Lendo alguns biógrafos que relatam o período da Reforma, começamos dizendo que somos “frutos” (espiritual/intelectual) daquilo que denominamos REFORMA PROTESTANTE. Abraçamos suas ideias (não todas) e as entendemos que essas se deram como um marco na história da igreja. Marco tal que desembocou em inúmeras micro reformas até os dias de hoje.
A Reforma Protestante deve seu legado histórico à iniciativa de Martin Lutero e suas noventa e cinco teses estacadas na porta de sua capela no dia 31 de outubro de 1517 – início de um protesto contra as indulgências que prometiam ao povo uma garantia de pecados perdoados antes mesmo que fossem cometidos. Praticamente um comércio salvífico não escriturístico; um meio ilegal para arrecadação de dinheiro usando um discurso de ameaças infernais e cravando sobre o povo um regime de obras, tudo pelas mãos de ferro da igreja imperante.
Mas Lutero ousou ser um mensageiro de Cristo. Sua vida como um todo e seus estudos o levaram profundamente a querer entender o Novo Testamento. É a partir de sua trajetória que hoje temos consciência dos pilares da reforma: Sola Scriptura; Solus Christus; Sola Gratia; Sola Fide; Soli Deo Gloria. Essas numa tentativa de retornar a Bíblia como fonte da revelação divina e prática dos homens.
Não quero aqui biografar acontecimentos passados, quero apenas elencar rapidamente o que esses pilares deveriam ser para nós cristãos pós-modernos, nós que sobrevivemos às mudanças, perspectivas e paradigmas do séc. XX e nos erguemos por meio do engajado evangelicalismo da década de 70. Minha pergunta é: Como devemos, em nosso atual contexto, refletir esses pontos enaltecidos pela Reforma? Respondo desde já que nossa resposta deve ser bíblica. Quero aqui elencar apenas três desses pilares.
Sola Scriptura – Quem já leu sobre o movimento iluminista e pós-iluminista sabe que um grande embate se formou em torno dos dogmas (autoridade) e doutrinas da igreja romana e reformada. Sabe-se que a busca das tradições humanas sobrepujou as Escrituras enquanto palavra de Deus escrita aos homens.
Quase dois séculos antes, Lutero se levantou arguindo contra a igreja católica romana no princípio contrário, ou seja, em outras palavras, Lutero queria uma verificação nas Escrituras daquilo que a Igreja estava realizando e prometendo. Ele exigiu uma volta as Escrituras Sagradas. Enquanto o séc. XX, fonte de todo desaguar dos séculos anteriores, exigiu o descrédito da Bíblia em prol das ciências naturais, o período da Reforma elevou-a ao topo de todo conhecimento e razão para o ser humano.
Portanto, quando falamos de Sola Scriptura, falamos da volta ao texto e seu contexto macro, o que pressupõe a fuga de todas as abstrações do texto real. Nada nela, nenhuma sílaba deve ser alterada para especulações e por tradições dos homens (aqui admito que todos nós vamos ao texto debaixo de tradições e pré-conceitos; o importante é sempre voltarmos ao texto antes de validarmos nossa razão e abstração) . Tudo nela deve ser levado em consideração; todos os etas (e, gr.), ou seja, cada partícula conectiva entre um versículo e outro, cada argumento e contra argumento, cada til de toda Escritura deve ser levado a sério. O apelo ao todo das Escrituras, tudo o que a compõe e seu contexto, devem ter primazia quando houver tradução e interpretação.
Sola Scriptura nos leva, consequentemente, ao Solus Christus.
Solus Christus – O evangelho, enquanto mensagem de boas notícias, vem nos revelar que somente Jesus é o Senhor universal. Essa é a verdadeira intenção desse slogan. A Reforma trouxe sobre esse ponto a denuncia aos mediadores que estavam sendo postos, potencialmente, no nível de Jesus Cristo. Um exemplo: Os santos ou os ossos dos santos eram venerados e, também, um meio de obter indulgências. Para esse contexto mercadejante, Lutero combateu acertadamente utilizando princípios do corpus paulino. Isso não quer dizer (meu ponto de vista) que tenha interpretado corretamente os textos paulinos que utilizou.
Mas, Solus Christus tem a nos dizer que o Jesus de Nazaré se tornou o Messias de Deus e proporcionou a Ele toda glória que a raça humana não lhe deu por direito. Isso quer dizer que esse slogan fala mais sobre uma verdade a respeito do Messias de Deus do que uma verdade sobre você e eu e nossa salvação. Fala, num contexto político, sobre um Rei que é universalmente superior a qualquer rei ou césares posto no trono e, indo além, Ele, Jesus Cristo, detém toda autoridade e poder em relação às autoridades humanas. Para finalizar essa reivindicação, devemos lembrar que ela foi utilizada no primeiro século como o evangelho que era superior ao do imperador romano da época. Isso tem haver com Jesus Kyrios, o Senhor do mundo, maior que todo reino ou império e que está acima de todos.
Outro aspecto do Solus Christus é o ponto em que Deus condenou, na carne de Jesus, todo pecado da humanidade que ofusca sua glória na criação, iniciando por meio de Sua ressurreição uma nova criação pautada no Christus Victor (Cristo vitorioso) – mais utilizado por Paulo do que o Cristo da expiação. Assim, nossa esperança vem da vitória de Jesus Cristo sobre o pecado e a morte.
Solus Christus nos leva, prioritariamente, ao Soli Deo Gloria.
Soli Deo Gloria – A verdade dessa afirmação é que somente ao Deus YHWH seja toda glória pelos séculos dos séculos, amém. Nada mais pode produzir glória ao Deus de toda criação do que uma humanidade refletindo Sua imagem e semelhança. Por meio de Jesus Cristo (Solus Christus), a humanidade agora pode ser redimida e será no fim das contas. Podemos, com toda certeza, afirmar que Deus é glorificado quando, por meio de Cristo, seu povo lhe rende glória dentre as nações.
A graça e o poder da mensagem do evangelho (Sola Gratia), aliada a fé (Sola Fide) mediante o Espírito Santo (alguns teólogos modernos trabalham o Sola Gratia em conjunto com Solo Spiritu, realidade na literatura paulina), produz uma nova humanidade, àquela desejada desde o gêneses; uma nova humanidade colocada sob um novo pacto/aliança, onde o pecado e o cosmos estão debaixo, uma vez por todas, da autoridade de Deus e seu Cristo. Uma vez que as alianças judaicas culminaram no novo pacto, na pessoa de Jesus, Deus é glorificado por Sua justiça que completa o plano de salvação lidando com o mal no mundo e elevando a humanidade caída a uma criação exaltada.
Desse modo, nessa breve exposição que fizemos acima, retomamos o Sola Scriptura para confessarmos que somente ela pode nos avivar, após a conversão por meio da pregação do evangelho, numa caminhada onde abraçamos as histórias e experiências de fé daquele tempo, povo, e convergimos ao nosso tempo – como fez Lutero – num processo de adaptação e direcionamento das verdades reveladas.
Reavemos o Solus Christus – contido em toda a Escritura – para trazer à memória aquilo que nos traz esperança. Que a história de Jesus de Nazaré, aquele que foi crucificado e ressuscitado dentre os mortos pelo mesmo Deus de Israel que o vindicou como Messias; o Senhor de todas as coisas o qual todo joelho se dobrará e toda língua confessará (judeus e gentios) que Ele é Senhor, que essa história seja para nós conversão (experiência de fé) e vocação (encarnação das obras/sofrimento de Cristo).
Isso porque, produzirá glória a Deus Pai – Soli Deo Gloria – como o grito de desespero de toda a criação que aguarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus; assim, seremos nesta geração os personagens dessa maravilhosa trama onde Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo já venceram e trouxeram esse vitória para o centro da nossa história.