de Jesus. A oração de São Francisco resume assim “É perdoando que se é perdoado e morrendo que se vive” mas isso é apenas um resumo parcial da ideia original.

Congregar-se é responder afirmativamente ao chamado universal de Deus para os cristãos. E são apenas os cristãos que podem responder. O outro, o de fora, nem ouve o chamado, não se inquieta com a coisa local, não sofre. O outro precisa primeiro passar pela Cruz, mas não pelo lado de baixo, pela frente ou pela parte de trás da cruz, precisa estar crucificado juntamente com Cristo… plenamente morto. Porque se Cristo morreu e ressurgiu, assim também a porta de entrada para a vida cristã, é a cruz e nada mais do que a cruz. Só assim que pode passar a enxergar a realidade de um mundo que se perde e de uma igreja local que cada vez mais opta (de forma consciente ou não) por abandonar o seu posto.

Você é um membro de uma igreja local e não sente falta de congregar-se? Acha que é bobagem institucional?

Você pastoreia uma congregação e não sente falta de mostrar na prática (e não a esmo) como suas ovelhas podem servir congregando-se não sob desafios ou projetos mas sob o cajado do Cristo? Não consegue enxergar que as ovelhas precisam de você?

Bom, o único caminho é o da cruz (Gál.2:20). Apenas naquela posição (de braços abertos, impotente de abraçar) e naquela altura (onde pode ver por cima de outras cabeças mas os outros vem seu vexame intimo) e naquela condição (de ir morrendo cada vez mais um pouco) é que seus olhos espirituais podem ser abertos e se arrepender do seu pecado.

Estamos morrendo aos poucos. Sem perceber. Sem querer. Pecando. Abandonando o posto.

Pr.Esteban Daniel Dortta

Cristo, nosso cordeiro pascoal foi crucificado

Pensar na pascoa é, para muitas pessoas, sinónimo de festa, ovos de chocolates, reencontro com a familia. Eu acho que isso tudo tem seu valor e que deve ser feito, mas despe a páscoa do seu verdadeiro significado original. Uma segunda coisa é indagar se é possível para um cristão celebrar a páscoa.

A pascoa como tal nada mais é do que uma festa judia (e judaizante) na que se celebra o Pessach, ou seja, a passagem do anjo da morte na terra do egito pouco antes da liberação do povo judeu. No sentido de liberação, nada mais apropriado do que concordar com o apóstolo Paulo de que “Cristo nosso cordeiro pascoal já foi sacrificado” (1Co.5:7) já que -de fato- Jesus o Cristo é nosso grande libertador. Nada se compara a ele e e nele que o Pessach tem seu significado realizado por completo.

Porém, a sociedade tem gradativamente desvirtuado esta verdade simples. Para falar a verdade a sociedade não está nem ai para o significado da pascoa ou do natal. O problema é que a igreja institucionalizada (grande ou pequena) gosta de se prostituir atras da ideia de que tem que “atrair” as pessoas. Se Jesus fosse um produto, uma coisa a ser vendida, eu até concordaria. Nada mais apropriado e justo do que engabelar seu cliente falando coisas que ele quer ouvir, lhe dando aquilo que ele quer obter, para o seu produto ser mais vendido e com isso engrandecer os lucros de quem vende.

Das dias grandes datas cristãs – o natal e a pascoa- é com certeza a páscoa e não o natal a que celebramos em data mais certa. Porém, tanto uma como outra se presta parta conchavos politico-econômicos. O que atrai para o Cristo tem que ser o próprio Cristo. E – se possível – crucificado. Ao menos era isso o que ele pretendia ao relembrar da serpente erguida por Moises no deserto. Logo, se era isso que ele queria, para que eu me meter com isso?

No se trata de coelhos, se trata de um cordeiro. Não se trata de chocolate e sim de sangue. E não se trata de muita vida e sim de morte. Paulo escrevendo aos corintios faz a mesma menção na ceia (que lembremos: Jesus celebrou a sua última ceia justamente durante a pascoa) ao dizer: “Todas as vezes que beberdes deste calice… a morte do Senhor anunciais até que ele venha”. E ele mesmo quando no inicio da carta diz qual era sua mensagem fala: “anunciar a Cristo, e este crucificado”

Sim, claro que sei que a vitória na cruz é essencial à fé cristã; mas isso é no domingo.  Sexta e sábado celebramos – sim, celebramos – a morte de Jesus. Ao final das contas é por conta desta morte que você e eu não temos que pagar pelos nossos próprios pecados.

Então, para que sujar uma mensagem tão especial com ideias vindas do paganismo? Para que prostituir a mensagem? Para que desvirtuar o que é grandioso? Eu lhe direi: Para não sermos engolidos pela concorrência. Tudo tem se transformado numa luta imbecil por números. Não há mais vida. Apenas os números importam. Pastores jovens são massacrados e trucidados apenas por esta simples e diabólica ideia: Sua igreja precisa ser grande.

Paremos de brincar com fogo. Abandonemos de forma prática essa afronta. Passemos para a minoria, façamos eco da nossa eleição em Cristo. E paremos de ensinar aos nossos filhos e netos que está bem se prostituir nas ideias contanto “mais alguém seja alcançado”. Ninguém alcança ninguém, apenas o Espirito Santo convence de pecado, justiça e juízo. Sem isso, nada feito.

Jesus e a morte

Evangelho de João

Jesus e a Morte

João 11:1-12:50

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Introdução

Enquanto estamos vivos nos achamos grande coisa. Mesmo até quem tem que mexer com cadáveres, se acha grande coisa. Porém, quando a morte bate de pertinho, entendemos nossa própria grande limitação1.

Caminhamos para a morte. É inevitável. Por conta do nosso espírito ser eterno, nos achamos com capacidade de realização eterna. Provar isso é bastante simples: observe os mais idosos, repare que eles tem sonhos como se ainda tivessem 30, 50, 70 anos de vida por diante.

A morte é a última grande consequência nesta terra da entrada do Pecado2 no mundo. A limitação da vida é um corolário das nossas próprias decisões irreversíveis como raça. Escolhemos – como raça – nos parecermos com o Criador e por conta disso nos distinguimos ainda mais. É uma ironia fatal (sem ironias).

Assim como o cego de nascença não tinha escolhido ser cego mas a cegueira era um fruto do Pecado (e o apedrejamento era o curso socio-legal do pecado de adultério mesmo que a adultera não teria escolhido essa consequência) assim também não escolhemos ter vida perecível.

O início de tudo

O que faz o criador? Se respeita plenamente a decisão do Homem3 e o deixa seguir seu próprio rumo sem intervir, ele mesmo se torna irresponsável pela sua própria criação. Se ele intervêm na marra e lhe impõe suas decisões, o Homem o poderia – com justiça – acusar o criador de injusto, intervencionista e por ai vai. Isso por só elencar um par de opções simplificantes.

O pior é que o inimigo da criação (que transformamos, como raça, em príncipe deste mundo pelas nossas decisões livres lá no Éden) ficaria impune. Por mais que o que ele fez foi plenamente legal (pois escolhemos no pleno uso da nossa liberdade), é imoral e por tanto alguma forma de tirá-lo do poder deve de existir. Ao mesmo tempo, Deus é justo, ou seja, ele não poderia enganar a humanidade como o príncipe deste mundo fez.

A solução

A morte de Jesus na cruz tem várias consequências muitas delas imensuráveis desde nossa perspectiva de criaturas sujeitas a este mundo material. A síntese deste assunto está em João 12:31 e 32: Agora, é o juízo deste mundo; agora, será expulso o príncipe deste mundo; e eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim. O ápice da história não é o nascimento do Cristo numa manjedoura e sim a morte do mesmo na cruz. É a morte e não a ressurreição do Cristo o que destrona o príncipe deste mundo. A legalidade da morte foi eliminada por ter morrido o único ser humano justo e com isso o Criador readquire os seus direitos sobre o ser humano e sua existência eterna.

A estrutura do texto

Neste trecho observamos o seguinte fluxo: Cap 11: fato – discurso – ação – reação Cap 12: fato – ação – discurso – reação.

Ou seja, é mais ou menos a mensa estrutura que observamos em cada um dos blocos de João. Não poderia ser de outra forma, já que é a própria estrutura primária do texto a que foi usada para estabelecer os blocos.

Novamente, as duas grandes partes que compõem o bloco mostram certo paralelismo e os assuntos estão entrelaçados. Igual que nos outros blocos, o destaque é para a incredulidade de muitos em contraposição com a credulidade (muitas vezes dubitativa) de poucos.

Lázaro

Quando Jesus trata com Marta sobre a morte do Lazaro, a fé de Marta (muitas vezes criticada por preferir os afazeres da casa do que estar com o mestre) é exposta – assim como sua dor – na frase recolhida em João 11:24 “Eu sei que ele vai ressuscitar na ressurreição, no último dia”. Isso refletia talvez a classe social à que Marta, Maria e Lazaro pertenciam (Bethania significa casa dos pobres) e quase que por conseguinte a linha doutrinaria e politica à que pertenciam: os fariseus4. Isso porque os fariseus eram mais povão que os saduceus e acreditavam na ressurreição. Mas também refletiria algum ensinamento prévio dado por Jesus; mas ai estaríamos especulando ainda mais, já que não há registro específico disso.

Seja como for perante a morte do seu amigo Lazaro, Jesus expõe seus sentimentos e também seu poder. Este homem é o que dizia que podia perdoar pecados e se bem haviam controvérsias sobre se um homem podia ou não perdoar outro homem o que não haviam dúvidas era que ninguém poderia ressuscitar mortos. Em João não temos a frase “Qual é mais fácil? dizer: Os teus pecados te são perdoados; ou dizer: Levanta-te, e anda?” como em Lucas 5:23 porém a proposta é a mesma: Os capítulos 8 e 9 falam do perdão de pecados, o 10 fala de Jesus e seu rebanho e o 11 e 12 falam do poder de Jesus sobre a morte. E da mesma forma que nos evangelhos sinóticos, é esse perdão dos pecados (e a liberação da raiz do pecado) o alicerce sobre o qual pode ser construída a igreja demolindo a construção anterior mas mantendo a mesma base: O criador é Senhor da criatura.

A espera de Jesus antes de ir até Betânia e as três colocações que repetem “Se estivesses aqui ele não teria morrido” levam a pensar que este milagre era mister de acontecer antes de ele mesmo ser morto. Ou seja, todos (Marta v.20, Maria v.32, os amigos da família v.37) achavam que Jesus poderia ter impedido a morte, mas não que poderia vencê-la revertendo seus efeitos. Nem mesmo Marta – que é a que chega mais perto – consegue descifrar o que está por vir.

Quatro dias no túmulo não foram suficientes para deter a vida. Porém, mesmo a vida sendo devolvida a um morto que já cheirava mal, nem por isso a fé dos homens se voltaram para Jesus. O interesse de Jesus em que as pessoas cressem, fica manifesto no v.42. O fato de que era isso que naturalmente se esperava dos que entendiam o propósito de Jesus, fica recolhido no v.45 nas palavras “muitos … vendo o que Jesus fizera, creram nele” E finalmente, que os líderes religiosos do momento sabiam que o povo poderia chegar a crer fica registrado no v.48 “Se o deixarmos, todos crerão nele, e então os romanos virão e tirarão tanto o nosso lugar como a nossa nação

A unção em Betânia

Até hoje o corpo de um judeu é preparado mais ou menos da mesma forma em que eram preparados no tempo de Jesus. De fato, o ritual pelo que os judeus se conduzem hoje é o instituído pelo rabi Gamaliel, o mesmo que ensinou Paulo.

Basicamente ele é um ato religioso judaico e não apenas um mero ritual higiênico por mais que a higiene esteja presente. Um resumo simples deste ritual deveria elencar as seguintes características: 1) Só judeus podem fazer parte da sociedade sagrada que cuida do corpo. 2) O corpo é completamente limpo e envolto em uma mortalha obrigatoriamente simples. 3) O corpo não pode ser embalsamado nem cremado. 4) O corpo deve ser sepultado na terra. 5) Caso seja usado um caixão, este deve ter buracos para que o corpo entre em contato com o solo. 6) Tudo o que não for parte natural do corpo, deve ser retirado e não podem ser enterrados juntos com o corpo. 7) Após a lavagem do corpo, são despejados pouco mais de 12 litros de água para purificá-lo. 8) Após enxugado, o corpo é vestido com as mortalhas. 9) Em caso dos homens, veste-se o Talit (xale de seda) e se possível, o mesmo que era usado quando ele fazia suas prezes em vida. 10) Entre a lavagem do corpo e o enterro não se deve ter uma interrupção de mais de 3 horas.

Seis dias antes da Páscoa5 Jesus e seus discípulos estão em Betânia com Lazaro e suas irmãs. O jantar foi preparado para o mestre. Lazaro, o ressuscitado, era a atração para uma multidão que estava do lado de fora.

Neste cenário, Maria a irmã de Marta e de Lazaro, derrama uma pequena fortuna sobre Jesus. Segundo os cálculos presentes em Marcos e em João, se tratava do equivalente a trezentos dias de um trabalhador braçal. Ou seja, descontados os sábados e feriados para festas religiosas, era o que uma pessoa comum poderia conseguir (se não gastasse nada) em mais de um ano. Se tomamos como exemplo que uma diarista ganha R$120,006 por dia e a dracma e o denário equivaliam ao salário de um dia de trabalho braçal, então estamos falando de alguma coisa como R$ 300*100, ou seja, R$ 36.000 em valores de hoje. Talvez assim possamos sentir a indignação de Judas ao ver que o equivalente a um carro popular estava sendo despejado logo sobre os pés7 de Jesus. Era muuuito dinheiro sendo jogado fora de uma só vez.

A interpretação do fato dada por Jesus é dupla. Por um lado, responde às supostas inquietações levantadas por Judas e talvez algum outro sobre o melhor uso que se faria desse dinheiro se fosse destinado aos pobres dizendo “os pobres vocês sempre terão consigo”. Por outro lado, abre uma linha interpretativa que nenhum dos presentes tinha levantado ainda: “que o guarde para o dia do meu sepultamento

Então o que parece um simples relato de um jantar se transforma em uma alusão gritante ao último inimigo do ser humano. Os traços não são mais os suaves e delicados traços de uma obra renascentista e assumem as cores vibrantes e o alto-contraste de uma obra impressionista.

Na mesma mesa estão um traidor, uma mulher subjugada pela figura do jovem mestre, um homem ressurreto, uma mulher pragmática, os discípulos que poucas semanas depois abalariam Jerusalém, e o criador do mundo que em poucos dias haveria de ser submetido à morte.

Os gregos que visitam Jesus

Se há uma passagem enigmática em João, e essa dos gregos que procuram por Jesus. A reação de Jesus não é a de atendê-los senão a de dizer “Chegou a hora de ser glorificado”.

O que esses gregos fazem aqui?

Bom, desde o ponto de vista da mecânica do relato, a mesma coisa que o oficial romano do 4:43ss. Ou seja, mostrar que o alvo da vinda de Jesus não é só o povo Judeu e sim a criação toda. Isso fica mais evidente quando vemos o versículo que prepara esse caminho neste bloco: 11:51,52: “[Caifás] … sendo o sumo sacerdote aquele ano, profetizou que Jesus morreria pela nação judaica, e não somente por aquela nação, mas também pelos filhos de Deus que estão espalhados, para reuni-los num povo.

Pela segunda vez no relato joanino, uma voz vem do céu para confirmar o propósito divino nesta história toda. A primeira no batismo e agora com a visita dos gregos.

A escolha da figura do trigo no contexto da visita dos gregos nos relembram duas coisas: 1) o trigo junto com a cevada constituíam a base da dieta grega. 2) As terras gregas eram ideais para o plantio de oliveira com o que se formaram colônias gregas fora do seu território para produzir o grão cuja demanda sobrepujava a produção.

Tal era a importância do trigo na cultura helênica que algumas moedas levavam a figura do trigo. Um estudo moderno8 indica que um robô da Grécia do século I era movido a trigo.

Com toda essa informação, não parece fruto do mero acaso que Jesus escolhesse o trigo para ilustrar claramente o que haveria de acontecer com ele para os visitantes gregos (v12:24ss). Mais adiante, ele escolheria uma outra imagem que falaria ao inconsciente coletivo judeu ao dizer “Mas eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim” v.32

A incredulidade dos judeus e “o último dia”

O trecho final do nosso bloco se inicia com uma palavra desalentadora “Mesmo depois de que Jesus fez todos aqueles sinais miraculosos, não creram nele” (v37)

A explicação de João é direta e simples mas não simplista. Ele cola duas passagens de Isaías. O capítulo 53 e o 6. A explicação de João é a seguinte: Não criam, porque não podiam. Os olhos lhes tinham sido fechados para não conseguir crer. Ou dito de outra forma, eles não criam para que se cumprisse a profecia de Isaías. Para muitos isso parece injustiça, mas é exatamente o contrário já que desta forma, o verdadeiro soberano recebe glória, ao passo que nossa liberdade, sempre nos leva para longe do Cristo e sua salvação. Ou, usando as palavras de João, Isaías falou isso porque ele viu a glória de Jesus. Esta glória, segundo o próprio Jesus e a voz vinda do céu, estava atrelada à sua morte. Ou seja, se não fosse pelo próprio Jesus ter dito, não veríamos glória na morte. Do mesmo jeito, naturalmente não achamos justiça em exigir uma fé genuína de homens que não podem tê-la. A única perspectiva possível é desde a soberania do Criador.

O trecho final se encerra com uma referência à morte e ao julgamento que na mente dos judeus aconteceria logo após a morte.

Se alguém ouve as minhas palavras, e não lhes obedece, eu não o julgo. Pois não vim para julgar o mundo, mas para salvá-lo. Há um juiz para quem me rejeita e não aceita as minhas palavras; a própria palavra que proferi o condenará no último dia.” (v47-v48)

Costumamos pensar nesse “ultimo dia” como um evento distante no futuro. Deixe-me lhe mostrar o que os judeus (para quem foram escritas em primeiro lugar estas palavras) pensam sobre a morte e o julgamento usando uma referência ao Tahará ou a purificação do corpo do morto:

A tradição judaica reconhece a democracia da morte. Portanto, exige que todos os judeus sejam enterrados com o mesmo tipo de roupa. Ricos ou pobres, todos são iguais perante D’us, e o que determina sua recompensa não é aquilo que vestem, mas aquilo que são.

Há 1900 anos, Rabi Gamaliel instituiu essa prática para que os pobres não se envergonhassem e os ricos não rivalizassem entre si ao exibir roupas dispendiosas ao serem enterrados.

As roupas a serem vestidas devem ser apropriadas para alguém que em breve estará em julgamento perante D’us Todo Poderoso, o Mestre do Universo e Criador do homem. Portanto, devem ser simples, feitas à mão, perfeitamente limpas e brancas. Estas mortalhas simbolizam pureza, simplicidade e dignidade. Mortalhas não têm bolsos. Portanto, não podem levar riquezas materiais. Nem um pertence do homem, exceto sua alma, tem importância. 9

1Talvez um livro palatável para o leitor comum seja “O carrasco do amor” de Irvin D.Yalom. O autor mostra com uma linguajem simples diversos encontros (mistura de realidade e ficção) no setting psicológico nos quais os diversos protagonistas demostram sua angustia com a morte. Da introdução (p.13) escolhi a seguinte frase: “À medida que envelhecemos, aprendemos a tirar a morte da mente; desviamos a atenção do tema; nós a transformamos em algo positivo; a negamos com mitos confortadores; lutamos pela imortalidade por meio de obras imortais, lançando nossa semente no futuro por meio de nossos filhos ou abraçando um sistema religioso que ofereça perpetuação espiritual

2Já combinamos anteriormente chamar de Pecado com ‘P’ maiúscula àquele poder que permeia toda a criação desde a escolha de Adão e Eva e chamar de pecado com ‘p’ minuscula às decisões particulares contrarias à vontade divina seja por ação, omissão ou pensamento.

3Novamente Homem (com ‘H’ maiúscula) indica a raça, ao passo que um indivíduo o representaremos com ‘h’ minúscula.

4Os fariseus (que segundo Josefo, um historiador judeu e por sinal fariseu que viveu entre os anos 37 e 100, eram estimados em 6000 à época) eram mais bem quistos pela sociedade comum, pelo homem de a pé, do que os saduceus. Há, pelo menos, dois fariseus importantes que o leitor evangélico conhece bem: Gamaliel (Atos 5:34) e Paulo (Atos 22:3; Fil.3:5). O grande problema de Jesus (e João o Batista) com os fariseus, não era teológico e sim ético; mais especificamente, o divórcio existencial entre o discurso e a prática do discursado.

5Há um sábio desbalanço no jeito em que o autor arranja seus assuntos cronologicamente. Se o capítulo 1 fala da eternidade até o batismo de Jesus, do capítulo 1 até o 11 o relato abrange três anos da vida adulta de Jesus. Na metade do livro e até o final do mesmo, o tempo para em uma semana. Porém, do capítulo 13 até o 19 ele se concentra em uma única noite que é a que Jesus foi traído e morto. Então esta introdução em dois movimentos ao assunto morte é de extrema importância.

6http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2015/04/pesquisa-aponta-variacao-no-preco-dos-servicos-oferecidos-por-diaristas.html

7Mateus e Marcos vão dizer que é sobre a cabeça

8http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL78601-5603,00.html

9http://www.chabad.org.br/ciclodavida/Falecimento_luto/falecimento/taharah.html

Jesus e a Liberdade

Evangelho de João

Jesus e a Liberdade

João 8:1-9:41

    1. O que é a liberdade?

Para muitos tem a ver com poder fazer o que bem entender. Para outros é poder se esconder tanto ao ponto que não pode ser descoberto o dano feito ou planejado. Ou seja, a liberdade é um bem que se tem ou se compra e que cada vez fica mais caro.

Gostemos ou não, liberdade e caráter são duas faces de uma mesma moeda: faltando uma delas a outra perde valor.

Via de regra, no meio evangélico há os que gostam de misturar o conceito de liberdade com o de liberalidade e libertinagem ao passo que há os que – por falta de liberdade – gostam de vigiar a liberdade alheia.

    1. O texto

Somos cientes de que o capítulo 8 de joão (ou seja os versículos que vão do 7:53 ao 8:11) não fazem parte do texto original, mas entendemos que isso não lhe resta valor até porque o que ali está contido está em consonância com o restante do evangelho, em particular com o de João, se bem que o relato tem mais jeitão de sinótico do que joanino.1

Dito isto, precisamos observar a maravilha destas duas passagens. Há duas pessoas que haviam perdido sua liberdade. Uma por conta do pecado e outra…. bom, oras, é claro que alguém havia pecado, ninguém nasce cego porque sim. Bom, ao menos era o que a sociedade da época pensava e por isso tinha relegado este cego de nascença ao abandono e miséria social e espiritual.

Há aqui duas liberdades: 1) A liberdade de um pecado em particular 2) A liberdade dos efeitos do Pecado em geral.

    1. As pessoas sendo libertadas

A mulher cometia com regularidade o adultério. Tinha-se entregado a este prazer como se um vício fosse. As primeiras vezes ninguém sabia. Depois ficou conhecida, marcada, estigmatizada e não deu mais bola ao seu próprio destino. Este pecado, no início prazeroso e motivante, a havia enjaulado. Parecia livre mas não era. Prestes a ser morta, Jesus a liberta.

Já o jovem nascido cego era vítima não de um pecado em particular. Penso eu que os editores posteriores do evangelho se viram meio como que obrigados a incluir o pedaço do capítulo 8 da mulher adúltera porque a imagem de um ser nascido em trevas e que essas trevas fossem consideradas um fruto do pecado (particular mas desconhecido no caso) pareceria repulsivo aos primeiros leitores não judeus. A inclusão da mulher adultera sendo perdoada antes do cego, por mais repulsiva que a atitude pareça à sociedade do momento (judia, grega e romana) era mais palatável do que a retorcida visão de um Deus injusto e carrasco que se comprazia em descontar nos filhos os erros dos pais.

Este jovem, muito inteligente por sinal, era um segregado social por conta de uma posição teológica correta mas parcial. Dito em termos mais longos: é verdade que toda doença e a própria morte é resultado do Pecado na vida do ser humano; mas não é certo pensar que cada doença e cada morte é fruto de um pecado específico da pessoa ou dos seus pais.

    1. O Pecado e os pecados

Fazemos então uma distinção entre aquilo que é um pecado pessoal e o que é o Pecado como força que opera em toda a criação de forma invasiva.

Esta distinção a mostramos neste escrito utilizando a letra ‘P’ – em maiúscula – ao inicio da palavra Pecado para nos referirmos a esse poder que permeia sistemicamente toda a criação de Deus em maior ou menor medida, ao passo que utilizamos a letra ‘p’ – em minusculas – para nos referir às decisões particulares e pessoais que diferem da vontade de Deus.

Então, se bem no primeiro exemplo há uma liberação de um pecado específico (e com isso uma apertura para a vida) no segundo exemplo há uma liberação da condenação improcedente que os lideres judeus mantinham sobre seu irmão. Em qualquer dos dois casos quem perdia a liberdade era a aberração religiosa à que os dois casos estavam sujeitos. Não é por acaso que os dois blocos são antepostos a diálogos e discursos que tem a ver com liberdade, cegueira, etc.

    1. O discurso de Jesus

Não é correto dizer que há um único discurso nessas duas passagens. Há vários e separados no tempo. Todavia, o discurso ou o grande assunto é o mesmo: Jesus é a Luz do Mundo. Encontramos essa afirmação logo depois do relato da mulher adultera (8:12) e no encontro com o cego de nascença (9:5).

Então, não é errado considerar tudo o que Jesus fala a respeito de si mesmo um único pronunciamento sobre o fato de que Ele é a Luz do Mundo. As outras alocuções são colocadas justamente para reafirmar este fato. No capítulo oito vemos que ele está em pé de igualdade com o criador (8:27) e que é maior que Abraão (8:53-59). Já no capítulo nove observamos que ele se coloca como quem traz a abertura dos olhos espirituais ou aquele que faz o ser humano enxergar (9:39)

Todavia, por trás disso tudo está o velho discurso filosófico da descoberta da verdade. Antes de ser tido por blasfemo (9:59 como consequência ao “EU SOU” que ecoa do 8:27 e do Gênesis) a tentativa é de tratá-lo como mentiroso. Observe por exemplo os versículos 8:13; 40; 44b-46 e 55.

É – em síntese – o grande dilema humano: a descoberta da verdade como coisa objetiva e uma vez descoberta, viver por ela. Os grupos que se antepõem a Jesus, os escribas e os fariseus, levavam a serio a vida espiritual deles. Homem nenhum em sã consciência confia sua vida em uma coisa que sabe ser errada. Ele precisa estar plenamente convicto que aquilo que ele acredita é o correto, ou seja, a verdade. De outra forma, ele passaria a tentar descobrir uma outra verdade, seja por humildade, por desconhecimento, ou por descobrir que aquilo que ele pratica não é a verdade.

Jesus se planta como a luz e – por conseguinte – o discurso dele ou é verdade ou mentira. Não há como ser morno ao respeito disso. Estamos em uma época em que as coisas são relativas e antes desta época as coisas já eram relativas mas não levavam esse nome por não ter Einsten elaborado uma teoria com esse nome. Levamos então essa relatividade subjetiva a campos em que não deveria ser levada. Tanto levamos a sério nossa própria perspectiva das coisas que nos esquecemos que somos uma brisa neste mundo e logo logo passamos.

Nesse ponto então, nossa sociedade pouco se distingue dos fariseus e os escribas. Temos plena convicção das nossas próprias verdades e, como a morte única seguida da ressurreição não podem ser comprovadas cientificamente, acreditamos em qualquer coisa contraria a estas porque – ao final das contas – se não pode ser provado, achamos que é mentira.

É fácil julgar os escribas e fariseus. Difícil é encarar que somos tão cegos e guias de cegos quanto eles. Mas cegos do que? O que é que os fariseus, escribas e pessoas comuns não enxergavam? O que é que a sociedade religiosa e o homem de a pé de hoje não conseguem ver?

    1. Falsas Liberdades e Falsas Prisões

Um outro elo que vemos entre os dois relatos é o da ideia de que um ser humano é livre na medida que peca ao passo que outro que se preserva, está aprisionado. A mulher adultera levada uma vida que por muitos poderia ser invejada. Já a cegueira do homem, não era invejada por ninguém. Nada prendia à mulher, tudo era uma limitação para o cego.

Por outro lado, da mulher nada mais sabemos2. Ela simplesmente some após as palavras de Jesus “Vá embora e não peques mais” Já o cego de nascença se mostrou quase que arrogante quando foi interrogado pelos líderes judeus e humilde ao se ajoelhar perante Jesus. Estava o cego na sua aparente prisão aguardando pelo seu libertador? Poderia a mulher em algum momento da sua aparente liberdade ter tido tempo para pensar em algum libertador?

    1. Falsa visão

Dizem que um bom mestre não é aquele que da as respostas mas sim o que é capaz de provocar mais perguntas. Não é à toa que chamamos Jesus de Mestre. Numa das passagens mais lindas e enigmáticas da escritura ele diz assim “Se fôsseis cegos, não teríeis pecado; mas como agora dizeis: Vemos; por isso o vosso pecado permanece”

Os fariseus que estavam acompanhando Jesus, se sentem atingidos pela colocação “e os que vêm sejam cegos” pois eles achavam que viam e que podiam conduzir os outros. Todavia, externam a opção contraria para que Jesus os inclua na que eles queriam estar. Ou seja, não queriam estar entre aqueles que viam porque segundo as palavras de Jesus se tornariam cegos por conta do seu juízo.

É claro que eles achavam de si mesmos que eram guias de cegos, luz dos que estavam em trevas3. Talvez o camuflavam se fazendo de humildes, mas, no fundo, no fundo, eles achavam que eram os melhores. A sociedade seria pior sem eles. As pessoas se perderiam sem a luz deles.

Jesus conhecia o que havia no coração deles (2:24-25) e por essa razão não entra no joguinho deles e sintetiza todo o problema com a mesma firmeza que os tinha tratado de mentirosos em versículos anteriores: Se vocês fossem cegos, não seriam culpados de pecado; mas agora que dizem que podem ver, a culpa de vocês permanece. Simplesmente fascinante.

    1. Prisão, cegueira, liberdade

A verdadeira prisão do homem é o Pecado. A cegueira é uma consequência do próprio Pecado que se manifesta em aparente liberdade e saber das coisas divinas. Esse sistema de duas partes, torna o homem preso numa ilusão de liberdade que nem ele mesmo consegue enxergar4.

Torna-se, então, necessário um libertador; alguém que puxe o ser humano (cada indivíduo, na realidade) desse calabouço em que ele vive. Mas como?

Se o indivíduo diz que não enxerga, é mentiroso. Se diz que vê o pecado permanece. É o equivalente teológico de se ficar o bicho come, se correr o bicho pega.

Jesus dá a solução, mas não é um remédio agradável para quem vê de fora. Trata-se de uma rendição incondicional. Diz João 8:31 “Se permanecerem firmes, … serão meus discípulos” e acrescenta “e conhecerão a verdade, e a verdade os libertará” Há um processo ali que inicia com uma mudança de cabeça ao crer em Jesus (8:30) mas a liberdade só é alcançada por quem permanece firme na palavra passando pelo estágio de ser discípulo.

O caminho de Cristo não se trata de um caminho de autoconhecimento. Nem sequer é o caminho de descoberta de valores, verdades ou práticas ocultas para os não iniciados. Tampouco é um caminho comunitário em que o objetivo da liberdade se consegue em conjunto.

O caminho de Cristo tem a ver com rendição incondicional e morte espiritual.

Quer ser livre? Renda-se.

1A colocação do 7:53 “Jesus foi para o monte das oliveiras. De madrugada ele voltou ao pátio do Templo” parece se encaixar melhor logo após Lucas 21:38

2Algumas tradições cristãs a identificam com Maria Madalena, mas isso é mera conjectura podendo esta ideia tanto ser aceita como rejeitada

3Romanos 2:17-23

4Recomendo assistir o Show de Truman e Matrix para uma melhor compreensão da ideia de prisão maravilhosa.

Jesus e Pilatos

Evangelho de João

Jesus e Pilatos

João 18:1-19:42

É evidente que esta passagem não trata só de Pilatos e Jesus. Inclui também Pedro, Judas, Malco, João, Maria, Caifás, Anás, os Sacerdotes, Judas, os soldados na cruz, José de Arimateia e Nicodemos entre outros. Todavia, se é para escolhermos as personagens centrais, é de Pilatos e Jesus que se trata.

Num esforço consciente de resgatar certo brilho original ao texto, me é necessário analisar Pilatos não sob o holofote tradicionalmente aceito quase que limitando ele só a um carrasco destinado a satisfazer os desejos e sentenças capitais do sinédrio. Existem, claro, várias formas válidas de conjecturar sobre este assunto, mas o exercício proposto tem por propósito assumir um outro ponto de vista para poder – talvez – resgatar o antes mencionado brilho.

Temos a tendência de condenar todo e qualquer tipo de império. Isso é claro em especial em américa latina por esse complexo de inferioridade social e sempre nos sentirmos menos que o grande país do norte, o assim chamado, império americano. O certo é que se morássemos ao norte do Rio Colorado (divisa dos Estados Unidos com México) pensaríamos diferente.

Brincadeiras à parte, o apelo é para desvencilhar-nos do olhar negativo e pessimista para com o império. A verdade é que o império uma vez estabelecido, ele precisa ter um sistema legal coerente e confiável para que seus súditos (velhos e novos) continuem a produzir e o império ou bem cresça ou pelo menos não encolha. Isso é uma coisa que – se bem não pode ser observada pelo perdedor ou conquistado – é claramente observável em todo e qualquer império. Chega um momento em que certa estabilidade legal é necessária. E é isso que temos no tempo de Jesus.

Roma era nessa época um império jovem. Tinha uma longa tradição como República (509 A.C a 27A.C.) que por sua vez tinha como pano de fundo uma monarquia que se tinha estendido de 753 A.C. até o 509 A.C.

Como império jovem herdeiro de uma república e com um senado ainda forte era mister aos procuradores, governadores e outros representantes oficiais do império se comportarem à altura das circunstâncias que por sinal eram cada vez mais decadentes. Diferente de outros impérios, o romano tinha claro que era mister manter as comunidades em paz (se bem que talvez hoje não chamaríamos de paz o que eles chamavam de paz). Fora delitos que não dissessem respeito ao próprio império e a esta almejada paz, não era do interesse do mesmo se meter em problemas menores. Ai que está a chave necessária para ir formando uma imagem um pouco mais justa do próprio Pilatos.

Quando digo justa, não quero dizer com isso que o próprio Poncio Pilatos fosse justo ou algum ser perfeito ou um governante de caráter ilibado. Historiadores como Filo de Alexandria, Josefo e Tácito o descrevem como alguém que não respeitava limites, brutal, cruel, corrupto, violento, inflexível, duro, sem consideração, enfim, não é a imagem de um governador benevolente nem muito menos.

O início de Pôncio Pilatos em Judeia esteve marcado de provocações, ameaças, ressentimentos e desconfianças por parte do sinédrio em particular e os judeus em geral. Ele chegou à noite e fez os soldados colocarem estandartes com a imagem do imperador de frente para o complexo do templo. Isso afrontava diretamente a crença dos judeus sobre idolatria. Por conta disso eles foram protestar em Cesareia. Durante cinco dias se mantiveram debatendo. Mesmo sob ameaça os representantes do sinédrio não se dobraram. Pilatos só recuou por conta do alto custo político já que estava lá apenas um mês e meio. O restante da permanência dele na região se viu marcado por eventos similares tanto em Judeia como na Samaria que encharcaram de sangue, corrupção e roubalheira sua permanência lá.

Então o que há para resgatar? A pessoa.

O posto que Pôncio Pilatos ocupava era por indicação política. Ou seja, Pilatos estava lá por puro interesse material e para satisfazer os interesses daqueles que lhe haviam indicado para o posto. A paz local era nada mais do que um mal necessário para a manutenção do seu posto. Havia a necessidade de agradar o Sinédrio para dessa forma continuar a poder surrupiar as bens do povo.

Eu tenho, então, algumas perguntas:

  • Por que um homem destes reluta em condenar mais um judeu revoltoso à cruz?

  • Por que ele entra e sai quatro vezes do seu aposento interno onde levou Jesus?

  • Por que ele – segundo a versão de mateus1 – lava as mãos publicamente?

  • O que é essa colocação de “O que é a verdade”?

  • Por que ele fica “com mais medo ainda” quando os judeus com uma religião inferior a seus olhos lhe informam que Jesus se faz igual ao Criador?

Eu tenho uma pergunta que é a síntese dessas: Não era mais fácil simplesmente acatar a decisão do sinédrio, crucificar Jesus agradando dessa forma os líderes judeus? Outras vezes ele tinha afrontado o sinédrio a troco de nada. Por que não simplesmente agradá-lo e boa?

Eu acho que há mais coisas aqui daquilo que temos visto tradicionalmente. E também acho que João é mais refrescante na sua versão do que Mateus, Marcos e Lucas. Penso que isso é assim porque – como o próprio relato nos revela – João tinha acesso de primeira mão à casa do sumo sacerdote2 e ele nos deixa entrever alguns enredos que não vemos nos outros evangelhos por mais que seja justo no relato do juízo, condenação, morte e ressurreição de Jesus em que João mais coincide com o restante dos autores. Parece-me então que João está querendo mostrar – como faz no restante do seu livro – a pessoa de Pôncio Pilatos perante a pessoa de Jesus o Cristo.

    1. Os acontecimentos prévios ao encontro

Local: João coloca o início dos acontecimentos que precipitam a morte de Jesus num horto além do ribeiro de Cedrom3. Esse lugar era conhecido por Judas que após ter recebido a coorte e oficiais de justiça os conduz ali.

Judas e seu estilo de vida: Me provoca a imaginação isso de “após ter recebido” o detalhe é enriquecedor pois nos esquecemos que você só pode receber os outros em algum lugar que é seu. De outro jeito, você se encontra. Com isso podemos conjecturar a vida que o próprio Judas levava. Sabemos de alguns discípulos que abandonaram tudo para seguir Jesus. Dele mesmo sabemos que não tinha lugar onde encostar a cabeça.

A prisão de Jesus: A presença criadora de Jesus se deixa entrever na expressão “eu sou”. Ao dizer isso os guardas (e Judas que estava junto) caíram por terra. “Eu Sou” remete – claramente – à resposta que o criador deu a Moisés no monte Horeb (Êxodo 3:14). A queda dos que o rodeavam pode sim representar alguma coisa desse poder sendo manifestado, mas me parece pairar no ar um certo temor pelo que estava acontecendo. Ao final das contas, eles iam prender um homem muito popular entre o povo, era a páscoa, e os captores bem provavelmente nutriam algum tipo de fé ou admiração por este que não tinha problema nenhum em se encontrar com seus captores.

A reação de Pedro: Malco perde uma orelha (que logo lhe é restituída) no afã de Pedro por defender seu mestre. A imperícia deste marinheiro de primeira viagem no uso da espada, a adrenalina do momento, a escuridão quebrada pelas tochas ou simplesmente uma mistura disso tudo faz com que ele acerte apenas a orelha do servo do sumo sacerdote. Este artigo definido ai dizendo “o servo do sumo sacerdote” bem pode se referir ao único dos servos do sumo sacerdote presentes naquela busca, ou – mais provavelmente – ao servo pessoal do sumo sacerdote que estava ali para cuidar diretamente dos interesses do seu senhor. Seja como for, tanto a notícia da decepação da orelha como sua posterior restituição iam chegar rapidamente ao sumo sacerdote e há uma diferença enorme entre milagres contados por ouvidas de terceiros ou quartos do que por diretamente vinculados.

Anás e Caifás: Ser sacerdote era um negocio de família. Sempre tinha sido e na época de Jesus não era diferente. Caifás que era o sumo sacerdote aquele ano provavelmente não era forte o suficiente como o era seu sogro Anás ou talvez era prudente demais e não convinha ao restante dos lideres que se queriam desfazer de Jesus. Seja como for, mesmo sendo Caifás o responsável, Jesus é levado perante Anás.

João e Pedro: Esta dupla aparece (junto com Tiago) em vários relatos do evangelho. Eles pareciam se identificar, gostar da companhia um do outro e compartilharem algumas das experiências mais bonitas do ministério terreno de Jesus. Nesta ocasião, apenas João e Pedro aparecem. João é o rapaz bem conectado. Ele era conhecido do sumo sacerdote e é por essa razão que os dois conseguem entrar. Reluto em criticar Pedro e sua negação. João era bem conhecido da casa, os outros discípulos tinham caído fora, sobrou para o pescador de sotaque carregado explicar – sob o medo de também correr o mesmo fim do seu mestre – o relacionamento dele com o preso.

1Mateus 27:24

2João 18:16

3http://biblia.com.br/dicionario-biblico/c/cedrom/