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Arterioscleroses Espiritual

Comecemos com um exemplo: o estilo musical e certa forma de arterioscleroses “espiritual” que todo grupo religioso vai desenvolvendo. Mesmo que a peça tenha sido elaborada no embalo de uma cerveja e sobre melodia comum em bordéis (como o caso de Castelo Forte) existe hoje uma certa sacralidade sobre esse hino específico, mas outro que possa vir a ser criado de forma análoga será automaticamente tido como mundano ou secular. Então, sob minha ótica, todo movimento religioso tende a uma rigidez mórbida no que lhe é mais essencial: sua forma de comunicação com a sociedade na qual a comunidade está inserida.

A preocupação última pode ser expressa e elaborada sob qualquer forma de manifestação: linguagem, marte, cultura, música, filosofia, desde que comunique algo do mistério da vida e do encontro com o divino. Se houvesse uma única forma de linguagem divina e inalterada “caída do céu”, deveria ser essa a forma adotada. E não é para isso que apelam os movimentos de resgate cultural de músicas em estilo judaico?

Necessariamente, por uma questão de simples comunicação com os seres humanos, toda linguagem religiosa é humana, que nasce da experiência histórica e cultural específica. Com isso, a linguagem usada para as “Vacas de Basã” precisa de ser interpretada e “traduzida” pelo pregador para obter o fim desejado: comunicação da mensagem. O mesmo acontece com a teologia ou os estilos musicais, ou os conteúdos. Precisam de uma tradução e não de manter uma tradição muitas vezes transplantada, e nada comunica – de forma direta – na cultura alvo.

A linguagem sagrada é simbólica, poética, expressiva, e serve para apontar para realidades que vão além da mesma. (Apontam para “o Transcendente” ou “o completamente outro”. Ou resgatando alguma coisa kantiana: extrapolam o imanente)

A citação, então, de Paul Tillich “Não existe linguagem sagrada caída de um céu sobrenatural para ser encerrada nas páginas de um livro. O que existe é a linguagem humana, baseada em nosso encontro com a realidade, em evolução ao longo do tempo, usada para as necessidades cotidianas, para expressão e comunicação, literatura e poesia, bem como para mostrar a preocupação suprema” reflete um ponto central de sua teologia da cultura: a linguagem religiosa não é mágica ou vinda do céu em estado puro. Mas é uma linguagem humana, moldada historicamente e usada para expressar aquilo que ele chama de “preocupação última” ou “preocupação suprema”. Isto é: o sentido mais profundo da existência.

Seguindo essa linha: a mensagem precisa “encarnar”. E isso não se faz com linguagem e problematizações de há seis séculos.

Intolerância religiosa

Escrevo desde um ponto de vista que não é neutro, obviamente. Sou cristão, evangélico e batista. Mas talvez seja essa formação a que melhor me qualifica para almejar tolerância religiosa, pois somos – em certo sentido – frutos da mesma na Inglaterra de 1689.

Não é à toa que a separação igreja-estado é um dos nossos pilares ao ponto que se pode dizer que alguém que se intitula batista não é tal se não luta por esse pilar. A tolerância religiosa está no âmago do estado laico e vivemos, pelo menos nominalmente, num estado laico.

Não que este estado tenha sido formado como laico. A laicidade no Brasil é uma construção recente e justamente por isso desperta em alguns certos temores e anseios por um estado teocrático ou coisa que se lhe assemelhe, mas de preferência uma teocracia cristã ou coisa assim.

Como o mal que não quero para mim não desejo para os outros, me conto entre aqueles que desprezam qualquer tentativa de teocracia. Mesmo as assim chamadas cristãs. Ao meu ver, uma teocracia não passa de uma forma de ditadura e tenho aversão a qualquer forma de ditadura, seja esta de esquerda quanto de direita, ou religiosa.

Então como lidar com isso? Qual a contribuição que como cristãos plenamente identificados podemos dar à tolerância religiosa e por consequência ao estado laico?

Como combater a intolerância religiosa?

CAPÍTULO I Dos Crimes Contra o Sentimento Religioso
Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo

Art. 208 – Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:
Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa.
Parágrafo único – Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.

Artigo 208 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940

Mesmo sendo a religião um assunto de cunho íntimo, a realidade é que ela acaba se manifestando no espaço comum. Espaço este que muitas vezes lhe queremos negar ao outro, ao diferentes, ao diverso quando nos parece tremendamente essencial a nós mesmos e nossos similares. Então para combater estereótipos e preconceitos uma abordagem abrangente e multifacetada deve ser adotada.

Me limitarei então a pontoar algumas ideias que podem servir para incentivar algum diálogo no seu ambiente. Isto é, em casa, na igreja, no ônibus. Enfim, não quero que concorde comigo, quero que pense.

  1. É essencial aumentar a conscientização e a educação sobre a diversidade religiosa nas escolas e na sociedade em geral. Se não gostamos que as religiões de matriz africana sejam ensinadas nas escolas, então que não se ensine cristianismo também.
  2. É fundamental fortalecer a legislação que combate a intolerância religiosa, protegendo os direitos das vítimas e punindo os agressores. Além disso, para promover o respeito e a compreensão mútua, é fundamental investir em programas de sensibilização e diálogo inter-religioso. Isso nada tem a ver com ecumenismo, mas sim com o fato de compartilharmos o mesmo espaço civil/social.
  3. O outro aspecto importante é o envolvimento das lideranças religiosas, das organizações da sociedade civil e dos meios de comunicação na promoção da tolerância e no combate aos discursos de ódio. Sem os líderes engajados, os liderados irão naturalmente para o lado do ódio. Ou não é isso que entendemos quando falamos de “depravação total do Homem”?
  4. Por último, mas não menos importante, o que ajuda a construir uma sociedade mais tolerante e inclusiva é encorajar a população a participar da defesa da liberdade religiosa e na denúncia de incidentes de intolerância mesmo que no seja “de nosso parquinho”

Sociologia da religião: virtudes e mazelas

E agora, Garibaldi?

A sociologia da religião desempenha um papel fundamental na compreensão da presença e do papel das religiões na sociedade contemporânea. Ao adotar uma perspectiva sociológica, é possível analisar as religiões além dos limites mencionados, oferecendo uma visão mais abrangente e contextualizada.

Em primeiro lugar, a sociologia permite examinar as religiões como instituições sociais que desempenham funções específicas na sociedade. Ela nos ajuda a entender como as religiões se organizam, mantêm valores e crenças, estabelecem relações com outras instituições e influenciam as estruturas sociais.

Além disso, a sociologia proporciona percepções sobre as mudanças na religiosidade contemporânea. Por meio do estudo sociológico, podemos compreender as transformações nas práticas religiosas, nos comportamentos dos fiéis e nas dinâmicas das comunidades religiosas. Isso nos permite refletir sobre as razões por trás dessas mudanças, como a secularização, a diversificação religiosa, o individualismo espiritual e as novas formas de engajamento religioso.

Entendo que a sociologia da religião desmantela um pouco o misticismo que às vezes se aplica à igreja. Obvio que alguns acham isso como sacrílego, mas me parece que acham isso porque lhes convêm o manto de sacramentalidade.

Contudo, tenho vivenciado recentemente, e da mão de colegas amigos, uma releitura social na que, visando um suposto “aggiornamento” do evangelho, destituem este último da sua capacidade de transformar o ser humano. Logo, as ferramentas fornecidas pela sociologia da religião deveriam ser usadas como tais e não como armas nem como boias salva-vidas emergenciais.

Em questões pessoais, ela me serve para entender o próximo quanto ser religioso. Os anseios e buscas são – em última análise – da raça humana (ou das raças humanas a depender do gosto do autor). E é bem humano substituir essa busca última por buscas preliminares.

É ali (na superficialidade da substituição inconsciente do prioritário pelo supérfluo, do último pelo preliminar) que faremos bem em estudar para entender e aproximar; entender o humano na sua ânsia de ser e aproximar o Deus-homem na jornada da nova criação (Rom. 5:12 ss) sem tirar nem pôr no evangelho, que continua sendo o “poder” (e não a energia) de Deus para salvação daquele que crê.

A herança esquecida

Era uma vez um povo que vivia sua pequena felicidade. Não se sentia infeliz nem muito menos. Tinha achado seu ponto de equilíbrio e – mesmo que ocasionalmente os membros desse povo falassem uns ao outro da triste situação dos que não pertenciam a este povo – pouco e nada faziam ao respeito. Era mais uma formalidade que ajudava na aceitação por parte dos outros do mesmo povo, do que realmente uma carga.

Tudo nesse povo era circular. Nele nada era quadrado, triangular, hexagonal, ou de qualquer outra forma poligonal. Tudo era simplesmente um círculo. Alguns maiores, outros menores, mas sempre círculos. Haviam por vezes círculos tão enormes que, observados de perto e por pouco tempo, pareciam uma reta.

Para se ter uma ideia, os planos e projetos eram circulares. Eles começavam e acabavam sempre no mesmo ponto que tinham começado (ou acabado antes, ninguém mais sabia). De esta forma, se podia ter a ideia de movimento sem nunca ao menos passar por lugares ou situações novas. Tudo quanto se observava já era conhecido por alguém de alguma forma e com isso os mais novos não tinham necessidade de sentirem medo ou aflição já que alguém da geração anterior (ou anterior à anterior, ninguém mais sabia) já tinha passado por lá.

Haviam ao menos quatro círculos básicos na vida deste povo: o íntimo, o particular, o simulado e o externo irreal. No círculo íntimo ninguém entrava a não ser a própria pessoa. Neste espaço, as ideias e sonhos se revolviam de forma mais ou menos desorganizada mas sem nunca ao menos poderem sair para os círculos mais externos. Como muito, alguma ideia que já tinha sido ouvida nos círculos mais externos era devolvida ao círculo particular, com muita dificuldade ao simulado (sempre e quando a aceitação fosse de alguma forma garantida) mas, com certeza, nunca, mas nunca mesmo, sairiam ao círculo externo irreal.

Por conta dos círculos serem concêntricos o equilíbrio do esquema todo dependia em grande medida do ponto mais básico assim como da velocidade de giro dos círculos mais externos, mais ou menos como o rodopiar de um pião. Enquanto tudo continuasse a girar com a suficiente velocidade o pino continuaria como ponto de apoio e enquanto o ponto de apoio continuasse lá, tudo iria a continuar girando e a tão bem conhecida e estática felicidade estaria garantida.

A herança esquecida – Júlio

Anteriormente…

Júlio não era de todo circular. Suas ideias iam e vinham. Algumas eram ideias estranhas. Bom, ao menos não eram circulares. Para falar a verdade, Júlio era mesmo meio amassado. Ele não girava muito bem. Até o círculo particular se incomodava com o jeito em que ele girava. No círculo simulado ele não se encaixava e vira e mexe falava de coisas que só podiam ter vindo do círculo externo irreal. Para que o leitor me entenda melhor, mais do que girar em círculos, o Júlio rodopiava alternando a volúpia rodo ativa com certo degringolamento na própria rota: Um louco solto.

Uma das coisas mais perigosas que Júlio falava era que o último círculo estava mal etiquetado. Ele dizia que o último círculo não podia levar nunca a palavra irreal na etiqueta. Apenas círculo externo seria suficiente. Apenas pensar nesta ideia fazia os circulões (assim eram chamados os membros deste povo), como dizia, apenas pensar nesta ideia fazia os circulões mais velhos estremecerem na base. Como o leitor pode imaginar, uma estremecida neste povo não era o mais desejável já que um círculo poderia bater no outro, fazendo-o estremecer-se e podendo desencadear uma reação em cadeia.

Da última vez que isso tinha acontecido o desmoronamento, o tombo, a sensação de insegurança tinham invadido o povo ao ponto que – não podendo mais rejeitar as ideias – tiveram que se desfazer do circulão ousado. Como era que se chamava? Era um nome com ésse. Sofos? Saliente? Solidão? Salvador? É isso ai! O circulão aloprado chamava Salvador.

Salvador tinha a mania de mostrar que círculos, por mais enormes e velhos que fossem, nunca seriam linhas retas. Ele insistia que haviam outras formas igualmente válidas de construir um povo; triângulos, quadrados, pentágonos, etc. O problema estava com o caminho. Segundo Salvador, o essencial era reconhecer que o andar não podia estar limitado à reprodução da própria forma do povo. Ou seja, ele dizia que haviam outros povos no círculo externo irreal que alias, ele -que nem Júlio- insistia em tirar a palavra irreal da etiqueta. Estes povos tinham as formas mais variadas mas todas elas, assim como os circulões, insistiam em que o caminho a ser seguido tinha a própria forma do membro individual do povo apenas mudando em tamanho e – por consequência – em historicidade. Quando mais velho e maior, tanto melhor e seguro o caminho a ser seguido; isso contanto a forma fosse idêntica à do povo que o transitasse.

Salvador insistia em que a forma que o caminho assumia e o tempo transitado não eram um atestado de que o próprio caminho era certo. Por outro lado, estas coisas não tinham como competir com a relevância do destino a ser atingido nem muito menos com a aventura das descobertas que o próprio caminho poderia vir a oferecer.

O orgulho com que os circulões se gabavam de quão seguro era seu próprio caminho, quão elegante e suave era se comparado ao dos triangulões ou dos quadradões via-se gravemente ameaçado pelo sorriso meigo e simples de Salvador que – na sua aparente loucura – conseguia enxergar vida além do círculo externo irreal.

As pessoas que o ouviam falar, o faziam por meio do círculo simulado. Este era meio como que uma última linha de defesa para a pseudo realidade particular e a quase realidade interior. No círculo simulado, a realidade era antagônica à aceitação. As ideias eram expostas sempre e quando fossem circulares. Maiores, menores; com traços largos ou finos; mas circulares. Os mais ousados traziam ideias ovais que não passavam de círculos deformados. Passado o choque inicial, a ideia passava a ser considerada pois não se tratava de nada mais do que um círculo sob forte pressão ou qualquer eufemismo do tipo.

Salvador vinha e falava de triângulos, quadrados, hexágonos e outros polígonos como se eles também fossem formas válidas de vida. Mostrava aos circulões que tanto fossem triangulões, quadradões, ou circulões, o importante mesmo era escolher um outro caminho que não era a mesmice de sempre. Porém a coisa realmente pegava quando ele abandonava os polígonos e passava a falar dos poliedros. Onde já se viu ter três dimensões? Volume? É claro que ele fazia isso não apenas para chacoalhar as ideias dentro do círculo íntimo de cada circulão o que já de por si constituiria um objetivo bastante ousado. O propósito dele era mostrar que o importante era o caminho e não a forma de quem o transita.

Júlio se sentia de certa forma conectado com Salvador. Não que fossem contemporâneos. Nada disso. Havia uns dois mil anos de separação histórica. A coisa era mais profunda.
Júlio tinha nascido como qualquer outro circulão; ou seja: dois circulões complementares se uniam, mitigando as diferenças do círculo simulado e passando a constituir um novo círculo particular, abandonando – na medida do possível – os respectivos círculos particulares ao que tinham pertencido para formar um outro circulo melhor e maior na medida do possível ou pelo menos aparentar que assim era.

Bem, particularidades à parte, Júlio foi crescendo bastante bem. Aprendeu as habilidades de simular o pensamento, esconder a verdade, fugir das ideias que não fossem circulares, enfim, tudo aquilo que os mais antigos achavam essencial para o pequeno Júlio chegar com sucesso a participar do círculo simulado e evitar o mais possível o contato com o círculo externo irreal. A não ser, claro, aquelas vezes em que a necessidade o empurrasse para obter algum recurso com os triangulões ou os quadradões vizinhos.

Respostas a inquietações científicas e religiosas

A religião tem sido atacada de diversas maneiras e por inúmeras frentes no implacável
combate que impregna a história humana. Munidos de hermenêuticas próprias construídas a
partir de postulados científicos e empunhando a bandeira da modernidade, muitos céticos se
lançam vorazmente na tentativa de destroçar qualquer indício de crença religiosa. Espadas são
desembainhadas em lutas quixotescas que se embrenham por batalhas inexistentes
alimentadas por suas próprias ilusões bélicas.

O que tais tentativas parecem não se dar conta é que a ciência e a religião jamais foram
inimigas e jamais estiveram em trincheiras opostas. Na verdade, muito do que se diz da
religião tem sua razão de existir. A interpretação que se dá aos processos, porém, parece
carecer de legitimidade.

A religião, assim como a política e a ciência, tem sido um instrumento de opressões, abusos e
malignidades dos mais variados tipos. Vitimas de interesses escusos e manipuladas por
consciências inescrupulosas, tanto a religião como a política ou até mesmo a ciência se
constituem como instrumentos nas mãos de uma sociedade maligna. Como já disse Ulysses
Guimarães: “O poder não corrompe o homem; é o homem que corrompe o poder. O homem é
o grande poluidor, da natureza, do próprio homem, do poder.” Parafraseando poderíamos
afirmar que a ciência (que foi utilizada para o desenvolvimento de armas de destruição em
massa, como a bomba atômica, as armas químicas etc), a política (que em nossos dias parece
ter se tornado sinônimo de corrupção) ou até mesmo a religião (que tem sido um meio de
manipulação das massas), não corrompem o homem, mas sim é o homem quem corrompe a
ciência, a política e a religião.

O ser humano é o principal corruptor e manipulador dos meios que dispõe para dar vazão a
suas cobiças, seus intentos, suas demências e suas volúpias. Se as classes dominantes se
utilizam da religião para seus próprios intentos malignos, não deixam de lado a política e a
ciência.

O período chamado “Idade das Trevas”, foi, sem dúvida um tempo de obscurecimento da
razão e teve como seu principal protagonista a religião. Esta, instrumentalizada pelas classes
dominantes, se utilizou da boa fé do povo para chegar a seus propósitos maculados.
Com a derrocada das “Trevas”, a partir do surgimento do Iluminismo, instala-se uma nova
esperança para a humanidade. Se o obscurantismo de tempos passados tinha cedido espaço
ao raiar de novos horizontes, agora acreditava-se que finalmente a humanidade seria elevada
às esferas da justiça, igualdade e fraternidade. A liberdade científica surgia com toda a
imponência e as promessas de melhorias da vida social e humanitária eram cada vez mais
vociferadas por seus proponentes.

A história nos mostra que no século XX, auge da emancipação da mente humana das rédeas
funestas da religião, o homem, feliz em suas descobertas, foi encontrado ébrio e cambaleante
em suas próprias vaidades e soberania. Como todos sabem, a racionalidade humana, a
iluminação do intelecto e os avanços científicos não puderam impedir as duas grandes guerras
mundiais do século XX. Milhões foram dizimados, manchando as páginas da história como
nenhum outro período anterior o fez. O florescimento da ciência, que muito ajudou a
humanidade em questões de saúde e bem estar social, também proporcionou oportunidade
para a concretização das destruições em massa e das barbáries que até hoje arrepiam até os
menos sensíveis. Além disso, o boom da revolução industrial, que prometia cada vez mais
condições dignas para a vida humana, não impediu o processo de massacre nas fábricas e a
mecanização humana. Charles Chaplin retrata brilhantemente este fenômeno no filme:
“Tempos Modernos”. O homem foi substituído pelas máquinas e o processo de
industrialização relegou às “sarjetas” da vida o operário desvalorizado.

A religião, já fora dos holofotes e da mira dos seus algozes, não pôde ser culpada por
tamanhas opressões e mostrou não se constituir o gatilho que promovia as misérias sociais. Se
os séculos XIX e XX foram o período do coroamento da razão e do destronamento da
divindade, foram também os séculos da destruição em massa e da disseminação da esclerose
social. A religião não era mais a mão que regia os destinos da humanidade, porém a sociedade
continuava amargar suas misérias de forma cruel, violenta e numa progressão exponencial. Se
por um lado a mão do homem moderno apagava as últimas centelhas das fogueiras
inquisitoriais; por outro a mesma mão colhia ali as brasas incandescentes para acender os
fornos crematórios de Auschwitz.

A religião não é inimiga da ciência, pois seu escopo é outro. A Religião objetiva o “sagrado”; a
ciência o profano (comum). O sagrado é o totalmente outro, o transcendente, aquele que foge
à apreensão exaustiva da mente humana. Enquanto a ciência se ocupa do que pode ser
experimentado, observado, estudado e compreendido, a religião permeia o eterno, fala do
inefável, se lança no numinoso, se prostra diante do intocável. A ciência trilha um caminho, a
religião outro. São paralelos, embora às vezes seus olhares se entrecruzem, logo se
abandonam novamente para perscrutar suas próprias sendas.

No âmbito social, a religião consolida os laços familiares, reúne os pares em volta da mesa,
incentiva a solidariedade, a amabilidade, o atendimento aos carentes e necessitados.
Mahatma Gandhi e Madre Teresa de Calcutá são alguns exemplos da religião em ação, lutando
pelas causas sociais, se doando em favor dos menos favorecidos. Abraham Heschel, destacado
líder religioso, posicionou o sentimento religioso ao lado das questões sociais e humanitárias
caminhando lado a lado com Martin Luther King. A eugenia que se apropriou do ferramental
científico e no século XX foi o dínamo para uma ideologia demente de superioridade racial, não
foi suficiente para apagar a chama da luta pela igualdade e liberdade que moveu o coração de
um religioso como Heschel pelas ruas do Alabama.

O papel da religião não é o de desenhar um mundo ilusório para entorpecer a mente do fiel,
mas sim carregar de esperanças um coração que se amarga constantemente pelo desencanto
do mundo moderno. O iluminismo tentou apagar do coração humano a luz do encanto pela
vida. Como disse Christopher Nash (Myth and Modern Literature) “O que é chamado de
Iluminismo, foi, na realidade o escurecimento, porque pretendia a extinção da natural,
primordial mítica luz interior do homem.” Enquanto a modernidade encarcerava o ser humano
na aridez da luta incansável pelo temporal e lançava mais uma vez a sociedade na
desesperança de um mundo bélico que a razão não foi suficiente para contornar, os suspiros
nostálgicos de um coração outrora iluminado por um porvir glorioso que modificava os
caminhos do presente e os preenchia com alegria e colorido, eram novamente sentidos em
meio ao deserto.

Se por um lado a ciência presenteia o homem com o progresso, o desenvolvimento, os
avanços no campo da saúde; por outro pode ser um instrumento que furta-lhe a vida quando o
impede de dar respostas aos anseios mais interiores de suas buscas existenciais e de sentido.
Somos a sociedade do desencanto, da perda de valores, da violência, da falta de respostas, do
esfacelamento das relações, da plasticidade dos encontros, dos amores fluídos (Zygmunt
Bauman). Se a religião foi considerada o ópio do povo, a ciência produziu seus próprios ópios
para substituir o vazio da existência humana. Cresce assustadoramente o número de
alucinógenos no cotidiano, em uma sociedade cada vez mais “iluminada” pelos cachimbos da
desilusão e pelas fagulhas das tragédias.

A segurança dos conhecimentos científicos é questionada no desenrolar da história da própria
ciência. Apesar de trazer convicções importantes para a construção social, as descobertas de
cada época são, muitas vezes, antagônicas a descobertas de períodos anteriores. Exemplos
deste fenômeno são claros e elucidativos. Até 1990 os cientistas criam que os dinossauros
tinham sido extintos por um vulcão, a partir daí se começou a propagar ideias de que um
asteroide teria sido a causa de tal catástrofe. Até 2014 a ciência acreditava que o homem de
Neandertal era inferior intelectualmente ao Homo Sapiens sendo esta a causa do seu
desaparecimento. Já em 2014 descobertas arqueológicas revelaram que o Homo Sapiens não
era de forma alguma mais inteligente que o homem de Neandertal. A ciência já afirmou que o
Neandertal não tinha habitado juntamente com a espécie humana, mas recentemente
descobriu-se que isto era uma falácia. Até 2003 os cientistas diziam que os seres humanos
tinham 100.000 genes, mas depois se descobriu que temos por volta de 19.000 a 20.000. Até o
século XX muitos médicos achavam que a sangria curava quase qualquer doença; hoje esta
afirmação se faz absurda no meio científico. Amostras como estas revelam que os
conhecimentos científicos que outrora traziam segurança a seus proponentes, em gerações
posteriores se mostraram mitológicos e até infantis. As seguranças de muitas afirmações
científicas hodiernas poderão se mostrar totalmente incoerentes e frágeis na geração
posterior. Muitas teorias científicas, como por exemplo a que propõe as causas do surgimento
do Universo carecem de fatos pela própria incapacidade da repetição de tais fenômenos. Fica
evidente que a fé se mostra um elemento de propriedade não exclusiva da religião.

Assim, a religião, ao se propor a lidar com as questões sociais, não oferece resignação,
alienação ou paralisia à energia social; pelo contrário, ressignifica a existência humana,
lançando âncoras no transcendente, procura transformar o presente com o amor, altruísmo,
cultivo de valores importantes para o convício social e busca pela sobriedade das relações
humanas. Quando estabelece suas bases no eterno, a religião propõe um presente
responsável e valorizado, pois as ações que aqui são feitas se refletirão no infinito.

As respostas a uma sociedade contemporânea infectada pela ansiedade, depressão e stress
não advém de uma única fonte, mas sim de uma pluralidade de experiências do humano, das
quais a religião, com certeza constitui-se como parte significativa.