O Poder de uma Igreja fraca (II): Igreja como a âncora do céu

3A metáfora da “âncora” é uma bela forma para pensarmos como a igreja está ligada ao céu de Deus. Basicamente, uma âncora serve para “estacionar”, fixar o navio em um ponto específico no trajeto em que este está fazendo. Vista de modo simbólico, a âncora pode representar inúmeros significados: firmeza, tranquilidade, força, fidelidade e esperança; para alguns representa atraso ou barreira.

Certa feita ouvi uma história que não sei se é verídica. Os cristãos do primeiro e segundo século utilizavam o símbolo da âncora para se comunicarem em meio à perseguição advinda do império romano. Aquilo que se tornou a “cruz da escora” era simbolizada por um semicírculo (vida ou mundo espiritual) e pela cruz (realidade ou vida terrena). O semicírculo era visto como a coroa da cruz, a glória divina sob a glória terrena. Era, para aqueles primeiros cristãos, símbolo de esperança.

Para os navegadores, a âncora fala de refúgio, esperança em meio à tempestade e simboliza um conflito entre o sólido (a terra) e o líquido (a água). Simbolicamente, conflitam para que possa existir, em sua fecundação, a tão sonhada harmonia.

Mas o que isso tem a ver com a igreja, com a gente?

A igreja, nós representamos na terra aquilo que bem foi dito acima: a igreja é a glória de Deus em Cristo na terra; é também a fecundação do espiritual com o terreno, do céu com a terra, da verdadeira vida com a morte, da esperança com a desesperança. Dito de outra maneira, ela é a infraestrutura invisível de Deus manifestada na superestrutura visível da terra, ou seja, em nós. Ainda de outra forma, a igreja é a expressão imiscuída do céu (representada pelo Reino de Deus) com a terra (propagação do evangelho depositada em vasos de barro e dos sinais do Reino).

Utilizando essa metáfora – a igreja como a âncora do céu – podemos refletir sobre a importância e a missão de uma igreja fraca que se faz forte no poder da cruz. Para isso, minha primeira afirmação é que a cruz por si só não manifesta nenhum poder, apenas revela a morte. A cruz de Cristo, vista apenas de um ângulo, revela a morte de um homem que dizia ser Deus encarnado; sozinha, a cruz é o “fim da linha” para o proclamador das boas-novas de libertação e salvação.

Existe muito mais nas palavras biográficas dos evangelistas que simplesmente a morte de um judeu propagador de uma suposta nova teologia judaica. Existe muito mais que apenas o sentimento de dor pelo fim da vida; mais que somente o sentimento de desesperança – essa que arrebatou os corações frágeis e ansiosos pela libertação dos opressores, quando viram o suposto messias sucumbir pelas mãos romanas. Tem que existir mais, pois existiu para aqueles cristãos em perseguição e precisa existir para nós, cristãos pós-modernos.

Aqui entra minha segunda afirmação: através da cruz – o símbolo de morte e maldição, símbolo de desesperança e perca da vida e de propósito de vida – rompe-se a maior prerrogativa de esperança: a ressurreição dentre os mortos; o ressurgir do mundo dos mortos, do esquecimento – “sheol/hades”.

Quando observamos aqueles que estavam ao redor da cruz chorando pela cruel morte de Jesus, o olhar é de espanto e de tristeza pelo fim de três anos de acumulo de uma esperança que não era terrena. Jesus, nessa terra, se mostrou como a manifestação e o cumprimento das alianças, promessas e dos mandamentos figurados dia após dia pela nação judaica. Jesus era a “máxima expressão” de YHWH vivo, entre os mortais e pisando nesse lamaçal de injustiça, de toda sorte de pobreza e maldição. Ele era a esperança dos homens, a luz brilhando em meio às trevas. Mediante as ações de milagres e poder, ele protestava contra o mal; através da proclamação do Reino de Deus, ele disponibilizava a oportunidade de arrependimento a todos quanto o quisessem. Aqueles ao seu redor, na cruz, no pior momento de suas vidas – pois estavam diante da morte física da esperança encarnada – não podiam lembrar-se de suas palavras quando disse: “Eu sou a ressurreição. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim jamais morrerá” (João 11, 25-26).

Os discípulos e algumas mulheres que estavam em frente ao mestre que sofria numa cruz, viam um homem abatido, perdendo as forças minuto após minuto e se rendendo a toda aquela crueldade advinda sobre ele. Acho que ninguém veria aquela dura pena como “meio divino” histórico de redenção. Não há esperança na morte! (Lembrando que uma parte dos judeus criam na ressurreição, mas aquela que aconteceria “no último dia”, no fim da história da humanidade). Portanto, o que torna a cruz “fantástica” (no sentido teológico), é que ela foi/é a porta para Deus resgatar a sua criação e toda a humanidade de seus pecados e da condenação eterna.

Voltando a segunda afirmação – sobre o ressurgir dos mortos – os judeus criam que a morte e o hades eram o fim da vida de louvor a Deus. Criam, a partir do aculturamento e imaginário greco-romano, na punição que havia neste lugar indefinido das almas quando não cumpriam a justiça em vida. Criam em muitas coisas, assim como nós hoje. No entanto, a cruz e a morte de Jesus revelaram aos discípulos e a toda a igreja nascente que a esperança que Jesus trouxe não estava em que Deus os levaria a uma vitória sobre o império de Roma e nem em uma aniquilação dos gentios e miseráveis. A esperança também não estava em tornar Israel num povo único e poderoso sobre a face da terra, um povo único regendo as nações pagãs e impondo sobre elas seu judaísmo. A esperança estava, certamente, na ressurreição de Jesus e sua vitória sobre o mal, sobre o pecado e sobre a morte.

A cruz, vista pelo ângulo divino, sugeria a ressurreição de Cristo como o primogênito da igreja (comunidade do cordeiro). A esperança, a partir dessa faceta, cumpre a expectativa reconciliadora entre Deus e toda sua criação; entre a humanidade e a nova humanidade; entre a nova humanidade criada e a antiga criação. A esperança satisfaz em justiça a justiça de Deus proporcionando a paz entre Deus e os homens de bem. Deus, em Jesus, agracia toda a criação e chama a nova criação (a igreja, pessoas reunidas em torno da santa Trindade; pessoas a quem Deus amou na cruz; pessoas que de inúmeras maneiras refletem o Cristo vivo, etc.;) a sua mesma missão: reconciliação, resgate, recriação a partir da cruz e ressurreição.

A igreja como âncora sugere uma comunidade em harmonia, fecundada e alimentada pelo “corpo e sangue” de Cristo (lembrando-me da “água e terra” na simbologia dos navegadores, acima). Uma comunidade que age e reage aqui na terra como Deus age e reage no céu. Uma comunidade que experimenta historicamente o futuro de esperança dado por Deus através da pessoa histórica de Jesus, o Cristo: uma comunidade de ressurreição aqui e agora!

Assim, nosso poder como igreja de Jesus nessa terra vai além de alimentarmos e sermos alimentados. Vai bem além de cumprirmos a justiça e a uma vida de santidade. Está além de vivermos “igrejados” ou “desigrejados” institucionalmente; vai além de sermos bons cristãos e de vivermos eticamente as moralidades sugeridas. Vai além!

Posso estar falando utopias, mas utilizar a palavra “esperança” em meio à pós-modernidade já é um erro para muitos. Mas dela me valho para desafiar aqueles que se consideram e vivem como comunidade onde Cristo habita, na força do seu pessoal Espírito regenerador, para a glória de Deus Pai, a viverem como Jesus e enxergarem como Jesus; a amarem como Jesus e suportarem como Jesus suportou; a pisarem no lamaçal como ele pisou e agiu em resgate de muitos; a experimentarem a esperança no amor que cura toda dor, no amor que foi capaz de entregar a vida para que o mundo soubesse que existe um Deus que ama o que criou. Boas-obras, santidade, justiça, ética e moral serão frutos de quem caminha e age no amor, pelo amor, com o amor do Cristo.

Eis a esperança trazida por Cristo na ressurreição, o poder de uma igreja fraca atuante como âncora do céu na terra na esperança da ressurreição.

Sobre Rafael de Campos

Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista de Presidente Prudente e Universidade Cesumar de Maringá. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Área de concentração: Linguagens da Religião e Cristianismo Primitivo. Iniciando Licenciatura em Filosofia pela Universidade Metropolitana de Santos