Arquivo da categoria: Conversão

Saúde mental e a esperança cristã

Esperança em meio à angústia: Cristo como fundamento da dignidade e restauração humana.

Vivemos tempos de exaustão emocional coletiva. Ansiedade, depressão e solidão tornaram-se quase uma linguagem comum, falada em sussurros por quem teme ser julgado. O tema da saúde mental já não pertence apenas à psicologia – tornou-se também uma urgência espiritual. E a Igreja, se quer ser fiel ao Evangelho e de certa relevância na sociedade em que vive, não pode se calar diante do sofrimento humano.

Mantidas as proporções e a distância, existe um paralelo em como a sociedade judia tratava a lepra (e os leprosos) em tempo de Jesus e como nós – como Igreja – tratamos a saúde mental. E temos de tudo, mas geralmente, nada positivo ou construtivo. São poucos os exemplos que se permitem observar a fragilidade da existência humana e se escapam de soluções do tipo “tudo ou nada”. Ou seja: aquelas soluções que revestem de ares espirituais realidades mentais muitas vezes devastadoras.

É comum que a fala “suficientes em Cristo” a tiremos do ambiente soteriológico (ou seja, relativas à salvação) para colocá-lo em questões de ordem mental. Tão comum é isso, que para muitos parece uma afronta dizer que – em certos casos – é necessário o cuidado profissional e não basta apenas a oração.

A mente é o lugar onde se misturam pensamentos, emoções e reações do corpo.
É como uma ponte entre o que sentimos, o que pensamos e o que fazemos.
Quando algo se desorganiza — por dor, trauma, estresse ou desequilíbrio químico — essa ponte pode se quebrar. Assim como um osso se quebra, a mente também precisa de cuidado e tempo para se curar.

Recentemente uma colega de serviço foi atropelada enquanto dirigia sua moto. Quebrou a bacia, o fêmur em várias partes e teve fratura expostas. Óbvio que ela agradece as orações, mas com certeza a intervenção de um conjunto de profissionais da saúde é não apenas bem-vinda, mas essencial para a recuperação. Se não olhamos para a mente como olhamos para o osso, continuaremos a acumular culpa improcedente sobre quem padece e trataremos os profissionais da saúde mental como charlatães. Não é de estranhar que o movimento igual e contrario seja semelhantemente forte.

Karl Barth lembrava que o grito do homem aflito encontra resposta não em si, mas na revelação de Deus em Cristo. A esperança não nasce da autoajuda, mas da graça que se faz carne. Tillich chamou isso de “a coragem de ser”: continuar existindo mesmo quando o desespero parece mais real que a fé. É coragem de seguir, não por força própria, mas sustentado por uma presença que não nos abandona.

A saúde mental, à luz do Evangelho, não é ausência de dor, mas a presença de sentido. Jesus não prometeu eliminar o peso, mas compartilhá-lo: “Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei” (Mt.11:28). O alívio vem do encontro, não da fuga. Esse texto, por mais que pode ser usado em mensagens evangelísticas e faz muito sentido, na realidade é um chamado aberto a todos: aqueles que estão longe do evangelho e também os discípulos. Limitar ele a assuntos salvíficos, é diminuir sua potência de forma irresponsável.

É precisamente aí que a comunidade cristã se torna (ou deveria se tornar) um espaço de cura: quando deixa de ser tribunal e se torna abrigo. Quando acolhe sem rótulos, escuta sem pressa, ora sem impor fórmulas. O Cristo ressuscitado, como recorda N.T.Wright, inaugura uma esperança concreta – não apenas espiritual, mas que toca corpo, mente e criação. A ressurreição é o anúncio de que a dor não é o fim.

Neste Dia Mundial da Saúde Mental, o chamado é duplo: cuidar e ser cuidado. Romper o silêncio, acolher o cansaço alheio, e lembrar que a fé não é inimiga da terapia – é sua companheira (desde que seja uma fé saudável, vale dizer)

Finalmente, mas não menos importante: “Perto está o Senhor dos que têm o coração quebrantado e salva os de espírito oprimido” (Sl.34:18) E nessa proximidade, nasce a esperança que não decepciona (Rm.8:18-25)

¹⁸ Eu penso que o que sofremos durante a nossa vida não pode ser comparado, de modo nenhum, com a glória que nos será revelada no futuro.
¹⁹ O Universo todo espera com muita impaciência o momento em que Deus vai revelar o que os seus filhos realmente são.
²⁰ Pois o Universo se tornou inútil, não pela sua própria vontade, mas porque Deus quis que fosse assim. Porém existe esta esperança:
²¹ Um dia o próprio Universo ficará livre do poder destruidor que o mantém escravo e tomará parte na gloriosa liberdade dos filhos de Deus.
²² Pois sabemos que até agora o Universo todo geme e sofre como uma mulher que está em trabalho de parto.
²³ E não somente o Universo, mas nós, que temos o Espírito Santo como o primeiro presente que recebemos de Deus, nós também gememos dentro de nós mesmos enquanto esperamos que Deus faça com que sejamos seus filhos e nos liberte completamente.
²⁴ Pois foi por meio da esperança que fomos salvos. Mas, se já estamos vendo aquilo que esperamos, então isso não é mais uma esperança. Pois quem é que fica esperando por alguma coisa que está vendo?
²⁵ Porém, se estamos esperando alguma coisa que ainda não podemos ver, então esperamos com paciência.

Romanos 8:18-25

A Comunidade: Um Espaço de Descanso e Comunhão

Descanso e Comunhão

A ideia de que a comunidade religiosa deve ser um lugar de descanso e comunhão é algo que ecoa profundamente em nossos corações. No entanto, muitas vezes, essa realidade se distancia da prática cotidiana. A frequência no templo, embora seja um aspecto importante, não deve se limitar a uma rotina sem significado. É necessário que o espaço de encontro com Deus e com os outros seja leve, respirável e humano, onde as pessoas possam se sentir acolhidas e apoiadas.

A Visão Bíblica

A Bíblia nos apresenta várias passagens que destacam a importância da comunidade como um lugar de apoio e descanso. Em Mateus 11:28-30, Jesus diz: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as vossas almas.” Essas palavras nos lembram que a comunidade deve ser um refúgio para os cansados e sobrecarregados.

O Templo como Espaço de Encontro

O templo, ou a igreja, deve ser mais do que um local para cumprir uma obrigação religiosa no domingo. Deve ser um espaço onde as pessoas possam se encontrar com o povo de Deus de maneira autêntica. É um lugar onde se pode descansar, sem a pressão de fingir que tudo está bem quando não está. Em Hebreus 10:24-25, lemos: “E consideremo-nos uns aos outros para nos estimularmos ao amor e às boas obras; não deixando de congregar-nos, como é costume de alguns, mas exortando-nos uns aos outros; e tanto mais quanto vedes que se aproxima o dia.

A Comunidade como Refúgio

Para que a comunidade alcance sua finalidade proposta, é essencial que seja um lugar onde as pessoas se sintam livres para serem elas mesmas. Deve ser um ambiente onde se olha no olho, se escuta sem pressa e se abraça sem medo. Em Gálatas 6:2, Paulo nos lembra de que devemos “carregar os fardos uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo.” Isso significa que a comunidade deve ser um lugar de apoio mútuo, onde as pessoas se sentem seguras para compartilhar suas lutas e alegrias.

Exemplos e Ações Pontuais

Para tornar a comunidade um espaço de descanso e comunhão, podemos adotar algumas práticas simples, mas significativas:

  1. Grupos de Apoio: Criar grupos onde as pessoas possam compartilhar suas experiências e receber apoio emocional e amparo espiritual.
  2. Atividades Comunitárias: Organizar atividades que promovam a interação e o laço entre os membros, como refeições compartilhadas ou projetos sociais em que a fé tome forma apalpável.
  3. Ambiente Acolhedor: Transformar o templo em um espaço acolhedor, onde as pessoas se sintam confortáveis e à vontade mas sem por isso se sentirem confortáveis com seu próprio pecado. Aliás, é na comunhão da igreja local apenas que se encontra essa mistura poderosa… esse dynamis ou poder-em-ação de Deus.
  4. Mensagens de Esperança: Focar as mensagens religiosas em temas de esperança, amor, aceitação, cura do pecado, redenção.
  5. Mensagens de Transformação: Deus é o primeiro interessado em acolher e receber para uma posterior transformação. Acolhimento sem transformação é apenas “afofar a consciência”. O evangelho é uma mudança radical: uma nova consciência.

Conclusão

A comunidade religiosa deve ser um lugar onde as pessoas possam encontrar descanso, apoio e comunhão verdadeira. Para que isso aconteça, é necessário que o templo seja um espaço leve, respirável e humano, onde todos se sintam acolhidos e apoiados. Ao refletir sobre a importância da comunidade como um refúgio, podemos trabalhar para que ela seja um lugar onde as pessoas possam se sentir livres para serem elas mesmas, sem medo de julgamento ou cobrança. Ao mesmo tempo, é onde o amor leal pode ser mostrado. Deus aceita e transforma. Esse é o âmago.

Alinhados com esse propósito de transformação plena, a frequência no templo se torna uma experiência de comunhão e não apenas uma rotina sem significado.

Derretimento, fluidez, desassossego

Em geral, as pessoas estão fluindo à busca de uma identidade pessoal e de uma religião que se encaixe nessa identidade. Não ao contrário.

O fenômeno pode ser explicado pelas transformações que ocorreram na sociedade e na religião atualmente à medida que a sociedade se torna mais diversa e plural.

A busca por maior autonomia e liberdade religiosa é um dos principais motivos para o desenvolvimento de novas experiências religiosas ou religiosidades não convencionais. Em vez de se vincular exclusivamente com instituições religiosas estabelecidas, as pessoas estão mais inclinadas a explorar diferentes tradições religiosas, práticas espirituais alternativas e formas personalizadas de religião formando assim seu próprio cardápio. Como se deu grande Subway espiritual se trata-se.

Além disso, ideias e práticas religiosas não convencionais têm se espalhado devido a mudanças nas dinâmicas sociais, como a urbanização, a globalização e o impacto da mídia. As tecnologias modernas também ajudaram muito, permitindo acesso a várias opções religiosas e informações.

É importante lembrar que as tradições religiosas cristãs no Brasil continuam existindo, o que mostra que essas mudanças não anulam a importância e o impacto duradouro das religiões tradicionais na sociedade. Mas não é esse meu ponto.

Meu ponto é com aqueles que estão na busca. Essa busca tem seu tempo de validade. Em algum momento você vai envelhecer e descobrir que sim há valores eternos e que sim há “certo” e “errado”. Isso está gravado a fogo no próprio ser humano e não tem como fugir disso.

Nesse ponto, não interessa se é homem, mulher; rico ou pobre; opressor ou oprimido; gay ou hétero; político ou pagador de impostos: todos têm essa lei talhada no próprio coração e não há necessidade que ninguém lhe explique nada. É apenas uma questão de tempo.

Porque todos os que sem lei pecaram, sem lei também perecerão; e todos os que sob a lei pecaram, pela lei serão julgados.
Porque os que ouvem a lei não são justos diante de Deus, mas os que praticam a lei hão de ser justificados.
Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei;
Os quais mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os;
No dia em que Deus há de julgar os segredos dos homens, por Jesus Cristo, segundo o meu evangelho.

Romanos 2:12-16

Inclusão cristã

No movimento de Jesus, a mensagem de liberdade e inclusão era uma das características centrais. Jesus desafiou as normas sociais de sua época, acolhendo e convidando todas as pessoas a segui-lo, independentemente de sua origem étnica, status social, gênero ou histórico de vida. Sua ênfase na amorosa inclusão ecoou nas palavras e ações dos primeiros seguidores de Jesus.

No contexto cristão dos dias de hoje, no entanto, ainda podemos identificar movimentos e teologias que, infelizmente, excluem certas pessoas da comunhão dos seguidores de Jesus. Às vezes essa exclusão é feita com base em doutrinas rígidas, diferenças sociais ou culturais, e orientação sexual ou identidade de gênero.

Isso demanda de nós um exercício bem eclético que nos leva para longe do assim chamado fundamentalismo cristão. Fundamentalismo aqui nada mais é do que tirar sempre as mesmas conclusões sem nada haver de novo ou que nos cutuque na leitura e interpretação da escritura.

Todavia, esse movimento não pode ser confundido com liberalismo mesmo requerendo liberalidade amorosa. É aquilo de se arriscar no acantilado para resgatar a ovelha.

Vivemos numa sociedade mimada que confunde o amor com liberdade irresponsável. Por outro lado, observamos que a igreja se vê acuada diante de tanta pressão social que – convenhamos – é uma pressão espiritual. Como se amar não fosse também almejar mudanças! Que o digam os pais que amam seus filhos. (Há aqueles que os detestam e também os que praticam alienação parental. Esses servem como exemplo de como não proceder)

Desde a Torá nos seus lembretes de amar a Deus por cima de todas as coisas e amar o próximo como a si mesmo que a mesma ideia se vem repetindo uma e outra vez: não deixe que seu próximo vá para a morte. Ou dito de outra forma, Jesus faz menção aos textos do antigo testamento e no contexto de Levitico 19 encontramos o seguinte:

Não odiarás a teu irmão no teu coração; não deixarás de repreender o teu próximo, e não levarás sobre ti pecado por causa dele.  

LEVÍTICO 19:17

Então, e antes que diluamos o poder do evangelho em afetos puramente terrenos e agendas antropocentristas, é urgente salientar que essa aceitação do Novo Testamento não é uma inoperante ou ineficiente, mas sim aquela que sacia a alma e transforma a totalidade do ser humano.

Talvez seja tempo de resgatar a velha ideia da theosis a partir do novo Adão que teólogos antigos como Irineu promoviam. Não para uma salvação apenas espiritual da alma no além, mas para uma vida enriquecedora e significativa agora.

Então Jesus pôs-se em pé e perguntou-lhe: “Mulher, onde estão eles? Ninguém a condenou?”

“Ninguém, Senhor”, disse ela.
Declarou Jesus: “Eu também não a condeno. Agora vá e abandone sua vida de pecado“.

João 8:10-11

A herança esquecida

Era uma vez um povo que vivia sua pequena felicidade. Não se sentia infeliz nem muito menos. Tinha achado seu ponto de equilíbrio e – mesmo que ocasionalmente os membros desse povo falassem uns ao outro da triste situação dos que não pertenciam a este povo – pouco e nada faziam ao respeito. Era mais uma formalidade que ajudava na aceitação por parte dos outros do mesmo povo, do que realmente uma carga.

Tudo nesse povo era circular. Nele nada era quadrado, triangular, hexagonal, ou de qualquer outra forma poligonal. Tudo era simplesmente um círculo. Alguns maiores, outros menores, mas sempre círculos. Haviam por vezes círculos tão enormes que, observados de perto e por pouco tempo, pareciam uma reta.

Para se ter uma ideia, os planos e projetos eram circulares. Eles começavam e acabavam sempre no mesmo ponto que tinham começado (ou acabado antes, ninguém mais sabia). De esta forma, se podia ter a ideia de movimento sem nunca ao menos passar por lugares ou situações novas. Tudo quanto se observava já era conhecido por alguém de alguma forma e com isso os mais novos não tinham necessidade de sentirem medo ou aflição já que alguém da geração anterior (ou anterior à anterior, ninguém mais sabia) já tinha passado por lá.

Haviam ao menos quatro círculos básicos na vida deste povo: o íntimo, o particular, o simulado e o externo irreal. No círculo íntimo ninguém entrava a não ser a própria pessoa. Neste espaço, as ideias e sonhos se revolviam de forma mais ou menos desorganizada mas sem nunca ao menos poderem sair para os círculos mais externos. Como muito, alguma ideia que já tinha sido ouvida nos círculos mais externos era devolvida ao círculo particular, com muita dificuldade ao simulado (sempre e quando a aceitação fosse de alguma forma garantida) mas, com certeza, nunca, mas nunca mesmo, sairiam ao círculo externo irreal.

Por conta dos círculos serem concêntricos o equilíbrio do esquema todo dependia em grande medida do ponto mais básico assim como da velocidade de giro dos círculos mais externos, mais ou menos como o rodopiar de um pião. Enquanto tudo continuasse a girar com a suficiente velocidade o pino continuaria como ponto de apoio e enquanto o ponto de apoio continuasse lá, tudo iria a continuar girando e a tão bem conhecida e estática felicidade estaria garantida.

A herança esquecida – Júlio

Anteriormente…

Júlio não era de todo circular. Suas ideias iam e vinham. Algumas eram ideias estranhas. Bom, ao menos não eram circulares. Para falar a verdade, Júlio era mesmo meio amassado. Ele não girava muito bem. Até o círculo particular se incomodava com o jeito em que ele girava. No círculo simulado ele não se encaixava e vira e mexe falava de coisas que só podiam ter vindo do círculo externo irreal. Para que o leitor me entenda melhor, mais do que girar em círculos, o Júlio rodopiava alternando a volúpia rodo ativa com certo degringolamento na própria rota: Um louco solto.

Uma das coisas mais perigosas que Júlio falava era que o último círculo estava mal etiquetado. Ele dizia que o último círculo não podia levar nunca a palavra irreal na etiqueta. Apenas círculo externo seria suficiente. Apenas pensar nesta ideia fazia os circulões (assim eram chamados os membros deste povo), como dizia, apenas pensar nesta ideia fazia os circulões mais velhos estremecerem na base. Como o leitor pode imaginar, uma estremecida neste povo não era o mais desejável já que um círculo poderia bater no outro, fazendo-o estremecer-se e podendo desencadear uma reação em cadeia.

Da última vez que isso tinha acontecido o desmoronamento, o tombo, a sensação de insegurança tinham invadido o povo ao ponto que – não podendo mais rejeitar as ideias – tiveram que se desfazer do circulão ousado. Como era que se chamava? Era um nome com ésse. Sofos? Saliente? Solidão? Salvador? É isso ai! O circulão aloprado chamava Salvador.

Salvador tinha a mania de mostrar que círculos, por mais enormes e velhos que fossem, nunca seriam linhas retas. Ele insistia que haviam outras formas igualmente válidas de construir um povo; triângulos, quadrados, pentágonos, etc. O problema estava com o caminho. Segundo Salvador, o essencial era reconhecer que o andar não podia estar limitado à reprodução da própria forma do povo. Ou seja, ele dizia que haviam outros povos no círculo externo irreal que alias, ele -que nem Júlio- insistia em tirar a palavra irreal da etiqueta. Estes povos tinham as formas mais variadas mas todas elas, assim como os circulões, insistiam em que o caminho a ser seguido tinha a própria forma do membro individual do povo apenas mudando em tamanho e – por consequência – em historicidade. Quando mais velho e maior, tanto melhor e seguro o caminho a ser seguido; isso contanto a forma fosse idêntica à do povo que o transitasse.

Salvador insistia em que a forma que o caminho assumia e o tempo transitado não eram um atestado de que o próprio caminho era certo. Por outro lado, estas coisas não tinham como competir com a relevância do destino a ser atingido nem muito menos com a aventura das descobertas que o próprio caminho poderia vir a oferecer.

O orgulho com que os circulões se gabavam de quão seguro era seu próprio caminho, quão elegante e suave era se comparado ao dos triangulões ou dos quadradões via-se gravemente ameaçado pelo sorriso meigo e simples de Salvador que – na sua aparente loucura – conseguia enxergar vida além do círculo externo irreal.

As pessoas que o ouviam falar, o faziam por meio do círculo simulado. Este era meio como que uma última linha de defesa para a pseudo realidade particular e a quase realidade interior. No círculo simulado, a realidade era antagônica à aceitação. As ideias eram expostas sempre e quando fossem circulares. Maiores, menores; com traços largos ou finos; mas circulares. Os mais ousados traziam ideias ovais que não passavam de círculos deformados. Passado o choque inicial, a ideia passava a ser considerada pois não se tratava de nada mais do que um círculo sob forte pressão ou qualquer eufemismo do tipo.

Salvador vinha e falava de triângulos, quadrados, hexágonos e outros polígonos como se eles também fossem formas válidas de vida. Mostrava aos circulões que tanto fossem triangulões, quadradões, ou circulões, o importante mesmo era escolher um outro caminho que não era a mesmice de sempre. Porém a coisa realmente pegava quando ele abandonava os polígonos e passava a falar dos poliedros. Onde já se viu ter três dimensões? Volume? É claro que ele fazia isso não apenas para chacoalhar as ideias dentro do círculo íntimo de cada circulão o que já de por si constituiria um objetivo bastante ousado. O propósito dele era mostrar que o importante era o caminho e não a forma de quem o transita.

Júlio se sentia de certa forma conectado com Salvador. Não que fossem contemporâneos. Nada disso. Havia uns dois mil anos de separação histórica. A coisa era mais profunda.
Júlio tinha nascido como qualquer outro circulão; ou seja: dois circulões complementares se uniam, mitigando as diferenças do círculo simulado e passando a constituir um novo círculo particular, abandonando – na medida do possível – os respectivos círculos particulares ao que tinham pertencido para formar um outro circulo melhor e maior na medida do possível ou pelo menos aparentar que assim era.

Bem, particularidades à parte, Júlio foi crescendo bastante bem. Aprendeu as habilidades de simular o pensamento, esconder a verdade, fugir das ideias que não fossem circulares, enfim, tudo aquilo que os mais antigos achavam essencial para o pequeno Júlio chegar com sucesso a participar do círculo simulado e evitar o mais possível o contato com o círculo externo irreal. A não ser, claro, aquelas vezes em que a necessidade o empurrasse para obter algum recurso com os triangulões ou os quadradões vizinhos.

Perdendo a vez

Dizem que se colocamos um sapo em água fria e aos poucos vamos aquecendo ela, ele morre fervido sem sequer perceber o que está acontecendo. Não fui atrás da veracidade científica disto mas – como em tantas outras situações – pegarei apenas o conceito popular bem conhecido para tratar de coisas mais profundas. Um outro dia vemos se é verdade ou não que os batráquios morrem fervidos aos poucos sem perceber.

O fato é que a igreja (não a sua congregação local apenas, mas todas e cada uma das congregações cristãs locais) se está desfazendo. Em um sentido isso é bom porque houve uma tentativa de reconstrução ao longo dos últimos quinhentos anos de um certo “catedralicismo” evangélico na tentativa de emular inconscientemente (ou não) o lugar do qual saímos.

Todavia, há um outro sentido que é preocupante. Básicamente a igreja não mais se congrega. Ela pode até se juntar de vez em tanto… uma vez por semana, uma vez por mês… mas não se congrega. Os processos evolutivos volitivos são deixados de lado por uma busca de certa “espontaneidade” que nada mais é do que uma fina camada de verniz sob a qual se esconde uma procrastinação generalizada e – vista de certa distância até poderiamos falar de uma “procrastinação harmônica” já que a mesma atinge todos e cada um dos nichos evangélicos.

Em conjunto, consideramos o fato de congregar-se como limitador, castrador, desmotivador quando na realidade é apenas no ato de congregar-se que o discípulo pode crescer. Obvio que não digo com isso que há momentos de estar sozinho ou de retiro ou de reencontro com certas essencialidades individuais. Mas meu foco é o desleixo com o que tratamos o ato da congregação

Para alguns, congregar-se é ir no culto de domingo à noite. Para falar a verdade, acho que a maior parte das pessoas – se consultadas – falariam que se congregar-se trata-se disso. Para quem não se congrega, para quem não participa ativamente da construção da identidade local, sair do sofá e ir a um culto domingo à noite, realmente é um avanço. Só que a vida cristã não tem a ver com micro-avanços e sim com uma mudança na raiz da vida, isto é, na forma de pensar, de ser.

Há uma ideia que parece boa permeando as nossas congregações: somos todos parte da mesma e única igreja. Se bem isso é uma verdade teológica visceral, ela apenas dissimula nosso completo desleixo com a construção da identidade particular. O equivalente é mais ou menos como dizer que somos todos seres humanos e por isso não há necessidade de construirmos famílias.

Tenho convivido com três meios evangélicos diversos e conheço mais três de forma indireta (por meio de amigos, conhecidos etc). De primeira mão conheço os batistas, os presbiterianos e os pentecostais. Indiretamente conheço os menonitas, os irmãos livres e os metodistas e um grupo neo-pentecostal. Tirando os neo-pentecostais da equação (por conta de ser o foco apenas a prosperidade financeira/emocional/terrena da pessoa) os outros grupos me merecem especial atenção porque – observando-os – vejo uma degradação paulatina, lenta e constante do tecido evangélico.

Todos os meios sérios de construção da identidade evangélica local enfrentam o mesmo problema: o povo não mais se congrega, quando se congrega o faz simbólicamente e o símbolo (o culto) é esvaziado do seu propósito principal que é apenas a exposição da palavra de diferentes formas (pregação, louvor, adoração, esclarecimento do funcionamento local).

Lembro que nos tempos do seminário a gente debatia se o anuncio das atividades da igreja deveria ir antes ou depois da mensagem; no inicio, no meio ou no fim do culto. Temia-se naquela época – e com razão – cair no ativismo. Contudo, a igreja em funcionamento ao longo da semana é uma necessidade fundamental dela. Ninguém espera que você esteja presente a todos os cultos, seria mais ou menos como esperar que você engolisse o cardápio inteiro que um restaurante está oferecendo. Mas em lugar de mostrar as atividades da igreja como tal, o pêndulo tem-se movido ao extremo contrário, ao ponto de achar até pecaminoso participar de alguma atividade da igreja fora do culto. O equilíbrio então – para mim – está em entender que se trata apenas de um cardápio e que é responsabilidade do membro (sim do membro e não do pastor) manter uma alimentação espiritual saudável. Quase com certeza no seu estomago o Strogonoff ganha de uma boa salada de brócolis com chuchu sem sal. Mas é quase uma certeza que um culto de domingo com uma boa equipe de louvor, um banco aconchegante, uma boa iluminação, um ar condicionado e uma pregação suave ganham de 1000 a 1 do evangelismo na rua, da ajuda social, ou do ministério de oração da igreja.

Aos poucos, a igreja local vai se desconstruindo. Lastreado num conceito teológico bom (somos todos parte de uma mesma, única e grande igreja) transvestimos nossa incapacidade chamando-a de liberdade e – como pastores – abandomanos o posto, jogamos a culpa nos membros, na instituição, no momento e a coisa toda degringola.

Neste inicio do século XXI há necessidade sim de reforçar as identidades locais. O “neoliberalismo” teológico apenas ajuda para ir tornando a água fria em água morna e matando -aos poucos- a vitalidade da igreja. Ai a pergunta do poeta se torna bem oportuna “Como pode um peixe vivo, viver fora d’agua fria?

Minha mãe – forjada no discipulado de um pastor russo que escapou da imbecilidade bolchevique – é da opinião que a igreja apenas pode florecer sob pressão. Que não há nada que substitua uma perseguição para – ao final das contas – revelar a verdadeira igreja. Pelo que entendo os diamantes são feitos assim também: carvão sob alta pressão.

Congregar-se, então, é para mim uma questão de vitalidade. Ou a igreja local tem vida e se congrega ou ela apenas é um simulacro de igreja. Não pode ser que a igreja do século XIX tenha-se tornado tão cega, surda e muda e que apenas almeje uma boa pregação. Não pode ser que os pastores tenham perdido tanto assim o foco que não mais chorem, sofram e vivenciem dores de parto pela formação da identidade do Cristo na igreja local. Ou vai me dizer que um reflexo da luz – mesmo não sendo a luz completa – não deveria de se parecer com a luz? É obvio que sim! A igreja local do Cristo vivo deve – de mais de uma forma – refletir Ele e apenas Ele. Este “deve” aqui não se trata de ações compulsórias imposta por uma cúria que quer se evadir das suas responsabilidades pessoais mas sim de demonstração da essencialidade vital da congregação local.

Por outro lado, a vida é sofrimento. Sem crise não há mudança. Sem sofrimento não há vida porque sem sofrimento não há escolhas apenas porque “em time que está ganhando, não se mexe” e – como não sabemos se uma decisão nos leva à vitória ou à derrota, preferimos o marasmo do que o risco, a morte do que a vida. Congregar-se é sofrer. É arriscar-se a amar e não ser amado, a se entregar sem receber nada em troca, a se dedicar e sentir que é o único, a chamar e observar que quase ninguém responde, a conclamar e ver que quase ninguém atende. Nada mais parecido com o chamado de Jesus. A oração de São Francisco resume assim “É perdoando que se é perdoado e morrendo que se vive” mas isso é apenas um resumo parcial da ideia original.

Congregar-se é responder afirmativamente ao chamado universal de Deus para os cristãos. E são apenas os cristãos que podem responder. O outro, o de fora, nem ouve o chamado, não se inquieta com a coisa local, não sofre. O outro precisa primeiro passar pela Cruz, mas não pelo lado de baixo, pela frente ou pela parte de trás da cruz, precisa estar crucificado juntamente com Cristo… plenamente morto. Porque se Cristo morreu e ressurgiu, assim também a porta de entrada para a vida cristã, é a cruz e nada mais do que a cruz. Só assim que pode passar a enxergar a realidade de um mundo que se perde e de uma igreja local que cada vez mais opta (de forma consciente ou não) por abandonar o seu posto.

Você é um membro de uma igreja local e não sente falta de congregar-se? Acha que é bobagem institucional?

Você pastoreia uma congregação e não sente falta de mostrar na prática (e não a esmo) como suas ovelhas podem servir congregando-se não sob desafios ou projetos mas sob o cajado do Cristo? Não consegue enxergar que as ovelhas precisam de você?

Bom, o único caminho é o da cruz (Gál.2:20). Apenas naquela posição (de braços abertos, impotente de abraçar) e naquela altura (onde pode ver por cima de outras cabeças mas os outros vem seu vexame intimo) e naquela condição (de ir morrendo cada vez mais um pouco) é que seus olhos espirituais podem ser abertos e se arrepender do seu pecado.

Estamos morrendo aos poucos. Sem perceber. Sem querer. Pecando. Abandonando o posto.

Pr.Esteban Daniel Dortta

Morando em uma casa remendada.

Ninguém quer morar em uma casa cheia de remendos. O processo é simples, uma goteira aqui, uma rachadura acolá, um muro com defeito, enfim em algum momento o remendo, o conserto se faz necessário.

Mas ninguém quer que o remendo seja visto. Geralmente gastamos muito com a estética final da casa. O remendo é então sempre feito de forma tal que possamos -em algum momento- cobrir ele de tal forma que pareça que a casa nunca teve rachaduras.

Na vida pessoal também é assim. Não queremos que ninguém perceba nossos remendos. Basicamente queremos aparentar perfeição e não erros estruturais, rachaduras no caráter, ou simples imperfeições goteiras na vida espiritual.

Almejar ser como Deus pode ser coisa boa, aparentar a perfeição dele nem tanto.

Acontece que na nossa vida, os reparos estruturais (os essenciais) apenas podem ser feitos pelo próprio criador. É claro que em se tratando do criador, o reparo dele vai ser o melhor de todos os que possam ser feitos.

Mas cá entre nós, se o reparo é uma ação de Deus, não seria interessante que seja visto? Não é por acaso fruto da sua graça? Não é ali justamente que reside sua gloria em mostrar que é possível restaurar o caído? Não é exatamente isso que o mundo precisa ver? A ação de Deus restaurando o que o Pecado tem estragado?

Então, talvez seja melhor morar em uma casa remendada pelo Senhor que uma construída pela gente apenas para inglês ver.

Jesus e a morte

Evangelho de João

Jesus e a Morte

João 11:1-12:50

Clique aqui para ouvir

Introdução

Enquanto estamos vivos nos achamos grande coisa. Mesmo até quem tem que mexer com cadáveres, se acha grande coisa. Porém, quando a morte bate de pertinho, entendemos nossa própria grande limitação1.

Caminhamos para a morte. É inevitável. Por conta do nosso espírito ser eterno, nos achamos com capacidade de realização eterna. Provar isso é bastante simples: observe os mais idosos, repare que eles tem sonhos como se ainda tivessem 30, 50, 70 anos de vida por diante.

A morte é a última grande consequência nesta terra da entrada do Pecado2 no mundo. A limitação da vida é um corolário das nossas próprias decisões irreversíveis como raça. Escolhemos – como raça – nos parecermos com o Criador e por conta disso nos distinguimos ainda mais. É uma ironia fatal (sem ironias).

Assim como o cego de nascença não tinha escolhido ser cego mas a cegueira era um fruto do Pecado (e o apedrejamento era o curso socio-legal do pecado de adultério mesmo que a adultera não teria escolhido essa consequência) assim também não escolhemos ter vida perecível.

O início de tudo

O que faz o criador? Se respeita plenamente a decisão do Homem3 e o deixa seguir seu próprio rumo sem intervir, ele mesmo se torna irresponsável pela sua própria criação. Se ele intervêm na marra e lhe impõe suas decisões, o Homem o poderia – com justiça – acusar o criador de injusto, intervencionista e por ai vai. Isso por só elencar um par de opções simplificantes.

O pior é que o inimigo da criação (que transformamos, como raça, em príncipe deste mundo pelas nossas decisões livres lá no Éden) ficaria impune. Por mais que o que ele fez foi plenamente legal (pois escolhemos no pleno uso da nossa liberdade), é imoral e por tanto alguma forma de tirá-lo do poder deve de existir. Ao mesmo tempo, Deus é justo, ou seja, ele não poderia enganar a humanidade como o príncipe deste mundo fez.

A solução

A morte de Jesus na cruz tem várias consequências muitas delas imensuráveis desde nossa perspectiva de criaturas sujeitas a este mundo material. A síntese deste assunto está em João 12:31 e 32: Agora, é o juízo deste mundo; agora, será expulso o príncipe deste mundo; e eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim. O ápice da história não é o nascimento do Cristo numa manjedoura e sim a morte do mesmo na cruz. É a morte e não a ressurreição do Cristo o que destrona o príncipe deste mundo. A legalidade da morte foi eliminada por ter morrido o único ser humano justo e com isso o Criador readquire os seus direitos sobre o ser humano e sua existência eterna.

A estrutura do texto

Neste trecho observamos o seguinte fluxo: Cap 11: fato – discurso – ação – reação Cap 12: fato – ação – discurso – reação.

Ou seja, é mais ou menos a mensa estrutura que observamos em cada um dos blocos de João. Não poderia ser de outra forma, já que é a própria estrutura primária do texto a que foi usada para estabelecer os blocos.

Novamente, as duas grandes partes que compõem o bloco mostram certo paralelismo e os assuntos estão entrelaçados. Igual que nos outros blocos, o destaque é para a incredulidade de muitos em contraposição com a credulidade (muitas vezes dubitativa) de poucos.

Lázaro

Quando Jesus trata com Marta sobre a morte do Lazaro, a fé de Marta (muitas vezes criticada por preferir os afazeres da casa do que estar com o mestre) é exposta – assim como sua dor – na frase recolhida em João 11:24 “Eu sei que ele vai ressuscitar na ressurreição, no último dia”. Isso refletia talvez a classe social à que Marta, Maria e Lazaro pertenciam (Bethania significa casa dos pobres) e quase que por conseguinte a linha doutrinaria e politica à que pertenciam: os fariseus4. Isso porque os fariseus eram mais povão que os saduceus e acreditavam na ressurreição. Mas também refletiria algum ensinamento prévio dado por Jesus; mas ai estaríamos especulando ainda mais, já que não há registro específico disso.

Seja como for perante a morte do seu amigo Lazaro, Jesus expõe seus sentimentos e também seu poder. Este homem é o que dizia que podia perdoar pecados e se bem haviam controvérsias sobre se um homem podia ou não perdoar outro homem o que não haviam dúvidas era que ninguém poderia ressuscitar mortos. Em João não temos a frase “Qual é mais fácil? dizer: Os teus pecados te são perdoados; ou dizer: Levanta-te, e anda?” como em Lucas 5:23 porém a proposta é a mesma: Os capítulos 8 e 9 falam do perdão de pecados, o 10 fala de Jesus e seu rebanho e o 11 e 12 falam do poder de Jesus sobre a morte. E da mesma forma que nos evangelhos sinóticos, é esse perdão dos pecados (e a liberação da raiz do pecado) o alicerce sobre o qual pode ser construída a igreja demolindo a construção anterior mas mantendo a mesma base: O criador é Senhor da criatura.

A espera de Jesus antes de ir até Betânia e as três colocações que repetem “Se estivesses aqui ele não teria morrido” levam a pensar que este milagre era mister de acontecer antes de ele mesmo ser morto. Ou seja, todos (Marta v.20, Maria v.32, os amigos da família v.37) achavam que Jesus poderia ter impedido a morte, mas não que poderia vencê-la revertendo seus efeitos. Nem mesmo Marta – que é a que chega mais perto – consegue descifrar o que está por vir.

Quatro dias no túmulo não foram suficientes para deter a vida. Porém, mesmo a vida sendo devolvida a um morto que já cheirava mal, nem por isso a fé dos homens se voltaram para Jesus. O interesse de Jesus em que as pessoas cressem, fica manifesto no v.42. O fato de que era isso que naturalmente se esperava dos que entendiam o propósito de Jesus, fica recolhido no v.45 nas palavras “muitos … vendo o que Jesus fizera, creram nele” E finalmente, que os líderes religiosos do momento sabiam que o povo poderia chegar a crer fica registrado no v.48 “Se o deixarmos, todos crerão nele, e então os romanos virão e tirarão tanto o nosso lugar como a nossa nação

A unção em Betânia

Até hoje o corpo de um judeu é preparado mais ou menos da mesma forma em que eram preparados no tempo de Jesus. De fato, o ritual pelo que os judeus se conduzem hoje é o instituído pelo rabi Gamaliel, o mesmo que ensinou Paulo.

Basicamente ele é um ato religioso judaico e não apenas um mero ritual higiênico por mais que a higiene esteja presente. Um resumo simples deste ritual deveria elencar as seguintes características: 1) Só judeus podem fazer parte da sociedade sagrada que cuida do corpo. 2) O corpo é completamente limpo e envolto em uma mortalha obrigatoriamente simples. 3) O corpo não pode ser embalsamado nem cremado. 4) O corpo deve ser sepultado na terra. 5) Caso seja usado um caixão, este deve ter buracos para que o corpo entre em contato com o solo. 6) Tudo o que não for parte natural do corpo, deve ser retirado e não podem ser enterrados juntos com o corpo. 7) Após a lavagem do corpo, são despejados pouco mais de 12 litros de água para purificá-lo. 8) Após enxugado, o corpo é vestido com as mortalhas. 9) Em caso dos homens, veste-se o Talit (xale de seda) e se possível, o mesmo que era usado quando ele fazia suas prezes em vida. 10) Entre a lavagem do corpo e o enterro não se deve ter uma interrupção de mais de 3 horas.

Seis dias antes da Páscoa5 Jesus e seus discípulos estão em Betânia com Lazaro e suas irmãs. O jantar foi preparado para o mestre. Lazaro, o ressuscitado, era a atração para uma multidão que estava do lado de fora.

Neste cenário, Maria a irmã de Marta e de Lazaro, derrama uma pequena fortuna sobre Jesus. Segundo os cálculos presentes em Marcos e em João, se tratava do equivalente a trezentos dias de um trabalhador braçal. Ou seja, descontados os sábados e feriados para festas religiosas, era o que uma pessoa comum poderia conseguir (se não gastasse nada) em mais de um ano. Se tomamos como exemplo que uma diarista ganha R$120,006 por dia e a dracma e o denário equivaliam ao salário de um dia de trabalho braçal, então estamos falando de alguma coisa como R$ 300*100, ou seja, R$ 36.000 em valores de hoje. Talvez assim possamos sentir a indignação de Judas ao ver que o equivalente a um carro popular estava sendo despejado logo sobre os pés7 de Jesus. Era muuuito dinheiro sendo jogado fora de uma só vez.

A interpretação do fato dada por Jesus é dupla. Por um lado, responde às supostas inquietações levantadas por Judas e talvez algum outro sobre o melhor uso que se faria desse dinheiro se fosse destinado aos pobres dizendo “os pobres vocês sempre terão consigo”. Por outro lado, abre uma linha interpretativa que nenhum dos presentes tinha levantado ainda: “que o guarde para o dia do meu sepultamento

Então o que parece um simples relato de um jantar se transforma em uma alusão gritante ao último inimigo do ser humano. Os traços não são mais os suaves e delicados traços de uma obra renascentista e assumem as cores vibrantes e o alto-contraste de uma obra impressionista.

Na mesma mesa estão um traidor, uma mulher subjugada pela figura do jovem mestre, um homem ressurreto, uma mulher pragmática, os discípulos que poucas semanas depois abalariam Jerusalém, e o criador do mundo que em poucos dias haveria de ser submetido à morte.

Os gregos que visitam Jesus

Se há uma passagem enigmática em João, e essa dos gregos que procuram por Jesus. A reação de Jesus não é a de atendê-los senão a de dizer “Chegou a hora de ser glorificado”.

O que esses gregos fazem aqui?

Bom, desde o ponto de vista da mecânica do relato, a mesma coisa que o oficial romano do 4:43ss. Ou seja, mostrar que o alvo da vinda de Jesus não é só o povo Judeu e sim a criação toda. Isso fica mais evidente quando vemos o versículo que prepara esse caminho neste bloco: 11:51,52: “[Caifás] … sendo o sumo sacerdote aquele ano, profetizou que Jesus morreria pela nação judaica, e não somente por aquela nação, mas também pelos filhos de Deus que estão espalhados, para reuni-los num povo.

Pela segunda vez no relato joanino, uma voz vem do céu para confirmar o propósito divino nesta história toda. A primeira no batismo e agora com a visita dos gregos.

A escolha da figura do trigo no contexto da visita dos gregos nos relembram duas coisas: 1) o trigo junto com a cevada constituíam a base da dieta grega. 2) As terras gregas eram ideais para o plantio de oliveira com o que se formaram colônias gregas fora do seu território para produzir o grão cuja demanda sobrepujava a produção.

Tal era a importância do trigo na cultura helênica que algumas moedas levavam a figura do trigo. Um estudo moderno8 indica que um robô da Grécia do século I era movido a trigo.

Com toda essa informação, não parece fruto do mero acaso que Jesus escolhesse o trigo para ilustrar claramente o que haveria de acontecer com ele para os visitantes gregos (v12:24ss). Mais adiante, ele escolheria uma outra imagem que falaria ao inconsciente coletivo judeu ao dizer “Mas eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim” v.32

A incredulidade dos judeus e “o último dia”

O trecho final do nosso bloco se inicia com uma palavra desalentadora “Mesmo depois de que Jesus fez todos aqueles sinais miraculosos, não creram nele” (v37)

A explicação de João é direta e simples mas não simplista. Ele cola duas passagens de Isaías. O capítulo 53 e o 6. A explicação de João é a seguinte: Não criam, porque não podiam. Os olhos lhes tinham sido fechados para não conseguir crer. Ou dito de outra forma, eles não criam para que se cumprisse a profecia de Isaías. Para muitos isso parece injustiça, mas é exatamente o contrário já que desta forma, o verdadeiro soberano recebe glória, ao passo que nossa liberdade, sempre nos leva para longe do Cristo e sua salvação. Ou, usando as palavras de João, Isaías falou isso porque ele viu a glória de Jesus. Esta glória, segundo o próprio Jesus e a voz vinda do céu, estava atrelada à sua morte. Ou seja, se não fosse pelo próprio Jesus ter dito, não veríamos glória na morte. Do mesmo jeito, naturalmente não achamos justiça em exigir uma fé genuína de homens que não podem tê-la. A única perspectiva possível é desde a soberania do Criador.

O trecho final se encerra com uma referência à morte e ao julgamento que na mente dos judeus aconteceria logo após a morte.

Se alguém ouve as minhas palavras, e não lhes obedece, eu não o julgo. Pois não vim para julgar o mundo, mas para salvá-lo. Há um juiz para quem me rejeita e não aceita as minhas palavras; a própria palavra que proferi o condenará no último dia.” (v47-v48)

Costumamos pensar nesse “ultimo dia” como um evento distante no futuro. Deixe-me lhe mostrar o que os judeus (para quem foram escritas em primeiro lugar estas palavras) pensam sobre a morte e o julgamento usando uma referência ao Tahará ou a purificação do corpo do morto:

A tradição judaica reconhece a democracia da morte. Portanto, exige que todos os judeus sejam enterrados com o mesmo tipo de roupa. Ricos ou pobres, todos são iguais perante D’us, e o que determina sua recompensa não é aquilo que vestem, mas aquilo que são.

Há 1900 anos, Rabi Gamaliel instituiu essa prática para que os pobres não se envergonhassem e os ricos não rivalizassem entre si ao exibir roupas dispendiosas ao serem enterrados.

As roupas a serem vestidas devem ser apropriadas para alguém que em breve estará em julgamento perante D’us Todo Poderoso, o Mestre do Universo e Criador do homem. Portanto, devem ser simples, feitas à mão, perfeitamente limpas e brancas. Estas mortalhas simbolizam pureza, simplicidade e dignidade. Mortalhas não têm bolsos. Portanto, não podem levar riquezas materiais. Nem um pertence do homem, exceto sua alma, tem importância. 9

1Talvez um livro palatável para o leitor comum seja “O carrasco do amor” de Irvin D.Yalom. O autor mostra com uma linguajem simples diversos encontros (mistura de realidade e ficção) no setting psicológico nos quais os diversos protagonistas demostram sua angustia com a morte. Da introdução (p.13) escolhi a seguinte frase: “À medida que envelhecemos, aprendemos a tirar a morte da mente; desviamos a atenção do tema; nós a transformamos em algo positivo; a negamos com mitos confortadores; lutamos pela imortalidade por meio de obras imortais, lançando nossa semente no futuro por meio de nossos filhos ou abraçando um sistema religioso que ofereça perpetuação espiritual

2Já combinamos anteriormente chamar de Pecado com ‘P’ maiúscula àquele poder que permeia toda a criação desde a escolha de Adão e Eva e chamar de pecado com ‘p’ minuscula às decisões particulares contrarias à vontade divina seja por ação, omissão ou pensamento.

3Novamente Homem (com ‘H’ maiúscula) indica a raça, ao passo que um indivíduo o representaremos com ‘h’ minúscula.

4Os fariseus (que segundo Josefo, um historiador judeu e por sinal fariseu que viveu entre os anos 37 e 100, eram estimados em 6000 à época) eram mais bem quistos pela sociedade comum, pelo homem de a pé, do que os saduceus. Há, pelo menos, dois fariseus importantes que o leitor evangélico conhece bem: Gamaliel (Atos 5:34) e Paulo (Atos 22:3; Fil.3:5). O grande problema de Jesus (e João o Batista) com os fariseus, não era teológico e sim ético; mais especificamente, o divórcio existencial entre o discurso e a prática do discursado.

5Há um sábio desbalanço no jeito em que o autor arranja seus assuntos cronologicamente. Se o capítulo 1 fala da eternidade até o batismo de Jesus, do capítulo 1 até o 11 o relato abrange três anos da vida adulta de Jesus. Na metade do livro e até o final do mesmo, o tempo para em uma semana. Porém, do capítulo 13 até o 19 ele se concentra em uma única noite que é a que Jesus foi traído e morto. Então esta introdução em dois movimentos ao assunto morte é de extrema importância.

6http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2015/04/pesquisa-aponta-variacao-no-preco-dos-servicos-oferecidos-por-diaristas.html

7Mateus e Marcos vão dizer que é sobre a cabeça

8http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL78601-5603,00.html

9http://www.chabad.org.br/ciclodavida/Falecimento_luto/falecimento/taharah.html

O Evangelho do Reino

Amados, achei por bem escrever-vos, não com o intuito de combater algum ponto de vista ou mesmo me opor a alguma ideia, porém com a proposta de esclarecer meu ponto de vista e assim tentar contribuir para um diálogo consistente.

O caminho que algumas teologias têm trilhado na impulsão da cosmovisão iluminista resultou, não de forma casual, na construção de uma cristologia um tanto desfocada, ao que me parece, de uma consciência bíblica mais centrada. No afã de defender a pessoa e obra de Jesus diante dos ataques ateístas, sem, contudo, abrir mão do ferramental racionalista, criou-se uma imagem de um Cristo comparável aos grandes líderes mundiais. Com isso procurava-se exaltar a pessoa do Filho de Deus, mostrando-o como um líder exemplar e perfeito, e assim equiparando o cristianismo às “melhores” e “mais nobres religiões” do Planeta.

Jesus assume um lugar ao lado dos grandes mestres que a história já registrou. Sua missão, com isso torna-se, segundo os valores éticos mais importantes para a humanidade, absolutamente relevante. Os problemas sociais, que se espalham e descem amargos pela garganta, principalmente dos menos favorecidos, faz com que se levantem clamores dos mais justificados por justiça social, ética e dignidade pública.

Neste meio em que se proliferam as injustiças, qualquer líder que queira ser bem visto e ter relevância cultural deve, sem sombra de dúvidas, ser projetado como uma voz que ressoa contra as paredes da indiferença e do massacre social. Com um olhar nesta demanda ética e humanitária, num ambiente de escassez de escrúpulos, surge cada vez mais a importância de estabelecimento de ícones da sociedade que respondam às barbáries e mazelas da “polis”.

Qualquer líder que seja respeitado ou tenha impacto relevante no meio em que vive, precisa, segundo a própria norma social, trilhar o caminho da ética e da ação humanitária e, portanto, se interpor ao mecanismo maquiavélico em que a sociedade está mergulhada.

Por isso, líderes como Mahatma Gandhi, Madre Teresa de Calcutá, Martin Luther King entre outros são levantados como ícones e exemplos quase perfeitos daquilo que faz a diferença no mundo dos viventes. Seguir o exemplo deles ou ser colocado no páreo com eles é o que se exige como qualidades mínimas para quem seja candidato ao respeito e admiração mundial.

A partir desta cosmovisão, imbuída desta chama, a proposta de um Jesus humanitário, um líder que vem para transformar o meio social, reverter os processos políticos dementes e estabelecer um reino justo sobre a terra, é absolutamente tentadora. Fazer de Jesus um grande líder que constrói uma sociedade justa é mais do que tentador, pois o coloca na mesma via dos grandes ícones sociais e faz de muitos deles seus seguidores. Isso é quase tão perfeito que os próprios discípulos de Jesus adotaram prontamente esta visão. Clamores como “quando restaurarás o Reino a Israel?”, “no teu reino queremos estar em tua direita e esquerda”, mostram claramente que eles assim entenderam Jesus e esperaram que ele fizesse.

Não era pra menos, pois se hoje falamos em opressão social, qual não seria a mesma na época em que os romanos, desumanamente, exploravam e “sugavam até a última gota de sangue” de seus escravos – dentre eles, o povo de Israel?

Qual não seria a expectativa e a sede dos discípulos por justiça social, pelo estabelecimento de um reino justo, de uma política humanitária, de direitos iguais e de punição aos corruptos e corruptores? Nesta ânsia por harmonia social, qualquer líder que se prestasse teria que advogar as causas sociais. Tempos semelhantes aos nossos, guardadas as devidas proporções!

Nessa chave hermenêutica, os discípulos criaram uma imagem política de Jesus que ele jamais teve. Esperaram ansiosamente pela justiça e por um reino terreno justo que jamais veio. Quando começaram a perceber que Jesus iria morrer, não se conformaram. O final da vida terrena de Jesus mostra as desilusões dos discípulos e o sentimento de fracasso. Mal sabiam eles que ainda sofreriam por tantos anos nas mãos dos romanos, e que suas expectativas de justiça social jamais seriam satisfeitas.

Talvez, o que os discípulos não entendiam é que o problema humano nunca foi social. O problema humano é existencial. O social é apenas uma consequência do existencial.

Talvez seja aí que esteja a grande dificuldade com as teologias que apresentam um Cristo ao lado dos grandes ícones sociais. Propõem um evangelho das causas sociais, que busca igualdade, que cuida do pobre, que alcança o necessitado, que alimenta o faminto. Com isso fazem da proposta de Jesus a mesma que a dos grandes líderes sociais.

Assim não percebem que o ideal de Cristo jamais trilhou estes caminhos. É claro que existem inúmeros textos bíblicos que chamam o ser humano para uma justiça social. Mas esse não é, e nunca foi o foco. A advertência por uma ajuda humanitária é uma espetada no coração do homem pecador para mostrar-lhe seu principal problema – a impossibilidade de amar realmente o ser humano.

Quando Jesus diz ao jovem rico para vender tudo que tinha e dar aos pobres, parece-me mais uma tentativa de mostrar-lhe onde estava seu tesouro. Aliás Jesus nunca propôs uma revolução contra Roma, nunca instigou uma ação política diferente no senado e nunca deu esperanças aos discípulos de que se eles o seguissem, o mundo poderia ser melhor.

A proposta de Jesus não era social. A proposta de Jesus era existencial. O homem está longe de Deus. Isto significa – o homem está no inferno (existencial) e precisa de se aproximar de Deus, voltar a ter vida. Como resultado disso, ele se tornará alguém melhor para sua sociedade em todos os aspectos em que esteja interagindo com ela.

A diferença entre Jesus e os grandes líderes sociais é fundamental e crucial. Os ícones da sociedade propuseram sempre uma mudança social, Jesus propôs uma mudança existencial. Os líderes tentaram consertar a sociedade, Jesus se interpôs como o transformador pessoal. “É necessário nascer de movo” disse ele a um bom cidadão.

O alvo do evangelho não é transformar as propostas políticas, mas sim as pessoas, ainda que isso leve à transformação de políticas a partir de pessoas transformadas. Quando se prega um evangelho social, perde-se a essência do Evangelho. Pode-se ter uma igualdade social sem pessoas transformadas, mas não se pode ter pessoas transformadas que sejam indiferentes ao mundo social. Porém, começar pelo discurso social é começar pela prática moral e não pela transformação pessoal interior.

Podemos ser seres transformados e vivermos plenamente e totalmente num mundo absolutamente injusto e numa sociedade totalmente deturpada com uma política corrupta, e ainda assim o reino estará em nós. A mensagem de Jesus não falhou, ainda que nunca na história tenhamos presenciado uma igualdade e justiça social, pois o Evangelho de Jesus não teve essa meta. Se ele tivesse essa meta, hoje diríamos que falhou, pois nunca isso aconteceu.

Então quando tiramos o foco do Evangelho, que é libertação existencial das vidas, e o colocamos numa justiça social, invertemos o processo e deixamos o importante pelo secundário.

Jesus nunca foi um líder como o esperado pelo mundo social, pois sua busca era outra. Por isso talvez ele não foi amado como Madre Teresa de Calcutá, Mahatma Gandhi ou Matin Luther King. Embora alguns tenham morrido por seus ideais, Jesus não morreu por seus ideais. Jesus morreu para substituir o pecador na cruz, e assim dar-lhe vida (que não significa necessariamente justiça social, aliás muitos dos que tiveram a vida de Jesus jamais experimentaram a justiça social sobre si mesmos).

Que Evangelho acredito?

  1. Um Evangelho que muda o ser humano existencial e radicalmente. Como? Tirando-o das trevas e colocando-o na luz. Tirando-o do pecado e colocando-o no perdão. Mudando sua cosmovisão. Isso levará o ser humano a seu justo socialmente, entre outras coisas, mas o contrário não é verdadeiro.

  2. Um Evangelho que me mostre minha miséria existencial e meu afastamento de Deus e me dê esperanças de estar com Ele, apesar de quem sou.

  3. Um Evangelho que me capacite a viver abundantemente, mesmo que o meio social não seja aquilo que deveria ser.

  4. Um Evangelho que me insere no Reino, que me torna um servo de Cristo rumo à cruz. Isso não significa que vou mudar a sociedade, ou que vou conseguir expulsar os romanos da minha política, ou que vou conseguir acabar com as favelas do mundo, pois o mesmo jaz no maligno. Embora eu deva viver a diferença com o meu próximo, o Evangelho do reino veio para transformar o meu ser.

  5. Um Evangelho que condena a miséria social e a injustiça, mas numa proposta de mostrar o pecado humano e a falência do sistema, não de criar seguidores que possam reverter o processo social, embora isso possa chegar a ser atingido.

  6. Um Evangelho que multiplica o pão, mas que não faz disso sua meta. “Vocês vêm a mim por causa do pão” e dizendo isso não multiplicou mais. Pareceria um contrassenso, já que ele poderia acabar com a fome do mundo e assim se tornar um grande ícone humanitário.

  7. Um Evangelho que fale ao pobre e ao rico, que atinja o pobre oprimido e o rico que não oprime.

  8. Um Evangelho a ser pregado não a partir das misérias sociais, mas sim a partir da miséria humana existencial.

Assim Jesus não era de esquerda nem de direita, não propôs sistemas políticos ou econômicos. Essas lutas de direita e esquerda são meras convenções políticas. Jesus falou do homem perdido, mostrou o quanto este estava perdido e morreu por ele para que fosse encontrado. A partir daí, na consciência da falência humana e no resgate da humanidade, abre-se as portas para a ação social, porém nunca como um alvo supremo a ser perseguido, mas uma consequência a ser vivenciada, pois o problema humano é muito acima do nível social.

Faz-se assim necessário alguns esclarecimentos pontuais.

  1. No que se constitui a libertação apregoada no Evangelho?

A libertação não se constitui em alívio do ponto de vista da opressão social. Os discípulos foram libertos por Jesus e continuaram a vida toda debaixo da opressão social. O Evangelho é muito mais do que isso. Se assim o fosse, nações em que a opressão social é minimizada (até mesmo debaixo de uma confissão ateísta) não precisariam do Evangelho.

A libertação proposta por Jesus não enfoca questões sociais, econômicas ou de qualquer outra natureza que não seja o resgate de um ser das trevas. A libertação social é um ideal de muitos líderes e instituições, que tiveram mais ou menos êxito no processo social, sem nem sequer se utilizar do Evangelho.

Jesus liberta o homem de seu pecado existencial que é o único que o separa de Deus. O homem não será condenado por suas injustiças sociais, pois se assim o fosse, aqueles que praticam a justiça sem o emblema da cruz, seriam absolvidos sem a presença de Jesus. O homem será condenado por seu Pecado, que o separa de Deus.

Enfocar a libertação do ponto de vista social é reduzir o evangelho a uma ideologia humanitária e nivelar Jesus aos ícones de projeção social.

  1. Quem é Jesus?

Parece muito claro que Jesus é incomparável. Ele supera infinitamente qualquer líder social ou agente humanitário de importância inquestionável.

Não precisamos de Jesus para realizar um trabalho social significativo – já temos Mahatma Gandhi, entre outros.

Não precisamos de Jesus para estabelecer uma sociedade mais justa e igualitária – grandes nações do primeiro mundo, como a Suécia ou Dinamarca estão anos-luz na constituição de suas sociedades, muitas vezes até sob a bandeira do ateísmo.

Não precisamos de Jesus para estender a mão ao faminto, à viúva e ao pobre – agências humanitárias e grandes líderes sociais já se mostraram eficazes nisso sem sequer estar debaixo da cruz.

Não precisamos de Jesus para mostrar a justiça e a ética que faz a diferença no meio social – muitos já agiram assim sem sequer serem cristãos. Corpos são queimados em favor dos pobres sem sequer o resquício do verdadeiro amor.

Não precisamos de Jesus para praticar o desprendimento material – Sidarta Gautama que o diga.

Jesus não é definitivamente um “repartidor de heranças”, ou um “provedor de pão” – essa era a expectativa dos judeus, mas ele não se mostrou seduzido por estas propostas. “O pão não foi Moisés que vos deu, o pão sou eu”, revelou Jesus. Quem busca no Evangelho o pão que mata a fome, não pode entender o que é comer a carne do Filho de Deus.

Não precisamos de Jesus para exemplos de qualquer natureza ética ou altruísta – grandes ícones da história se mostraram impecáveis neste aspecto sem nunca abraçarem a cruz.

Mas, definitivamente tem algo fundamental e essencial que só Jesus pode fazer, que é uma característica exclusiva dele. Só Jesus pode perdoar a humanidade em relação ao seu pecado existencial e assim ligá-la novamente a Deus. Isso nenhum líder ou ícone mundial poderia fazer, pois “todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus”.

Essa é a verdadeira mensagem do Evangelho. O homem estava separado de Deus em seu pecado e Jesus veio ligá-lo novamente ao Pai. Resgatou-o de sua condição de pecado e o regenerou, fazendo-o uma nova criação.

  1. Qual é a tarefa da Igreja?

A tarefa da Igreja não é prioritariamente social. Não somos uma instituição filantrópica de ajuda humanitária. Existem grandes organizações que assim se constituem e fazem um excelente trabalho social sem nunca se constituírem como igreja. Não precisamos da igreja para fazer a ação social. Ela já existia muito antes da igreja.

A igreja não se reúne para resolver os problemas sociais prioritariamente. Quando olhamos para a igreja primitiva, percebemos que os diáconos só foram instituídos depois que o problema se apresentou. A igreja não se reuniu para resolver seus problemas sociais, embora a ajuda entre os irmãos se tornou uma realidade. Mas não foi essa a mola propulsora que os levou a estar juntos. Eles estavam juntos porque se tornaram adoradores. Não somos chamados principalmente para atender projetos sociais, mas sim para sermos adoradores.

Então a igreja tem como tarefa principal adorar a Deus, conhecê-lo e anunciar a libertação do homem do seu Pecado por Jesus. As tarefas sociais, as denúncias ao desequilíbrio econômico, as buscas pela preservação ambiental, o respeito à criação divina, a defesa dos animais, as grandes descobertas científicas que ajudam a preservar o planeta e os homens, são também realizações dos salvos, mas podem muito bem existir sem eles, como a própria história comprova.

A carta aos Gálatas, no capítulo 5, mostra que a libertação tem muito mais a ver com a consciência da falência existencial da humanidade do que qualquer outra coisa. Neste aspecto as “obras da carne” condenadas têm muito mais a ver com as questões internas de uma realidade existencial corrompida.

Sendo assim, fica aqui minha denúncia contra o rebaixamento do Evangelho a uma proposta de ação social, reduzindo assim Jesus a um ícone de exemplo humanitário e no páreo com os grandes exemplos de revolução social do planeta. Ele é muito mais do que isso e seu evangelho vai muito além dessas causas.

Que Deus seja conosco.

Everson Spolaor