Jesus e a morte

Evangelho de João

Jesus e a Morte

João 11:1-12:50

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Introdução

Enquanto estamos vivos nos achamos grande coisa. Mesmo até quem tem que mexer com cadáveres, se acha grande coisa. Porém, quando a morte bate de pertinho, entendemos nossa própria grande limitação1.

Caminhamos para a morte. É inevitável. Por conta do nosso espírito ser eterno, nos achamos com capacidade de realização eterna. Provar isso é bastante simples: observe os mais idosos, repare que eles tem sonhos como se ainda tivessem 30, 50, 70 anos de vida por diante.

A morte é a última grande consequência nesta terra da entrada do Pecado2 no mundo. A limitação da vida é um corolário das nossas próprias decisões irreversíveis como raça. Escolhemos – como raça – nos parecermos com o Criador e por conta disso nos distinguimos ainda mais. É uma ironia fatal (sem ironias).

Assim como o cego de nascença não tinha escolhido ser cego mas a cegueira era um fruto do Pecado (e o apedrejamento era o curso socio-legal do pecado de adultério mesmo que a adultera não teria escolhido essa consequência) assim também não escolhemos ter vida perecível.

O início de tudo

O que faz o criador? Se respeita plenamente a decisão do Homem3 e o deixa seguir seu próprio rumo sem intervir, ele mesmo se torna irresponsável pela sua própria criação. Se ele intervêm na marra e lhe impõe suas decisões, o Homem o poderia – com justiça – acusar o criador de injusto, intervencionista e por ai vai. Isso por só elencar um par de opções simplificantes.

O pior é que o inimigo da criação (que transformamos, como raça, em príncipe deste mundo pelas nossas decisões livres lá no Éden) ficaria impune. Por mais que o que ele fez foi plenamente legal (pois escolhemos no pleno uso da nossa liberdade), é imoral e por tanto alguma forma de tirá-lo do poder deve de existir. Ao mesmo tempo, Deus é justo, ou seja, ele não poderia enganar a humanidade como o príncipe deste mundo fez.

A solução

A morte de Jesus na cruz tem várias consequências muitas delas imensuráveis desde nossa perspectiva de criaturas sujeitas a este mundo material. A síntese deste assunto está em João 12:31 e 32: Agora, é o juízo deste mundo; agora, será expulso o príncipe deste mundo; e eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim. O ápice da história não é o nascimento do Cristo numa manjedoura e sim a morte do mesmo na cruz. É a morte e não a ressurreição do Cristo o que destrona o príncipe deste mundo. A legalidade da morte foi eliminada por ter morrido o único ser humano justo e com isso o Criador readquire os seus direitos sobre o ser humano e sua existência eterna.

A estrutura do texto

Neste trecho observamos o seguinte fluxo: Cap 11: fato – discurso – ação – reação Cap 12: fato – ação – discurso – reação.

Ou seja, é mais ou menos a mensa estrutura que observamos em cada um dos blocos de João. Não poderia ser de outra forma, já que é a própria estrutura primária do texto a que foi usada para estabelecer os blocos.

Novamente, as duas grandes partes que compõem o bloco mostram certo paralelismo e os assuntos estão entrelaçados. Igual que nos outros blocos, o destaque é para a incredulidade de muitos em contraposição com a credulidade (muitas vezes dubitativa) de poucos.

Lázaro

Quando Jesus trata com Marta sobre a morte do Lazaro, a fé de Marta (muitas vezes criticada por preferir os afazeres da casa do que estar com o mestre) é exposta – assim como sua dor – na frase recolhida em João 11:24 “Eu sei que ele vai ressuscitar na ressurreição, no último dia”. Isso refletia talvez a classe social à que Marta, Maria e Lazaro pertenciam (Bethania significa casa dos pobres) e quase que por conseguinte a linha doutrinaria e politica à que pertenciam: os fariseus4. Isso porque os fariseus eram mais povão que os saduceus e acreditavam na ressurreição. Mas também refletiria algum ensinamento prévio dado por Jesus; mas ai estaríamos especulando ainda mais, já que não há registro específico disso.

Seja como for perante a morte do seu amigo Lazaro, Jesus expõe seus sentimentos e também seu poder. Este homem é o que dizia que podia perdoar pecados e se bem haviam controvérsias sobre se um homem podia ou não perdoar outro homem o que não haviam dúvidas era que ninguém poderia ressuscitar mortos. Em João não temos a frase “Qual é mais fácil? dizer: Os teus pecados te são perdoados; ou dizer: Levanta-te, e anda?” como em Lucas 5:23 porém a proposta é a mesma: Os capítulos 8 e 9 falam do perdão de pecados, o 10 fala de Jesus e seu rebanho e o 11 e 12 falam do poder de Jesus sobre a morte. E da mesma forma que nos evangelhos sinóticos, é esse perdão dos pecados (e a liberação da raiz do pecado) o alicerce sobre o qual pode ser construída a igreja demolindo a construção anterior mas mantendo a mesma base: O criador é Senhor da criatura.

A espera de Jesus antes de ir até Betânia e as três colocações que repetem “Se estivesses aqui ele não teria morrido” levam a pensar que este milagre era mister de acontecer antes de ele mesmo ser morto. Ou seja, todos (Marta v.20, Maria v.32, os amigos da família v.37) achavam que Jesus poderia ter impedido a morte, mas não que poderia vencê-la revertendo seus efeitos. Nem mesmo Marta – que é a que chega mais perto – consegue descifrar o que está por vir.

Quatro dias no túmulo não foram suficientes para deter a vida. Porém, mesmo a vida sendo devolvida a um morto que já cheirava mal, nem por isso a fé dos homens se voltaram para Jesus. O interesse de Jesus em que as pessoas cressem, fica manifesto no v.42. O fato de que era isso que naturalmente se esperava dos que entendiam o propósito de Jesus, fica recolhido no v.45 nas palavras “muitos … vendo o que Jesus fizera, creram nele” E finalmente, que os líderes religiosos do momento sabiam que o povo poderia chegar a crer fica registrado no v.48 “Se o deixarmos, todos crerão nele, e então os romanos virão e tirarão tanto o nosso lugar como a nossa nação

A unção em Betânia

Até hoje o corpo de um judeu é preparado mais ou menos da mesma forma em que eram preparados no tempo de Jesus. De fato, o ritual pelo que os judeus se conduzem hoje é o instituído pelo rabi Gamaliel, o mesmo que ensinou Paulo.

Basicamente ele é um ato religioso judaico e não apenas um mero ritual higiênico por mais que a higiene esteja presente. Um resumo simples deste ritual deveria elencar as seguintes características: 1) Só judeus podem fazer parte da sociedade sagrada que cuida do corpo. 2) O corpo é completamente limpo e envolto em uma mortalha obrigatoriamente simples. 3) O corpo não pode ser embalsamado nem cremado. 4) O corpo deve ser sepultado na terra. 5) Caso seja usado um caixão, este deve ter buracos para que o corpo entre em contato com o solo. 6) Tudo o que não for parte natural do corpo, deve ser retirado e não podem ser enterrados juntos com o corpo. 7) Após a lavagem do corpo, são despejados pouco mais de 12 litros de água para purificá-lo. 8) Após enxugado, o corpo é vestido com as mortalhas. 9) Em caso dos homens, veste-se o Talit (xale de seda) e se possível, o mesmo que era usado quando ele fazia suas prezes em vida. 10) Entre a lavagem do corpo e o enterro não se deve ter uma interrupção de mais de 3 horas.

Seis dias antes da Páscoa5 Jesus e seus discípulos estão em Betânia com Lazaro e suas irmãs. O jantar foi preparado para o mestre. Lazaro, o ressuscitado, era a atração para uma multidão que estava do lado de fora.

Neste cenário, Maria a irmã de Marta e de Lazaro, derrama uma pequena fortuna sobre Jesus. Segundo os cálculos presentes em Marcos e em João, se tratava do equivalente a trezentos dias de um trabalhador braçal. Ou seja, descontados os sábados e feriados para festas religiosas, era o que uma pessoa comum poderia conseguir (se não gastasse nada) em mais de um ano. Se tomamos como exemplo que uma diarista ganha R$120,006 por dia e a dracma e o denário equivaliam ao salário de um dia de trabalho braçal, então estamos falando de alguma coisa como R$ 300*100, ou seja, R$ 36.000 em valores de hoje. Talvez assim possamos sentir a indignação de Judas ao ver que o equivalente a um carro popular estava sendo despejado logo sobre os pés7 de Jesus. Era muuuito dinheiro sendo jogado fora de uma só vez.

A interpretação do fato dada por Jesus é dupla. Por um lado, responde às supostas inquietações levantadas por Judas e talvez algum outro sobre o melhor uso que se faria desse dinheiro se fosse destinado aos pobres dizendo “os pobres vocês sempre terão consigo”. Por outro lado, abre uma linha interpretativa que nenhum dos presentes tinha levantado ainda: “que o guarde para o dia do meu sepultamento

Então o que parece um simples relato de um jantar se transforma em uma alusão gritante ao último inimigo do ser humano. Os traços não são mais os suaves e delicados traços de uma obra renascentista e assumem as cores vibrantes e o alto-contraste de uma obra impressionista.

Na mesma mesa estão um traidor, uma mulher subjugada pela figura do jovem mestre, um homem ressurreto, uma mulher pragmática, os discípulos que poucas semanas depois abalariam Jerusalém, e o criador do mundo que em poucos dias haveria de ser submetido à morte.

Os gregos que visitam Jesus

Se há uma passagem enigmática em João, e essa dos gregos que procuram por Jesus. A reação de Jesus não é a de atendê-los senão a de dizer “Chegou a hora de ser glorificado”.

O que esses gregos fazem aqui?

Bom, desde o ponto de vista da mecânica do relato, a mesma coisa que o oficial romano do 4:43ss. Ou seja, mostrar que o alvo da vinda de Jesus não é só o povo Judeu e sim a criação toda. Isso fica mais evidente quando vemos o versículo que prepara esse caminho neste bloco: 11:51,52: “[Caifás] … sendo o sumo sacerdote aquele ano, profetizou que Jesus morreria pela nação judaica, e não somente por aquela nação, mas também pelos filhos de Deus que estão espalhados, para reuni-los num povo.

Pela segunda vez no relato joanino, uma voz vem do céu para confirmar o propósito divino nesta história toda. A primeira no batismo e agora com a visita dos gregos.

A escolha da figura do trigo no contexto da visita dos gregos nos relembram duas coisas: 1) o trigo junto com a cevada constituíam a base da dieta grega. 2) As terras gregas eram ideais para o plantio de oliveira com o que se formaram colônias gregas fora do seu território para produzir o grão cuja demanda sobrepujava a produção.

Tal era a importância do trigo na cultura helênica que algumas moedas levavam a figura do trigo. Um estudo moderno8 indica que um robô da Grécia do século I era movido a trigo.

Com toda essa informação, não parece fruto do mero acaso que Jesus escolhesse o trigo para ilustrar claramente o que haveria de acontecer com ele para os visitantes gregos (v12:24ss). Mais adiante, ele escolheria uma outra imagem que falaria ao inconsciente coletivo judeu ao dizer “Mas eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim” v.32

A incredulidade dos judeus e “o último dia”

O trecho final do nosso bloco se inicia com uma palavra desalentadora “Mesmo depois de que Jesus fez todos aqueles sinais miraculosos, não creram nele” (v37)

A explicação de João é direta e simples mas não simplista. Ele cola duas passagens de Isaías. O capítulo 53 e o 6. A explicação de João é a seguinte: Não criam, porque não podiam. Os olhos lhes tinham sido fechados para não conseguir crer. Ou dito de outra forma, eles não criam para que se cumprisse a profecia de Isaías. Para muitos isso parece injustiça, mas é exatamente o contrário já que desta forma, o verdadeiro soberano recebe glória, ao passo que nossa liberdade, sempre nos leva para longe do Cristo e sua salvação. Ou, usando as palavras de João, Isaías falou isso porque ele viu a glória de Jesus. Esta glória, segundo o próprio Jesus e a voz vinda do céu, estava atrelada à sua morte. Ou seja, se não fosse pelo próprio Jesus ter dito, não veríamos glória na morte. Do mesmo jeito, naturalmente não achamos justiça em exigir uma fé genuína de homens que não podem tê-la. A única perspectiva possível é desde a soberania do Criador.

O trecho final se encerra com uma referência à morte e ao julgamento que na mente dos judeus aconteceria logo após a morte.

Se alguém ouve as minhas palavras, e não lhes obedece, eu não o julgo. Pois não vim para julgar o mundo, mas para salvá-lo. Há um juiz para quem me rejeita e não aceita as minhas palavras; a própria palavra que proferi o condenará no último dia.” (v47-v48)

Costumamos pensar nesse “ultimo dia” como um evento distante no futuro. Deixe-me lhe mostrar o que os judeus (para quem foram escritas em primeiro lugar estas palavras) pensam sobre a morte e o julgamento usando uma referência ao Tahará ou a purificação do corpo do morto:

A tradição judaica reconhece a democracia da morte. Portanto, exige que todos os judeus sejam enterrados com o mesmo tipo de roupa. Ricos ou pobres, todos são iguais perante D’us, e o que determina sua recompensa não é aquilo que vestem, mas aquilo que são.

Há 1900 anos, Rabi Gamaliel instituiu essa prática para que os pobres não se envergonhassem e os ricos não rivalizassem entre si ao exibir roupas dispendiosas ao serem enterrados.

As roupas a serem vestidas devem ser apropriadas para alguém que em breve estará em julgamento perante D’us Todo Poderoso, o Mestre do Universo e Criador do homem. Portanto, devem ser simples, feitas à mão, perfeitamente limpas e brancas. Estas mortalhas simbolizam pureza, simplicidade e dignidade. Mortalhas não têm bolsos. Portanto, não podem levar riquezas materiais. Nem um pertence do homem, exceto sua alma, tem importância. 9

1Talvez um livro palatável para o leitor comum seja “O carrasco do amor” de Irvin D.Yalom. O autor mostra com uma linguajem simples diversos encontros (mistura de realidade e ficção) no setting psicológico nos quais os diversos protagonistas demostram sua angustia com a morte. Da introdução (p.13) escolhi a seguinte frase: “À medida que envelhecemos, aprendemos a tirar a morte da mente; desviamos a atenção do tema; nós a transformamos em algo positivo; a negamos com mitos confortadores; lutamos pela imortalidade por meio de obras imortais, lançando nossa semente no futuro por meio de nossos filhos ou abraçando um sistema religioso que ofereça perpetuação espiritual

2Já combinamos anteriormente chamar de Pecado com ‘P’ maiúscula àquele poder que permeia toda a criação desde a escolha de Adão e Eva e chamar de pecado com ‘p’ minuscula às decisões particulares contrarias à vontade divina seja por ação, omissão ou pensamento.

3Novamente Homem (com ‘H’ maiúscula) indica a raça, ao passo que um indivíduo o representaremos com ‘h’ minúscula.

4Os fariseus (que segundo Josefo, um historiador judeu e por sinal fariseu que viveu entre os anos 37 e 100, eram estimados em 6000 à época) eram mais bem quistos pela sociedade comum, pelo homem de a pé, do que os saduceus. Há, pelo menos, dois fariseus importantes que o leitor evangélico conhece bem: Gamaliel (Atos 5:34) e Paulo (Atos 22:3; Fil.3:5). O grande problema de Jesus (e João o Batista) com os fariseus, não era teológico e sim ético; mais especificamente, o divórcio existencial entre o discurso e a prática do discursado.

5Há um sábio desbalanço no jeito em que o autor arranja seus assuntos cronologicamente. Se o capítulo 1 fala da eternidade até o batismo de Jesus, do capítulo 1 até o 11 o relato abrange três anos da vida adulta de Jesus. Na metade do livro e até o final do mesmo, o tempo para em uma semana. Porém, do capítulo 13 até o 19 ele se concentra em uma única noite que é a que Jesus foi traído e morto. Então esta introdução em dois movimentos ao assunto morte é de extrema importância.

6http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2015/04/pesquisa-aponta-variacao-no-preco-dos-servicos-oferecidos-por-diaristas.html

7Mateus e Marcos vão dizer que é sobre a cabeça

8http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL78601-5603,00.html

9http://www.chabad.org.br/ciclodavida/Falecimento_luto/falecimento/taharah.html

Sobre Esteban D. Dortta

Esteban é um pastor evangélico. Estudou teologia no Seminário Teológico Batista do Uruguai entre 1991 e 1994. Nascido em 1971, vive no Brasil desde 1995. Entende que a liberdade de pensamento, expressão e reunião são essenciais para o desenvolvimento não apenas cristão, mas de toda a sociedade.