Uma vida abandonada

DSC089382.Pedro 1:1-11

Já viu um daqueles filmes em que velhos colegas de escola ou faculdade se encontram? Geralmente dá pé a uma comédia, obvio. Dificilmente há algum que traga alguma outra coisa a não ser risada sobre si mesmo.

Em situações ideais, se espera que a pessoa seja/esteja melhor agora que há 20 anos atrás e é claro, há coisas que se escapam ao controle da pessoa (uma doença, um acidente, um projeto que não deu certo por condições externas) e outras que dependiam apenas do ser re-encontrado.

Tire seus cinco minutos e volte no tempo. Relaxe e relembre como você era há cinco, dez, quinze, vinte anos atrás. O que mudou? Aquilo que mudou (para bem ou para mal) é fruto do seu empenho? Você pode se dizer responsável daquelas coisas que foram modificadas na sua pessoa? Você foi um sujeito passivo ou ativo na mudança ou na permanência ?

Imagine-se em outra situação. Imagine-se contando sua trajetória até ontem para alguém. Como seria? “Isto e aquilo está melhor por causa de tal e qual razão”? “Fulano(a) me ajudou muito neste quesito”? ou está mais recheado de falas do tipo “Não consegui fazer isto nem aquilo porque fui impedido por fulano(a)”? ou talvez “O sistema (mundo, diabo, igreja, sociedade, clube) me impediu de fazer tal e qual coisa que era meu sonho”?

Gálatas e 2Pedro

Há duas passagens que gosto muito: Gál.5:22-26 e 2Pedro 1:1-9

No primeiro, Paulo diz que o fruto do Espírito é “amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio“. Esse texto é maravilhoso pois essas coisas colocam de manifesto a vida do Espirito em nós. Obvio que sei que os legalistas de plantão costumam ler e dizer “devemos ter amor, devemos ter alegria, devemos…” e não conseguem enxergar que é um fruto (um único) do Espírito na vida daquele que crê. Se deixamos um cachorro bem alimentado e em liberdade ao nosso lado, ele é feliz. Não tem porque ser infeliz se ele tem as três coisas que ele mais gosta: alimento, aconchego e o tutor dele. Ele manifestará a sua alegria espontaneamente e nos fará saber sem lugar a dúvidas que é feliz. Assim também, se o Espirito do Senhor é deixado em liberdade em nós, ele produz naturalmente “amor, alegria… domínio próprio“. Não tem como o Espirito Santo produzir outra coisa. Todavia, o legalista, por não saber nada de liberdade, traduzirá “devemos” em lugar de “o fruto é…”

Mas temos 2Pedro 1:5. Aqui Pedro começa com um verbo que causa repulsa em certos cristãos: “Empenhem-se“. Causa repulsa porque na visão deles, tudo acontece apenas por obra de Deus e nada do que é feito no interior da vida do ser cristão pode – de alguma forma – depender do próprio cristão. Então, assim como o legalista lê errado Gálatas, o livre lê errado 1.Pedro.

Para o apostolo Pedro (aquele de declaração de fé, do monte da transfiguração, dos pães e peixes, do Getsêmani, da negação, da cruz, da ressurreição) há um lugar enorme para o empenho do ser cristão. Sim, o ser cristão, pois o texto o vê como uma consequência daquilo que o criador já fez: “Por isso mesmo

Para Pedro, a vida do ser cristão é uma sucessão de pequenos destinos similar ao trajeto de um ônibus circular. Como se de camadas se trata-se ele inicia falando para acrescentar à fé a virtude. Obvio que esta fé, não é fruto do esforço pessoal. Nisto ele concorda com Paulo (Efésios 2:8,9) e com o próprio Jesus, o Cristo (João 6:28-29) em que a fé é fruto da intervenção de Deus na vida do homem. Sem o Cristo levantado na cruz, não haveria possibilidade desta fé (João 12:32; 44-46; 6:44). Sem fé, nada da vida cristã é possível. Sem fé, as pessoas podem emular atributos cristãos mas só isso. A pessoa pode gostar de algum credo cristão, da Bíblia, dos louvores, da pregação, da igreja local, das ações que esta promova, mas não pode haver vida sem esta fé. Sem entrar neste assunto, mas apenas para fornecer mais lenha, a fé não é a inexistência de dúvidas mas a plena certeza de que Deus é Deus não porque ele faça ou prove qualquer coisa para provar sua existência.

Uma pequena analise e tarefa para casa

Bem, avancemos. “Empenhem-se para acrescentar à sua fé virtude“. Um sinônimo bastante bacana e simples de virtude é dignidade.

Vem ai então o teste de como anda sua vida: Ela é digna? É digna do chamado cristão? É digna na privacidade? É digna para com o ser alheio? É digna para você mesmo, na sua intimidade? É digna para com quem não crê?

Mas ai mesmo surge também a questão do tempo. Diferente da fé que pode ter (quase sempre tem, aliás) um momento preciso no tempo em que ela surge, a virtude (ou dignidade) não tem uma data precisa no tempo em que ela surja e vc diga “foi em 29 de fevereiro de 1900 e bolinha que me tornei digno“. Obvio que podem haver datas assim, em que você tem uma epifania e descobriu que havia alguma coisa na sua vida que era indigna ou pouco virtuosa e a partir de aí começou a construir. Mas me refiro a que a virtude é construída aos poucos. É um daqueles atributos que é visto não de imediato, mas ao longo dos anos e segundo Pedro, requer empenho. Não acontece de forma automática (se bem que é natural ao ser cristão) mas requer dedicação, zelo, desejo, cuidado, ouvido atento, paciência, entrega.

O mesmo se pode dizer do restante. E esse é seu dever de casa.

Logo, o que surge a seguir é uma análise da sequência e dos falsos sinônimos.

Existe uma sequência. Pedro coloca a lista em uma certa ordem. Repare que esta ordem é diferente do que a gente faria. Por exemplo, você não listaria o amor antes da fraternidade? Ou o conhecimento antes da virtude? Ou a piedade antes da perseverança?

É claro que se você foi doutrinado na vida cristã, pode ser que seu espírito crítico tenha sido tolido. Mas se foi discipulado, então foi ensinado a fazer perguntas, a ser questionador, investigador, navegador das profundidades do texto bíblico, apreciador da superfície e singeleza de algumas jóias bíblicas.

Seja como for eu lhe convido a gastar um tempo pensando na ordem desta lista. Seja honesto, você faria esta lista nessa ordem? Por quê? Não vou me estender mais sobre isto pois já lhe foi indicado o caminho e quero chegar logo na vida abandonada.

Talvez lhe possa ajudar o mesmo texto em outra versão que não lhe é comum. Por exemplo “Nova Versão Transformadora”

Diante de tudo isso, esforcem-se ao máximo para corresponder a essas promessas. Acrescentem à fé a excelência moral; à excelência moral o conhecimento; ao conhecimento o domínio próprio; ao domínio próprio a perseverança; à perseverança a devoção a Deus; à devoção a Deus a fraternidade; e à fraternidade o amor.

O abandono da própria casa

Seja porque a pessoa é legalista ou porque é livre, ela corre o risco de se abandonar. Talvez ele mesmo não perceba isso. Entra dia e sai dia e aos poucos, sem perceber, vai abandonando o posto.

Para uma casa bem construída ruir só fazem falta duas coisas: desleixo e tempo. Uma simples goteira no telhado, acaba com o madeiramento mas antes de percebermos a agua já se infiltrou e acabou com alguma parede. Podemos falar a mesma coisa sobre as formigas, falta de limpeza, etc.

Pedro diz que “Porque, se essas qualidades existirem e estiverem crescendo em sua vida, elas impedirão que vocês, no pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo, sejam inoperantes e improdutivos” (1Pedro 1:8)

No mundo evangélico, estar inoperante é deixar de ir na congregação e ser improdutivos é não evangelizar. Mas isso não faz muita justiça ao texto. Pedro nem menciona essas coisas. Pedro não leva para o âmbito institucional e sim para o pessoal ao dizer no versículo seguinte isto: “Todavia, se alguém não as tem, está cego, só vê o que está perto, esquecendo-se da purificação dos seus antigos pecados” (1Pedro 1:9)

Voltando no exercicio do inicio, você compara sua vida com a sua própria há cinco, dez, vinte anos e diz: “Poxa, esse carinha não cresceu”  ou também “Ue, ele se deixou estar, se abandonou. Cadê o crescimento dele?” e ainda “Nossa, que triste, continuo sendo o mesmo tonto de há duas décadas”

Longe de fortalecer sentimentos de culpa (a culpa assim como a raiva são péssimas conselheiras) o que busco aqui é a auto-analise. Estar nas fileiras cristãs não é como subir a um carrinho de montanha russa e ser levado daqui para lá de forma puramente passiva. Também não é fazer parte de alguma instituição cristã por mais que a execução daquilo que está no seu coração pode ser que o leve a pertencer a uma instituição para viabilizar o seu sonho.  Muito menos é ter todos os problemas solucionados e viver em plena paz e harmonia com todo mundo.

Estar nas fileiras cristãs é um chamado constante ao serviço e à morte pessoal. Duas coisas que o ser humano natural detesta fervorosamente. Não é uma guerra contra o pecado que está no outro (ainda que o pecado como sistema precise ser denunciado) mas sim contra aquilo que em mim não se assemelha ao Cristo. É uma luta não contra a injustiça social (ainda que um coração cristão deveria sangrar e protestar ativamente contra ela) e sim contra a injustiça que eu mesmo provoco no âmbito pessoal, familiar, social, corporativo. Não é uma luta contra a corja de políticos que corroem as finanças das pessoas comuns (ainda que devamos usar todos os meios ao nosso alcance para demandar mais transparência e rotatividade política) mas sim contra aquilo que em mim não respeita as coisas alheias e busca apenas ganho próprio.

Pedro diz que quem não tem estas coisas está cego. Não completamente, mas uma pessoa com curta visão. Ele não apenas não consegue enxergar a realização do chamado que recebeu, mas também não consegue enxergar (lembrar) a purificação dos seus antigos pecados. Na linha do tempo, ele está num vale. Não há lembrança nem esperança. Tudo são picos altíssimos e inalcançáveis. Sombras. Frio. Desorientação. Numa condição dessas, o mais seguro para o peregrino parece ser ficar quieto, acuado, cada vez mais encolhido num último ato de preservação.

Pedro ensina que a forma de amadurecer na vida cristã é por meio do cultivo sistemático da virtude, o conhecimento, o domínio próprio, a perseverança, a piedade, a fraternidade e o amor. Só se essas qualidades estiverem presentes (e não como algo estático mas dinâmico “estiverem crescendo em sua vida“) só assim  elas impedirão que sejam inoperantes e improdutivos.

Avançando, a figura que Pedro emprega no versículo 10 me remete a uma ação militar: consolidar o chamado e a eleição de vocês. A colina foi conquistada, mas falta consolidar ela. Faltam as defesas necessárias para que se torne um local seguro para outros virem.

O legalista comete o erro de pensar que pode chegar sozinho à vida cristã e suas virtudes: eu mesmo conquisto a colina. O livre comete o erro de pensar que – tendo sido liberto – não precisa mais se preocupar com a vida cristã; que tudo acontece no automático: a colina  e todos os vales que a circundam são meus já.

A proposta de Pedro é bem mais cristalina e coloca as coisas no seu devido lugar: Lhe foi dada uma fé, agora enriqueça ela.

Última pérola

Finalmente, resta uma pequena jóia no versículo 11: “assim vocês estarão ricamente providos quando entrarem no Reino eterno do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” Obvio que na visão de Pedro o Reino é escatológico; isto é, ele se cumpre e manifesta apenas no fim da história (a pessoal ou a global) e isso não contradiz o fato do Reino estar sendo construído aqui e agora com cristãos responsáveis.

Para Pedro, a vida cristã recolhe no Reino eterno aquilo que semeou aqui nesta vida. Diferente da visão profana da idade média em que os pobres eram superficialmente consolados com a ideia de que ser pobre era bom porque ia ser recompensado no futuro pós morte ao passo que isso não explicava como podia existir uma igreja institucionalizada extremamente rica, o foco aqui é no desenvolvimento pessoal e nos seus desdobramentos eternos.

Ser pobre não é ser humilde nem garantia de ser melhor pessoa que um bem abastado. Ser rico não é sinónimo de orgulho ou perdição. Se você para para analisar, pode ser que concorde comigo em que essas coisas são externas.

A lista de coisas que Pedro menciona são de cunho íntimo. Tem a ver com como o exército vai se abastecendo de coisas ao longo do caminho antes de chegar no seu lugar de descanso final. Tem a ver com ir cada dia se abastando dos melhores recursos para a época que virá.

Não gostamos muito de falar nisso. Gostamos em geral de pensar que a vida eterna começa apenas após a morte e nada do que fizermos aqui afeta a vida de lá. Mas a Bíblia ensina outra coisa. E o faz em repetidas ocasiões. À guisa de exemplo, lembre de 1.Cor.3:1-15, Tiago 2:18-22, Heb. 6

Quer entrar ricamente provido no Reino eterno, então continue a acrescentar à sua fé virtude, à virtude conhecimento, ao conhecimento domínio próprio, ao domínio próprio a perseverança, à perseverança a piedade, à piedade a fraternidade e à fraternidade o amor.

A salvação não é por obras e está garantida. Repare que Pedro em lugar nenhum diz alguma coisa como “Se não fizerem isto arderão no fogo eterno“. Não. Ele diz: “quando entrarem no Reino“. A entrada no reino depende da fé recebida que aponta para o Cristo morrendo na cruz. Uma coisa conquistada por graça, não pode ser anulada pelas obras e se fosse, não poderia ser restituída já que seria uma ofensa não apenas ao Cristo, mas a tudo o que a morte dele na cruz representa. (Heb. 6:4-6)

Volte a construir sua casa. Dedique tempo a sua vida pessoal. Não se abandone. Foi pago um alto preço por ela.

Sobre Esteban D. Dortta

Esteban é um pastor evangélico. Estudou teologia no Seminário Teológico Batista do Uruguai entre 1991 e 1994. Nascido em 1971, vive no Brasil desde 1995. Entende que a liberdade de pensamento, expressão e reunião são essenciais para o desenvolvimento não apenas cristão, mas de toda a sociedade.