Søren Kierkegaard, aquele dinamarquês de nome complicado que os manuais de filosofia apelidaram de “pai do existencialismo cristão”, dizia que a fé não era um cálculo seguro. Não era um contrato com cláusulas bem assinadas. Era um salto no escuro. Um pulo diante do absurdo. O que o sustentava não era a certeza de onde cairia, mas a confiança em quem o chamava a saltar.
Mais tarde, John Caputo, já no nosso tempo, resolveu complicar ainda mais. Para ele, a fé é “fé sem fé”. E o que significa isso? Que a fé verdadeira não é uma fortaleza de pedra, mas um vaso de barro que racha, quebra, precisa ser colado de novo e de novo. É fé que não se apoia na segurança das respostas prontas, mas que sobrevive às rachaduras, ao silêncio, à incerteza. É fé que se reinventa a cada passo.
Umas brutalidades
Costumamos pensar que a dúvida mata a fé. Mas a história bíblica insiste em nos lembrar o contrário. Abraão riu do absurdo de ter um filho na velhice. Jó amaldiçoou o dia em que nasceu. Tomé exigiu colocar o dedo na ferida. Nenhum deles saiu ileso. Nenhum deles saiu “herói” no sentido romântico. Mas todos, de alguma forma, atravessaram a noite e encontraram fé do outro lado.
Essa é a brutalidade da coisa: a dúvida não é inimiga, mas parteira da fé. Ela arranca as ilusões, desmascara a confiança no automático, obriga a reinventar a caminhada. A fé que nunca duvida é como notícia de rede social: fácil de repetir, difícil de confiar. A fé que passa pela dúvida, essa sim, é real — porque não depende do verniz da certeza, mas da confiança no Deus que permanece.
Uma reflexão
Na verdade, fé e dúvida não brigam como rivais mortais. Elas se encontram, se cruzam, até dançam juntas. O pai aflito que gritou a Jesus não sabia esconder suas rachaduras: “Creio, Senhor; ajuda a minha incredulidade” (Marcos 9:24). Eis o retrato mais honesto da fé. Não triunfante, não blindada, mas ferida e ainda assim viva.
É preciso abandonar a ilusão de que fé é ausência de rachaduras. Não é. É justamente ali, na rachadura, que a luz entra.
Conclusão
Portanto, se alguém lhe disser que dúvida destrói a fé, desconfie. Diga que a fé sem dúvida é caricatura. A verdadeira é a que sangra, a que se ajoelha no escuro, a que balbucia com vergonha: “Eu creio, mas ajuda a minha incredulidade”. Essa é a fé que sobrevive porque não se apoia em si mesma, mas naquele que a chama para seguir mesmo sem garantias.
Jesus era um mestre com as palavras. Repare, por exemplo, em como ele fazia uso das parábolas e em especial como elas faziam sentido para o grupo de discipulos ao passo que os outros ficavam – propositalmente – sem saber de fato do que se tratava. São como mísseis teledirigidos: eles tem um ponto específico que atingir.
Outra coisa das parábolas, é que elas nos fala de uma situação conhecida, mas distante de nosso convivio. Ou dito de outra forma: falava de coisas que eram assunto entre os ouvintes, mas nenhum deles poderia se sentir atingido ou apontado com o ensinamento já que “era sobre os outros”.
Então, por que não falar da situação na Ucrânia? É uma coisa conhecida – ao menos na teoria para os leitores tupiniquins – e ao mesmo tempo distante, que nos pode falar de coisas bem corriqueiras sem que por isso nos ofenda ou coisa assim.
A semana foi marcada por avanços e recuos militares na guerra de agressão que Rússia desenvolve contra seu ex estado vasalo, a Ucrânia. Também durante a semana houve um aumento das tensões entre EUA, Europa e Rússia. Se discutem sanções e acordos comerciais. Enfim, o cenário internacional permanece instável, com impactos sociais e econômicos significativos.
Como dizia Susanita da tão amada tira cómica de Quino nos anos 60 e 70 – Mafalda – “Menos mal que o mundo é tãaaao longe!”
Qual é a condição, as ferramentas, e o conteúdo da mensagem cristã em situações de agressão (Antes de responder, lembre da agressão do Hamas contra o estado de Israel e a resposta que este está tendo e a situação do povo palestino)
E essas condições, ferramentas e conteúdo, se pode aplicar a qualquer conflito? Ou é apenas para casos de geo-política? Será que há tanta diferença de um conflito armado a um espiritual? Ou de um militar a um civil? Ou de um civil a um familiar? Ou de um familiar a um pessoal?
Existe esperança.O que hoje se estima como desgraça, na realidade trata-se da grande graça. A esperança. Se bem é verdade o que alguém disse sobre a guerra “A primeira baixa é a verdade” também é certo que podemos afirmar que “a última sobrevivente é a esperança” sendo que – ao faltar esta – tudo está perdido pois esta sobrevive mesmo até o findar dos recursos e sem esperança, nem mesmo com recursos é possível achar uma saída ao conflito.Ucrânia, não apenas tem se mostrado resiliente como também tem se mostrado inovadora nas modalidades de defesa adiando o final da guerra para “poder lutar amanhã” até que o reforço do ocidente (tão obviamente necessário) se faça manifesto de forma incontestável.
O caos desafia toda esperançaO caos é anterior à criação. Na criação, Deus se opõe ao caos colocando paz y harmonia. O mundo tenta imitar a paz de Deus, mas não consegue evitar o caos ou lhe dar uma solução ou pelo menos uma explicação aceitável. Apenas levantar perguntas – muito boas por certo – mas sem uma solução palatável.A guerra – que como muitos dizem é o estado natural do homem moderno e é o que o distingue da humanidade anterior – traz o caos. A alteração brutal da vida comum. O sobressalto desnecessário no meio da noite. Os ataques inumanos contra hospitais, escolas, centros de detenção, centrais de energia termo-nuclear, reservatórios de água, etc…Ir para um estado de paz, requer mais do que boa vontade. E repare que não falei em “voltar” e sim em “ir”. Nunca mais a situação será a mesma. Mas há esperança e o caos não prevalece.Todavia, esse “não prevalecer” não é natural. Ou seja, a esperança por si só, não tem o vigor necessário para prevalecer contra o caos. E esperança está no impotente. Daí que só o potente pode – de fato – enfrentar o caos… como na criação.
A justiça como resposta ao caosO caos ocasionado por decisões de seres humanos, só pode achar seu cauce de vazão na justiça. Daí que a tão almejada paz não se alcance enquanto haja esperança, recursos e injustiça. Tire só um dos três pilares e os outros prevalecem. Como a esperança não pode ser tirada e a justiça não pode ser instaurada no atual estado de coisas, apenas resta aos que podem, retirar e ameaçar tirar os recursos. Que sobra: esperança e injustiça. E isso é receita para o fraticidio a longo prazo.Então a justiça (os oblast de Ucrânia ocupada precisam voltar a serem da Ucrânia, os crimes de lesa humanidade precisam ser julgados, etc) precisa prevalecer. Ou, dito de outra forma, a mentira inicial que deu o “amparo” moral que Putin precisava, precisa ser escancarada. (Assim como precisaria a mentira que levou ao segundo ataque ao Iraque no final dos noventa)Sem justiça, a paz não tem como existir quanto menos se sustentar.Talvez por isso que “justificados … temos paz” Romanos 5. Ou seja, endireitados temos paz com Deus.
Agora, avaliemos outros conflitos antes de apressar-nos com as conclusões. Pensemos em outros conflitos como o caso do Iran contra o resto do mundo. Ou da Cachemira, ou de China contra Taiwan. Ou da Rússia contra o Japão. Ou dos EUA contra o restante do mundo comercialmente.
Pode encontrar sempre esse mesmo tripé.
Mas pensemos em situações familiares, ou de casal. Sem justiça, não há como florescer a paz e a esperança e os recursos vão definhando até não ser possível uma reconstrução. É facil se sentir injustiçado. Dificil é promover a justiça quando isto tem prejuizo próprio.
Porém, se observarmos mais fundo, pessoalmente também há esse estado caotico da alma humana com seu criador e – a partir disso – com outras criaturas e com a natureza, mas pior que tudo, consigo mesmo o ser humano está em constante rebeldia e dessassossego.
Lamentavelmente, por mais que os livros de auto-ajuda indiquem o contrário, você não pode – por esforço próprio – conseguir estar em paz com seu Criador e – por conseguinte – com você mesmo. É uma questão de tempo até que as rochas afiladas do fundo do seu rio, apareçam depois das aguas do esforço proprio vazarem e derem lugar à realidade.
Me acompanhe só mais um minuto… De um plano distante como a Ucrânia, em que nos resulta bastante fácil dar palpite e formar opinião, fomos avançando até chegarmos ao cotidiano e pessoal.
Em certo sentido, lhe vai parecer risível a proposta que vem, mas na realidade ela é poderosa demais para que seja levada a sério pela maioria.
A nossa situação se parece com os rebeldes dos oblast da Ucrânia: ajudados por um poder externo, atacam a própria nação. De igual forma, ao aceitarmos a invasão em âmbito pessoal das ideias, principios, regras de convivio, valores dúbios, auto-indulgencia, etc, o que estamos fazendo – em território pessoal ou familiar – é convidando um poder muitissimo maior do que nós para nos respaldar em nossa rebelião. Repetimos a história do Eden. Daí que Paulo diz “todos pecaram e estão destituidos da glória de Deus”
E aí que vem a solução que para o mundo é chamada de “maldita” pois lhes parece loucura. (E não lhes poderia parecer outra coisa)
O que foi que Deus fez quando a rebelião alcançou seu auge? Qual era o plano desde antes da criação do mundo? Conforme diz a segunda carta aos Coríntios, “Deus nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação” (2Cor. 5:18-20)
A reconciliação que Deus fez conosco (a custo da vida do próprio filho) não pode ser tido como um exemplo apenas, mas sim como uma razão de ser. Ou seja, a reconciliação (mesmo com custo pessoal) faz parte do ser cristão. O novo homem partilha da responsabilidade (glória) da nova criação e participa assim dos sofrimentos do Cristo ao estender a mão da reconciliação para quem – como nós – não a merece.
Graça sobre graça de forma prática. O Reino de Deus pode ser visto como o grande projeto de reconciliação de Deus com a raça humana. Veja bem, não é o homem que se reconcilia com Deus, é Deus quem reconcilia o homem com seu Criador.
Como que isso afeta o panorama mundial. Bem, primeiro que não há nada que não seja espiritual e isso fica de manifesto em guerras, epidemias, e todo tipo de catástrofe. O mesmo vale para relações familiares ou para nossa vida pessoal.
Essa conexão é facil de demonstrar: não interessa se o sistema que domina um país é democratico ou autocratico, todo governo teme à opinião do povo pois quando o povo se levanta, muitas coisas mudam de forma repentina. Sim, sei que também essas mudanças não conseguem se suster por muito tempo e o povo se evapora assim que a mudança é realizada dando lugar a outro esquema (geralmente tão ruim quanto o primeiro) contanto prometa algumas mudanças que atingem a massa.
Bem, seja como for, há uma realidade espiritual conectada à nossa realidade “humana”. Ou dito de outra forma: os gregos estavam certos em fazer uma tricotomia do ser humano: alma, corpo e espirito. Os judeus estavam certos em sua dicotomia. Os orientais estão certos em observar que há algo para além do físico. Enfim.
O ponto aqui é que o que a igreja proclama, tem um peso importantissimo mesmo a miles de kilometros de distância (sem por isso diminuir ou eliminar a reponsabilidade e as possibilidades pessoais que há in-situ).
Se a igreja para de idolatrar ou demonizar a esquerda e a direita, ela fica livre para assumir seu lugar na história. Qual lugar é este? Do lado da restauração da imagem de Deus na sua Criatura. Como se consegue isso? Por meio da mensagem da reconciliação.
Veja. Não há nada tão importante como a superação do caos. Deus não é a fonte do caos. Logo, a superação do caos, é a constante do Criador. Todavia, em sua liberade, o ser humano tem escolhido (e escolhe regularmente) ir contra seu criador.
Mas Deus, o deus que se revela na Bíblia, é soberano sobre a história. Nada há que se escape do controle dele. Não é possível ele concordar com o que o homem – em seu desejo por se afastar do Criador – escolhe. Logo, é a Igreja a encarregada de fazer sua parte do serviço aqui na Terra. E para isso, deve anunciar a mensagem que é o cerne da restauração do Criador na Criatura: a mensagem da reconciliação.
Ucrânia e Rússia enfrentam uma guerra fraticida. Compartilham centenas de anos de similaridades culturais e religiosas. Mas se matam entre eles. É obvio que parece uma mensagem fraca (e talvez por isso me detive a explicar o por quê a justiça é necessária para alcançar a paz e não ao contrário), mas a mensagem que a Igreja tem é a de reconciliação. Ou seja, o que é sinal mesmo de justiça e paz após o conflito? A reconciliação.
O mesmo vale para as familias, o mesmo vale para os casais, o mesmo vale para o individuo em sua rebeldia com Deus.
Está você em rebeldia com Deus? Acha que a solução para o Hamas é apenas bala e vala? Então é melhor começar a se arrepender.
“Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus” Mateus 5:9
Em muitos chamados bíblicos, incluindo o de Abrão, há um elemento migratório. Sempre há um movimento, uma deslocação. No entanto, esse deslocamento não é infinito; chega um momento em que o convocado deve se estabelecer e transformar a sociedade na qual se encontra. A mesma confiança exercida na saída deve agora ser colocada no afincamento, conforme expresso em Gênesis 12:2-3, onde Abrão é chamado a ser uma bênção para os outros.
Chamado Migratório na Bíblia
A Bíblia está repleta de histórias de migração, onde personagens como Abraão, Sara, Jacó e até mesmo Jesus são retratados como migrantes. Essas narrativas não apenas descrevem movimentos geográficos, mas também revelam um profundo significado teológico. A migração na Bíblia é frequentemente um chamado divino, que envolve deslocamento, estabelecimento e transformação.
O Chamado de Abraão
Um Modelo de Migração e Estabelecimento
O chamado de Abrão (depois chamado de Abraão) é um dos mais emblemáticos exemplos de migração na Bíblia. Em Gênesis 12:1-3, Deus instrui Abrão a deixar sua terra natal e sua família para ir a um lugar que Ele lhe mostrará. Essa jornada não é apenas um movimento físico, mas também um ato de fé e confiança em Deus. Abraão é chamado a ser uma bênção para todas as famílias da terra (Gn 12:3), o que implica não apenas estar em um lugar, mas ser naquele lugar, encarnando uma mensagem de esperança e salvação para o contexto local.
Abraão e Sara percorrem a terra prometida, enfrentando desafios como fome e ameaças, mas também experimentando a fidelidade de Deus (Gn 12:10-20; 13:1-4). Eles se estabelecem em diferentes locais, como Betel e Hebron, e ao longo da jornada, Deus renova suas promessas, assegurando-lhes descendência e terra (Gn 15:7; 17:1-8). A história de Abraão nos ensina que o deslocamento não é infinito; chega um momento em que o convocado deve se estabelecer e transformar a sociedade na qual se encontra.
Jesus: O Migrante Encarnado
O maior exemplo de migração e encarnação é Jesus Cristo. Ele se encarnou em um lugar que não lhe era por natureza, mas que lhe era por adoção (Lc 2:1-14). A família de Jesus foi forçada a migrar para o Egito para escapar da perseguição de Herodes, tornando-se refugiados (Mt 2:13-15). Jesus peregrinou na terra de Israel, pregando o Reino de Deus e trazendo mudanças eternas, apesar de ser rejeitado por muitos (Mt 4:17; Jo 1:11).
A encarnação de Jesus é um ato radical de migração, onde o Filho de Deus se torna humano e habita entre os seres humanos (Jo 1:14). Como o Messias, as mudanças que Ele trouxe e pelas quais passou são permanentes: repare que não existe tal coisa como “desencarnação”. Após a ressurreição, Jesus ascendeu ao céu e agora está à direita de Deus Pai (Atos 1:9-11; 2:33; Efésios 1:20; Colossenses 3:1; Hebreus 1:3; 1 Pedro 3:22). Isso indica que, em seu corpo glorificado, Jesus está em um local específico no céu. Muito embora sua natureza divina permita que Ele seja presente em todos os lugares (Mt 28:20; Jo 14:23).
É importante notar (para não assustar o leitor desavisado) que a presença de Jesus não é apenas uma questão de localização física. Ele prometeu estar conosco até o fim dos tempos (Mt 28:20), o que sugere que, apesar de estar fisicamente no céu, Ele continua presente entre os crentes através do Espírito Santo (Jo 14:16-17; 16:7). Essa presença espiritual não é limitada pelo espaço ou pelo tempo, permitindo que Jesus seja simultaneamente em um local específico no céu e operando em todas as partes do mundo através da fé dos crentes.
Isso nos lembra que a resposta ao chamado não apenas produz mudanças drásticas no destino temporário da peregrinação, mas também no que migra para sempre.
A Igreja e o Chamado Migratório
A igreja, como corpo de Cristo, é chamada a seguir esse modelo de migração e estabelecimento. Devemos nos mover com a confiança de que estamos sendo guiados por um propósito maior, e ao nos estabelecermos, devemos buscar transformar positivamente o mundo ao nosso redor. Isso significa encarnar a mensagem do Evangelho em cada contexto local, tornando-nos bênção para as comunidades nas quais estamos inseridos.
No entanto, a igreja frequentemente claudica nesse chamado. Em vez de se estabelecer e transformar, muitas vezes se contenta em apenas estar presente. A radicalidade do “experimento cristão” reside exatamente no âmago desse chamado: ser sem deixar de ser. Devemos ser capazes de nos adaptar e nos estabelecer em novos contextos sem perder nossa identidade em Cristo.
Conclusão
Em conclusão, a ideia de migrar e se estabelecer é um chamado contínuo para os cristãos. Para todos eles. Quando lemos este tipo de coisas, imaginamos que estamos falando de missões no sentido clássico (isto é com William Carey, século XVIII em diante) em que vamos para muito longe para sofrer muito.
Através das histórias de Abraão e Jesus, aprendemos que o deslocamento não é apenas um movimento físico, mas um ato de fé e confiança em Deus. Devemos nos mover com a certeza de que estamos sendo guiados por um propósito maior e, ao nos estabelecermos, buscar transformar positivamente o mundo ao nosso redor. Assim, podemos encarnar a mensagem do Evangelho e ser bênção para as comunidades nas quais estamos inseridos, como Abraão e Jesus fizeram antes de nós.
Não se trata então, para a maioria de nós, de um deslocamento em muitos quilômetros. Mas após ler estas linhas, faça um teste. Vá caminhando até uma rua perto da sua casa que você não conhece ou pela que pouco transita ou passa apenas de carro. Fale com as pessoas. Apenas fale… você vai entender.
Somos uma espécie estranha. Precisamos do perdão para viver, mas não sabemos perdoar nem pedir perdão. Tenho a impressão que não queremos o perdão.
Faz uns anos atrás um colega de serviço traiu a mulher (e os filhos, obvio) Como eu já tinha passado por essa experiência, me aproximei para ver se podia – de alguma forma – ajudá-lo a reverter a situação. Grande foi minha surpresa quando em lugar de ouvir “eu já pedi perdão para minha esposa” ouvi “eu já perdoei minha esposa“. Tentei sem sucesso lhe explicar que era ao contrário. Ele não conseguia entender que quem havia errado era que devia confessar, se arrepender e ser perdoado. Mas não era que ele culpasse a esposa não. Era que ele não entendia mesmo a diferença entre “pedir perdão” e “perdoar alguém“. Na cabeça dele, ele estava fazendo corretíssimo porque ele era quem tinha errado. Óbvio que era um problema de ordem semântico, mas imagina como a mulher não entendia nada do que ele falava.
Na oração modelo, Jesus nos ensina “E perdoa nossas ofensas assim como nós perdoamos aqueles que nos têm ofendido“. Ou seja, há uma relação direta entre nossa capacidade de perdoar e a medida de perdão que temos recebido.
Um livro que minha esposa gosta muito é “Um amor que vale a pena” de Max Lucado. Há vinte anos eu me neguei a ler por pura altaneria, orgulho e ignorância. A tese do livro é simples: você só pode dar aquilo que tem. Então, se nunca você foi amado, nunca vai conseguir amar. Se nunca foi perdoado, nunca vai conseguir perdoar.
A ideia vale no sentido inverso: se alguém não ama, é porque não conhece o amor. Se alguém não perdoa, é porque não tem tido acesso ao perdão.
As características de um novo pacto
A nova aliança em Jeremias 31:27-34 não é um remendo na velha, mas um ponto de ruptura. O ciclo de erros herdados termina. Antes, os filhos arcavam com as falhas dos pais, como se o pecado fosse uma dívida automática. Agora, cada um responderá por si. Deus planta e colhe indivíduos, não mais apenas um povo como bloco monolítico. A fé não se transfere por osmose, nem a justiça se delega. A Liberdade está no centro da questão.
Isso muda tudo. Não há mais desculpa. “Ah, fui criado assim”, “me ensinaram assim”, “meu avô era assim”. Jeremias anula a terceirização da culpa. Cada geração recebe uma folha em branco para escrever sua história com Deus. Cada um decide se será escravo do passado ou agente de uma nova realidade. A aliança agora se inscreve no coração. Se está dentro, não há para onde correr. Ou se assume ou se rejeita.
Na teoria da recapitulação (Irineu de Lyon, que viveu aproximadamente entre 130 d.C. e 202 d.C.), Cristo não apenas morre e ressuscita; Ele refaz a história da humanidade. Ele é o novo Adão que não falha, que obedece onde o primeiro desobedeceu. A nova aliança não joga fora o que veio antes, mas leva ao destino que a primeira não conseguiu alcançar. A lei gravada em pedra ensinou, mas não transformou. Agora ela é impressa no coração. Não se trata mais de decorar preceitos, mas de ser tomado por eles.
Paulo, em Romanos 5:12ss, desenha essa linha do tempo. O primeiro Adão trouxe condenação; o segundo traz restauração. Mas restauração não é automação. O fato de que Cristo pagou o preço não significa que todos os boletos foram automaticamente quitados. A nova aliança coloca o indivíduo diante de sua responsabilidade. Se antes havia um peso herdado, agora há uma decisão intransferível. Não adianta mais jogar a culpa no contexto, na sociedade, nos outros. Ou se nasce de novo ou se permanece na morte.
As consequências na igreja hoje.
Se a igreja de hoje entendesse isso, ela não seria um sistema fechado, mas um organismo vivo. Não existiriam mais cristãos de tabela, aqueles que apenas seguem a onda porque foram criados assim. O erro de muitos hoje é tentar viver um evangelho herdado, como se fosse possível ser genuíno por tradição. Jeremias destrói essa ilusão. A fé tem que ser escolhida, assumida, gravada no peito como um selo que não sai.
Isso também acaba com o moralismo vazio. A nova aliança não gera um povo de aparência santa, mas de santidade real. Não é mais sobre seguir regras externas, mas sobre ser transformado internamente. O problema do legalismo sempre foi tentar produzir frutos sem raiz. Jeremias resolve isso ao colocar a Lei dentro. A mudança acontece de dentro para fora, ou não acontece. Isso significa que a hipocrisia morre. Não dá mais para fingir quando a exigência não está numa placa da igreja, mas cravada no próprio ser.
Outra consequência? A missão se torna inevitável. Quando a aliança estava fora, precisava ser ensinada. Agora, “ninguém ensinará ao seu próximo, dizendo: ‘Conheça o Senhor’, porque todos me conhecerão” (Jr 31:34). Isso não significa que a evangelização acabou, mas que ela se tornou natural. Quem tem a lei dentro testemunha sem precisar fazer esforço forçado (por mais pleonasmo que pareça). A missão deixa de ser um evento para ser um transbordamento. O evangelho não é mais algo que se aprende, mas algo que se vive. Quem está cheio derrama.
Se isso fosse real hoje, não haveria igrejas frias. O evangelho teria a força de uma explosão, porque não seria imposto, mas ardente em cada coração. A fé não dependeria de líderes carismáticos ou estruturas bem organizadas. Não precisaria de “entretenimento gospel” para atrair gente. Quem tem sede não precisa de publicidade para procurar água. A igreja seria irresistível, porque não se sustentaria em marketing, mas em testemunho vivo.
E o perdão? Jeremias 31:34 é categórico: “Perdoarei sua maldade e não me lembrarei mais dos seus pecados.” Esse é o corte definitivo com o passado. A nova aliança não recicla pecados; ela os elimina. A culpa não é mais uma corrente no pé, arrastada por gerações. O pecado não define mais ninguém. Quem entra na nova aliança recebe uma nova identidade.
Se a igreja vivesse isso, ninguém ficaria preso ao erro de ontem. Não haveria mais a praga do rancor, das acusações, da cultura do cancelamento. O evangelho não seria uma religião de gente que se olha torto, mas de um povo que sabe o que significa ser perdoado e, por isso, perdoa.
No fim, Jeremias nos entrega uma bomba: a fé não é mais um contrato, é uma regeneração. Deus não quer um povo domesticado, mas um povo que vive a partir de uma nova natureza. E isso muda tudo. Não é mais sobre seguir Deus. É sobre ser de Deus.
Então, talvez, a derradeira pergunta (a “preocupação última” no estilo Paul Tillich) seria não se é possível ser perdoado, é se você está disposto a cortar com seu passado.
Quando consideramos o que aconteceu com Abrão (muitíssimo antes de ser chamado de Abraão) vemos que há paralelos com a nossa convocatória. A promessa feita de YHWH para Abrão também foi uma con-vocação: Abrão deveria fazer a si e aos “clãs agrários” o que havia sido feito a ele.
Tal parece que nosso Senhor tem uma queda por planos frágeis. Se somos parte de um grande plano conspiracionista como alguns dizem, este só cumpre com o propósito de exaltar um Deus (supostamente inventado) e rebaixar o ser humano que tão grande coisa se acha.
Esse deus que difere da pletora de deuses da antigüidade e dos atuais decide aparecer de vez em quando e todas as vezes que o faz a proposta é bastante radical. Geralmente os outros deuses demandam sacrifícios de coisas e seres alheios à própria pessoa para obter algum benefício seja comunitário ou pessoal.
Já este outro – o da suposta conspiração – está cheio de placas que apontam a rota de saída do sistema em que o vocacionado se encontra. De Noé a Filemos, a constante é o nadar contra a maré. Não há um lugar para a barganha. Assim como Adão, o chamado é para a obediência e a única opção restante é a desobediência. Claro que as consequências diferem das de Adão, mas se parecem às de Jonas ou às elencadas por Mordecai.
Bem aponta Yuval (seguindo a ideia de Frederico que “Deus está morto”) que os deuses de hoje são de cunho tecnológico e que a religião do momento – o humanismo – está sendo substituída pela veneração dos dados.
Nesse sentido, os deuses que nossa geração é chamada a abandonar são de uma penetração e presença muito mais abrangentes e o desafio do “con-vocado”, maior. Aqueles deuses da região mesopotâmica ficariam lá quando Abrão saísse da sua terra e da sua parentela. Já os atuais os carregamos em pequenos templos eletrônicos no bolso da calça e no coração.
Aqueles que nascemos em berço Evangélico dificilmente entenderemos como o nosso louvor publico e privado não expressa a nossa cultura. Nos sentimos bem cantando Lutero e Wesley e quem se acha avançado, sente que louva bem com Hillsong.
Aliás, essa é nossa cultura. Uma subcultura de conserva ou uma redoma cultural se assim preferirem. As muitas tentativas de se promover um louvor mais autóctone acaba revelando um retorno frio no melhor dos casos.
Isso tem lá sua razão de ser e também tem suas consequências, sendo a pior delas (tanto razão como consequência) o isolamento em compartimentos separados hermeticamente da vida cultual com a vida secular, quando é impossível separar ambas as coisas, já que Deus não o é apenas da vida cúltica ou da vida pública, ou apenas da vida privada.
Olhando para outros aspectos, a forma em que a invasão europeia se deu (isto é, aliada à invasão religiosa e cultural) perpassa nossa realidade até hoje: vindo de fora, é melhor; o produzido dentro, é pior que produto chinês. Nisso, a portuguesa e a espanhola se distinguem fortemente da expansão grega, em que Alexandre o Grande levava pessoas não apenas para conquistar (incluindo sim cultura e religião) mas também para aprender.
O que a espada espanhola trouxe junto? A inquisição. Entre invasores, indígenas, negros, mulatos, caboclos e mestiços em geral, a única forma de crença autorizada era a que havia sido formatada por Torquemada (1420-1498) e seus sequazes, absorvida pelo movimento de contrarreforma católico e colocado em prática em terras latino-americanas pelos Jesuítas. Tudo o que escapava a isso era uma mera negociação local para evitar rebeliões.
O grande fator que distingue Brasil do restante de America Latina é a forma em que a igreja católica portuguesa, assim como o reino, organizou-se em terras tupiniquins. Em lugar de fragmentar, como fez Espanha, amalgamou. Só que não homogeneizou. Os vice-reinados espanhóis se dividiram, ao passo que o vice-reinado português se manteve único para mais tarde (fugindo de Napoleão) o próprio reinado migrar para o que nalgum momento fora chamado de “Terra Brasilis”.
Claro, é digno de nota dizer que a visão cultural do imperador era muito avançada para sua época. Alguém que foge com família e livros, não é comum. Mais adiante, quando seu herdeiro deve fugir do Brasil, é França quem acolhe ele. Mas nem Portugal, nem França, nem o Brasil são mais o que eram.
Mas há um fator que se escapa a isso tudo: a autodepreciação. A frase que mais me desaponta na boca do brasileiro é “Isso só acontece no Brasil“. Essa fortíssima baixa autoestima permeia, com diferentes impactos, todas as camadas sociais. Desde a família Orleans e Bragança até os “Da Silva”, “Da Costa” passando pelos “Garcia”, “Rodrigues” e também os “Pereira”, “Oliveira”, etc.. Alguns com amarga saudade, outros com inveterada desvergonha e outros com impassível desconhecimento da própria história e potencial; todos eles padecem do mesmo mal: “Isso só se dá aqui”
Nessa questão da autodepreciação, há um espaço enorme para acreditar que tudo o que veio da Espanha, de Portugal e dos Jesuítas é ruim. Mas também há espaço para dizer que apenas o que veio de lá é bom. E é disso que se trata. Com o fim do período da colónia, dever-se-ia separar o joio do trigo, o amargo do doce. Por não ser feito (no dia a dia) me parece que é conveniente à psiquê brasileira comum pensar de forma penosa de si e atribuir todos seus males às suas origens. Conveniência essa pela qual pagam as gerações seguintes.
Não é de se estranhar, então, que tal conjunto de fatores confronte a igreja real com grandes desafios. A única solução que me vem à mente é abraçar as diferenças e focar em curar (por meio do modelo de Ser Humano certo, isto é: Jesus) esse abismo interior que cada brasileiro carrega, levando cativo todo pensamento a Cristo e não aos devaneios que estiverem na moda.
As mortes recentes de personalidades mundialmente reconhecidas como Pelé e o papa Bento XIV nos relembra que há um ponto final para a existência humana. Pelo menos na vida que todos conhecemos. Seja que acreditemos ou não numa vida após morte, o certo é que o que podia e devia ser feito nessa vida, chegou ao seu fim: não há mais possibilidade de mudar de rumo ou de alterar a caminhada ou curar com palavras. Simplesmente o fim chegou.
Mas pensemos um pouco na situação política do país. Em especial na amarga divisão que toma conta de nossa sociedade. Essa divisão é alimentada por notícias falsas, por ódios, por conceitos formados previamente e pela incapacidade crônica de dialogar com o diverso.
Todavia, o meu foco nestas poucas linhas, é tentar dar um rumo aos sentimentos contraditórios que muitos dos nossos irmãos enfrentam. Me arriscarei a analisar os dois casos, então me tenha um pouco de paciência e vá treinando de forma silenciosa como dialogar com quem traz ideias diferentes. Vejamos a razão pela que entendo que 2023 pode ser o “ano da redenção”
A redenção do Bolsonaro
O primeiro caso a ser analisado é o do ex presidente Jair Bolsonaro. Não cabe analisar as razões nem as circunstâncias pelas que ele chega ao poder. Também não cabe elogiar ou apoucar a trajetória dele no executivo. Baste apenas dizer que ele não esperava ser derrotado. Isso ficou de forma bem clara na sua falta de reconhecimento da derrota e também no seu silêncio ao respeito de quaisquer assuntos, sejam estes do governo ou não nas semanas e meses que se seguiram, o que se viu coroado com uma viagem ao exterior. Coube ao vice-presidente Hamilton Mourão fazer o discurso final com o conteúdo republicano adequado e a defesa clara da democracia e suas instituições. Pelo que eu entendo, era isso que muitos esperavam do chefe do executivo. Era o que eu mesmo esperava de forma imediata à derrota. Isso teria engrandecido um pouco o próprio Bolsonaro e não tivesse criado tão grande brecha ao lado direto do espectro político. Espaço este que, obviamente, clama por um preenchimento.
É nesse contexto, que 2023 pode ser um ano de redenção para o próprio Bolsonaro e/ou para os bolsonaristas. Jair Bolsonaro pode aprender a lidar diferente com a imprensa, com a ciência, com a religião, com a questão ambiental, com os pobres em particular e com o ser humano em geral. É uma tarefa hercúlea, mas não impossível. Se ele quer ocupar o poder político novamente, deve fazer o mesmo que Lula fez no passado, isto é: se tornar “Bolsonaro paz e amor”.
Há esperança para aqueles bolsonaristas extremos. É difícil, mas não impossível. Eles podem, por exemplo, apoiar a mutação do Bolsonaro. Aprender com ele que é possível mudar e aprender. Podem se dedicarem a uma mudança profunda e de coração e abraçarem a busca da verdade. Pelo menos a verdade cientifica. A verdade filosófica e existencial pode vir logo a seguir.
Mas há esperança. Pode ser o ano da virada. Havendo conquistado quase 50% dos eleitores, o único caminho que resta é o da mudança porque o que se podia ganhar com esse modelo já foi ganho. Daí que uma mudança positiva e construtiva que busque o bem comum e não de uma parcela é que pode esconder um raio de luz de metamorfose. Então 2023 pode, sim, ser o ano da redenção.
A redenção de Lula
O segundo caso que gostaria de analisar é o da redenção de Lula. Já ficou provado que houve, sim, roubo. Um assalto aos cofres públicos; um mal uso da coisa pública; um loteamento do estado. Que por questões técnicas tenha-se invalidado o julgamento e retornado à estaca zero não diz nada sobre os fatos. Fatos estes – que é bom se relembre – pelos quais vários devolveram dinheiro e outros pagaram com cadeia.
Agora bem, ele entrou no pleito político (coisa nada boa, mas era o único páreo para enfrentar o bolsonarismo) e nesse pleito, venceu. É agora o presidente do pais e como tal, merece o nosso respeito assim como o merecia Jair Bolsonaro. O que se respeita é a figura do presidente. É esse o conceito necessário aqui. Se serve de ajuda, pense em Alexandre de Moraes (uma pessoa que tem desagradado ao longo da sua magistratura a diversas pessoas de todo o especrto político) o respeito que ele merece é o respeito que a toga impõe, isto é: a instituição.
Bem, assim como no bolsonarismo, existe uma grande parcela dos eleitores de Lula que não param para pensar. Apenas o apoiam e tudo o que vier dele estará bem. Porém, há uma parte da população que não pensa assim.
Focando apenas em nossos irmãos, tomemos alguns exemplos: estão os que têm medo de que o país seja tomado de assalto de novo. Estão também, aqueles que votaram em Lula por não terem mais opções e se sentem presos nessa situação toda. E estão aqueles que não votaram em Lula e têm medo de coisas esdruxulas como a imposição do comunismo no Brasil.
Lula tem uma longa trajetória de autorreconstrução. Aliás, se você para para pensar, tudo na vida dele é reconstruído. Obvio que não me deixo enganar pelo discurso “Lula Paz e Amor”, mas devo reconhecer que é um homem que sabe se reconstruir. (Se fosse realmente Paz e Amor não teriam havido tais assaltos ou pelo menos saberia o que estava acontecendo)
Pois bem, esta é a grande oportunidade da vida de Lula de se remir de forma definitiva perante a opinião pública. A árvore do bem e do mal está perante ele. Ele pode cair na tentação de permitir condutas erradas ou pode se revestir de uma couraça de justiça. Cabe a ele a decisão e a mais ninguém.
Decidindo por uma conduta mais licenciosa, seus votantes mais fieis continuariam a votar nele se a saúde e a própria vida lhe permitem se candidatar novamente. Votarão também no seu indicado por causa desse Messianismo que permeia nossa cultura. Nada lhes afetará. Nesse sentido, nada distingue esses eleitores dos eleitores mais ferrenhos de Bolsonaro.
Se a escolha é a licenciosidade, parte da esquerda mais séria (penso na carcaça do Partido Social Democrata Brasileiro, por exemplo) se afastarão desse modelo. Esse casamento mal-arranjado PT/PSDB só foi possível perante o tsunami de desinformação e desserviço praticado pelo PL que, por sinal, também está rachado e afundando.
Porém, ele pode escolher pela redenção. O momento é o mais adequado. O país precisa de uma unificação o mais orgânica possível. As instituições (senado, deputados, supremo, polícia federal, SUS, etc.) precisam voltar ao seu curso. Umas por serem essenciais aos pesos e contrapesos de uma democracia saudável, outros por serem propostas tupiniquins bem sucedidas que precisam ser resgatadas. A economia e infraestruturas precisam continuar a ser cuidadas e estendidas para a população mais carente. Há enormes desafios na área de salubridade, educação, defesa. Reformas que beneficiam diferentes setores da população e que têm sido engavetadas, esquecidas, inadvertidamente abandonadas, gritam por uma discussão séria. Pseudos segredos de estados que são segredos pessoais e políticos precisam ser drenados como um abcesso lingual. A questão ambiental e o avanço sustentável do agro precisam estar sob os holofotes de novo. O crime organizado, em geral e as milícias em particular precisam ser identificadas e definitivamente desmanchadas. A transparência do estado e a punição dos seus excessos urgem por uma implementação que ultrapasse os limites de um governo. O cancelamento da reeleição para os cargos executivos, assim como o combate ao nepotismo e seus similares, como o apadrinhamento de certas empresas (o CNPJ pai – Brasília – ampara certos CNPJ “enteados por conveniência”). A melhor distribuição de renda pode deixar de ser mera demagogia deslavada para passar a reunir educação, segurança, alimentação e programas de autorrenda. O alinhamento das eleições dos executivos federais, estaduais e municipais (que evitaria muito “toma-lá-dá-cá”) e um longo etcetera.
Usando o jargão do próprio Lula, “nunca na história deste país se deram as condições tão amplas para um político se remir do seu passado” Um rio caudaloso de virtude pode ter sua fonte justamente no período que se inicia em 2023. A foz dessa virtuosidade é um Brasil melhor.
Uma redenção de Lula, poderia ser (para os próximo 16, 20 anos) uma coisa muito favorável para o Brasil em geral e para a esquerda em particular. Escolher o caminho da redenção, pode significar um país mais forte, plural, feliz, rico. Pode ser largamente benéfico para a democracia brasileira, se bem que, tradicionalmente, o que se vê é que quem perde fica deslocado.
Me explico: quando o PSDB foi dispensado do governo por ocasião de Lula assumir a primeira vez, ficou notória a incompreensão do PSDB como oposição ao PT. Simplesmente se perderam e demoraram muito para assumir uma tímida postura. O mesmo se vê com Bolsonaro na hora de perder para o voto popular: ele ficou muito perdido. Então, num cenário em que o Lula se remisse das ações perpetradas contra o Estado e a Sociedade Brasileira, os outros participantes da peleja política, deveriam aprender a se reposicionar perante essa situação. De outra forma, o PT continuará a governar de forma ininterrupta quatro ou cinco mandatos.
Via de rega evitamos a angústia que proponho. Essa situação em que se ele escolhe a licenciosidade é ruim, mas se escolhe a redenção pode ser pior (por mais que seja o adequado e melhor) nos pode jogar no limbo tradicional de termos que escolher “o menos pior” nas próximas eleições. Todavia, é de redenção que se trata.
Então há esperança. Uma redenção de Lula pode ser – a curto prazo – o melhor para o Brasil. Um afastamento da licenciosidade e uma aproximação da transparência na gestão da coisa pública pode lhe trazer o tão almejado acesso ao legado bom que ele pretende deixar e pelo qual tantas vezes na vida lutou. Corre o risco, então, de conseguir fazer um contraponto à grave mancha real que está na sua trajetória. De tão grande que este contraponto precisa ser (como para demover votantes da centro-direita por exemplo) é quase uma metamorfose. Difícil, mas não impossível.
A opção oposta (tanto para Bolsonaro como para Lula) de não buscar uma redenção, vai ser a morte política de quem assim escolha. E da mesma forma em que Joseph Aloisius Ratzinger chegou ao final da vida sem poder dar solução ao gravíssimo problema da pedofilia dentro dos muros católicos (apesar de ser ele o que maior impulso deu à solução disso). Ou da mesma forma em que Edson Arantes do Nascimento puxou seu último pouco de ar sem reconhecer Sandra Regina Machado como filha (por mais que o teste de DNA assim o descobriu) esses políticos de renome arriscam encerrarem sua atuação sem darem o exemplo mais digno e necessário para cada um de nós simples mortais: a mudança de rumo. Aquela que nós, cristãos, chamamos de “arrependimento” e que é a base da redenção.
A redenção do eleitor
Já ao eleitor cabe a responsabilidade de se parar de propagar noticias falsas, acompanhar as realizações dos atuais ministros, pois serão os futuros possíveis candidatos, comparar as fontes da imprensa tradicional (não ficar com apenas uma opinião porque jornalismo, sim, é opinião também), fugir de ideias e explicações simplistas, mas não se subtrair de falar de forma simples.
Ao eleitor cristão (evangélico ou não) sabe se afastar do messianismo político. Cabe a ele pensar fora da caixa de esgoto. E como perceber se está nesse messianismo? Bem, se para todos os problemas há apenas uma única solução ou um único líder, então já está errado. Se não há possibilidade de diálogo ou há uma relação dogmática com a coisa pública, então já está em areias movediças. Se um único e mesmo líder tem que se repetir eleição pós eleição, o eleitor já se encontra em grave perigo.
A maior bênção da democracia é o pluralismo de ideias. Todas as coisas que cooperam para o não pluralismo, devem ser sistemática e energicamente combatidos, chame-se extrema-esquerda ou extrema-direita. E pare de usar termos como Comunismo ou Fascismo se não sabe o conteúdo.
A situação em que transitamos nos mostra que estamos vivendo em um pais mais do que dividido (se é que isso é possível). Poderíamos pensar que sempre há divisões e isso é verdade. Mas nas últimas semanas estamos assistindo ao alongamento da divisão saudável atingindo níveis de intolerância e insensatez. Vamos primeiro ao ponto bom da divisão.
O caminho é o arrependimento
Não é bom um grupo de pessoas (os cidadãos de um pais, por exemplo) terem uma única e mesma ideia sobre a sua condução. Seu futuro está comprometido desde o início. Mesmo se coincidirmos sobre algum grande valor visceral (a paz, por exemplo) não haveria uma forma saudável de todos pensarem a mesma coisa. Se todos nós fossemos pessoas pacifistas, não haveria quem defendesse as fronteiras por citar um exemplo simples. Esses que estariam defendendo as fronteiras, por mais pacíficos que sejam, devem estar completamente comprometidos e decididos a tomar as armas quando necessário. Um caso similar é o da culinária, se numa casa todos soubessem cozinhar bem, mas ninguém tivesse a facilidade necessária para administrar os bens, rapidamente teríamos uma família obesa e mendicante.
Então assim como temos duas pernas, é bom termos diferentes visões de mundo. Diferentes perspectivas e, consequentemente, anseios e planos. Isso se aplica tanto a uma família como a pequenos grupos como a um pais. Não é errado, pensarmos diferente.
Todavia, é valioso ressaltar alguns casos de exceção. Talvez as exceções à ideia expressa anteriormente sejam os exércitos e grupos de emergência em que todos os indivíduos devem rescindir de suas ideias pessoais para dar lugar às da hierarquia e agirem como se fossem uma única pessoa. Todavia, mesmo assim é desejável que alguma coisa do instinto individualista de supervivência e amor pelo próximo seja mantido. De outra forma, teríamos exércitos e grupos de emergência formados por psicopatas. Isto é, pessoas que apenas sentem alguma coisa por si e, no melhor dos casos, pelos seus íntimos. (Um psicopata não tem como sentir empatia. Ele simplesmente não tem como sentir dó ou se colocar no lugar do outro. Não que não queira: não tem como).
O pleito democrático tem a virtude de colocar pelo menos duas ideias uma contra a outra. Aliás, no frigir dos ovos se resume a apenas duas visões de mundo. Todas as outas formas ou visões devem passar pelo crivo da negociação previa e devem acabar se acomodando nessas únicas duas que sobram no último estágio do pleito.
Se vemos os últimos pleitos (aqueles dos que temos memória) resulta que todos eles mostram um país dividido, mas é a primeira vez (na existência da maioria dos meus leitores) que a divisão chega a beirar a proporção 50/50. Isso, obviamente, gera desconfiança e insegurança de todos os lados. Dai a importância do pleito ser liso e profundo. Mas não é disso que quero falar hoje.
Sobre o silêncio dos que deveriam estar presentes
Me preocupa a branda elasticidade do silêncio da parte derrotada. Se, como é de praxe nas democracias, o rito do reconhecimento do vencido não é cumprido ou é cumprido tardiamente, ou é cumprido de forma pífia, se começa a pensar que há nisso uma deliberada intenção de – no mínimo – confundir. É obvio que nos faltam elementos para interpretar esse silêncio ou a comunicação abruptamente espartana. Então não é um terreno que possamos entrar para elaborar qualquer coisa.
Todavia, resta a interpretação que a massa (os quase 50% da população que votou na parte rendida) faz desse silêncio: nenhuma das leituras que o povo está fazendo falam de paz. Todas elas falam de insegurança e medo no melhor dos casos ou de intolerância e desatino no pior. Conheço pessoalmente algumas pessoas que votaram na parte rendida. A sensação entre esses que conheço é de desamparo, desapontamento e desassossego. Alguns pensam com compaixão naqueles que estão nas estradas se manifestando e ficam estarrecidos pelo absoluto descaso aparente do vencido.
Tenho a impressão de que essas manifestações são convenientemente deixadas para florescer amparadas por um silêncio retumbante. Mas ao falar isso, alguns que estão a favor do silêncio presidencial se confundem e acham que eu sou a favor do outro lado. Obviamente que, por não me conhecerem, devam pensar isso. São obrigados por força do pensamento que lhes governa a pensarem de esse jeito. Resulta que não.
Sobre a democracia
Eu sou é a favor da democracia que – parafraseando Winston Churchill – “É o pior dos sistema de governo, retirando todos os outros”
Winston Churchill foi um exímio defensor da liberdade e da democracia contra o nazismo. Desde a invasão da Polônia em 1939 e até que Estados Unidos pudesse entrar em guerra em final de 1941, foi o único bastião contra o avanço nazista.
Uma vez finalizada a guerra, foi ele quem cunhou o termo “Cortina de Ferro” para se referir à ameaça comunista. Ele usou esse termo por primeira vez em uma palestra que estava ministrando nos Estados Unidos da pós-guerra.
Então, mesmo não concordando que certos candidatos façam parte do pleito (por conta do passado com a justiça por parte de alguns e por conta do completo desinteresse no povo por parte de outros) não posso negar que o rito foi seguido e satisfeito. Que é necessário revisar esse rito, eu não nego. Os pesos e contrapesos da democracia devem ser revisados de tempos em tempos. Isso, me parece, é ponto pacífico.
Sobre alguns líderes ditos evangélicos
Então, sendo defensor intransigente da democracia, me resulta terrível ver como certos líderes ditos evangélicos não se atrevem a orientar de forma definitiva e clara a multidão que votou na parte rendida. Se deixam levar por boatos. Por guerras e rumores de guerra, como se fosse o fim.
Obvio que talvez esse não seja o seu caso, meu leitor. Assim como certamente não é o meu. Tomemos o caso de alguns pastores de renome do nosso país. Eles, nos últimos quatro anos, prestaram apoio político-partidário à opção rendida. Os vimos usando palavras e títulos que apenas eram adequados para o Senhor da Igreja em uma pessoa de carne e osso.
Em lugar de reprenderem e orientarem o seu rebanho a se afastarem dessa cilada, lhes disseram que se não apoiassem o candidato por eles escolhido, seriam banidos da congregação. E muitos foram. Essa conduta, não é condizente com os valores cristãos. Sendo que não é uma conduta que o nosso Senhor aprovaria, cabe a eles o único caminho conhecido: a confissão e o arrependimento. Isto é, a mudança de caminho de forma clara.
Mas, pedir a um desses que se arrependam, é como pedir ao abacateiro que produza bananas. Aliás, pensando em frutos e em árvores, nem pedindo a um abacateiro que dê abacates ele produzirá abacates. A produção tem mais a ver com a natureza do próprio pé do que com a vontade externa. Ou dito de outra forma: de nada adianta esperar outra coisa, apenas isso é o que conseguem produzir.
Então, meu leitor, não se engane pensando que eles fizeram isso de forma inadvertida. Não pense que o fizeram sem o correto concurso da vontade. Entraram na lama para empurrar o carrinho por considerarem que se tratava de uma ótima opção para os ideais deles. Ideais estes que têm se mostrado mais empobrecedores do ponto de vista intelectual e espiritual que aqueles conhecidos da própria idade média.
Como a igreja deve fazer para sair desse atoleiro no qual se meteu?
Talvez mostrando um pouco de humildade e firmeza.
Tomando apenas um exemplo, devemos dizer que a humildade é necessária para reconhecer que – ao concordarmos que a bala era a resposta correta para a violência civil – erramos. Assim, em plural. Mesmo que talvez você, leitor, nunca tenha concordado com isso pessoalmente, por conta de respondermos solidariamente como povo de Deus, devemos nos arrepender. Isto é, darmos meia volta. A velha liturgia que ainda resiste em igrejas como a Luterana e a Presbiteriana (por citarmos apenas duas) de confessar em público, em conjunto e usando a primeira pessoa do plural, se faz muito necessária.
Ao não condenarmos em 2018 o apoio político partidário compulsório que alguns líderes denominacionais impuseram, nos tornamos cúmplices. (Sim, já estou imaginando você dizer “eu não”, mas repare que se você chegou até aqui, é porque quer uma saída. Me acompanhe então). A coragem que nos faltou naquele ano (por conta do medo que nos governava) nos deixou sem qualquer movimento bondoso possível. Parece que é mais importante sermos fieis ao erro do que ao próprio Senhor.
Contudo, falemos da firmeza. A firmeza é necessária para saber expurgar os líderes que nos meteram nessa situação. Novamente, o uso do plural aqui é importante. Talvez nem à nossa denominação pertencem esses que se sujaram com isso, mas – por outro lado – pode ser que essa segmentação denominacional nos sirva apenas para acalmar nossa consciência. Então vamos ao plural similar ao que encontramos no Gênesis quando a trindade assumiu a responsabilidade de criar o Homem.
A firmeza, então, é muito necessária, haja vista o dano que se fez ao tecido social em geral e ao meio evangélico em particular. É necessária porque há um conceito gravissimamente errado de graça em que – como não nos custou nada – achamos que tem valor nenhum. É necessário então que a igreja experimente o Deus da justiça e do amor. Justiça ao afastar os líderes que levaram o nome “evangélico” a essa situação e amor em não lhes cortar a esses líderes o convívio nem a comunhão. Doutra forma se transformaria em uma caçada às bruxas e o remédio seria pior do que a doença. A ideia é a reconciliação, a cura. E isso não é possível se promovemos o ódio ou a revolta.
O caminho, mais uma vez, é estreito, mas a igreja sabe que esse é o caminho certo.
O descaminho da “bancada evangélica”
É muito difícil ela abandonar o poder uma vez que degustou do seu sabor. Mas é esse justamente o caminho a ser seguido para nunca mais voltar. Os católicos não têm bancada, os muçulmanos não têm bancada, os cultos afros não têm bancada. Por que é que os evangélicos têm bancada? É esse descaminho o que precisa ser abandonado pelo povo. Isto é, por cada um de nós. Há uma necessidade imperiosa de escolher o caminho do silêncio, já que o diálogo para o abandono disso é impossível. É muita ânsia de poder. Muito ódio pelo ser humano transvestido de cristianismo evangélico e por isso, são incapazes de abandonar essa canoa furada. Amam a canoa. Almejam a canoa. Fornicam com a canoa.
Eu não pretendo ser um sonhador, perseguidor de sonhos e caçador de vento. O pior que pode existir é uma utopia neste sentido. Sendo, então, bem realista, entendo ser impossível certa fatia da camada evangélica ser restaurada ou regenerada. Transgrediram de forma tão contundente contra o próprio ser humano que o melhor lhes seria se calarem e se abandonarem; se deixarem apagar como o pavio final de uma candela. Quem sabe no silêncio interior conseguem conceber de alguma forma misteriosa que a Igreja de Cristo não é o lugar adequado para esses devaneios.
Se você entrou nessa furada e ainda sente a voz do seu mestre, volte. Largue os porcos e as bolotas. Na casa do pai há paz e amor verdadeiro.
Se você não ouve mais ou se nunca ouviu, não demore: suje-se ainda mais, pois não há mais esperança.
Quem é injusto, faça injustiça ainda: e quem está sujo, suje-se ainda; e quem é justo, faça justiça ainda; e quem é santo, santifique-se ainda.
Me pediram para pensar sobre alguns parágrafos do livro “Pão para o caminho” do padre holandês Henri Nouwen.
Basicamente ele propõe a escrita não apenas como lugar para expressar o pensamento, mas também para buscar o pensamento correto. Não interessa se a escrita é acadêmica ou artística. A escrita tem esses méritos. É um lugar de encontro da identidade, mas precisa ser honesta.
Ele elenca três ideias sobre a escrita: 1) Escrever pode ser uma forma de salvar o seu dia 2) Escrever pode provocar a abertura de poços profundos e 3) Escrever é poder tornar sua vida disponível aos outros.
Evidentemente isso me levou a pensar na nossa relação como sociedade com a escrita e em particular com a comunicação veloz das “redes sociais eletrônicas” (coloco aqui “eletrônicas” para distingui-las das redes sociais que tem na biologia e no tempo-espaço sua manifestação última e podem ou não fazer uso de qualquer meio para se comunicarem ao passo que a “rede social eletrônica” visa apenas a relação à distância – mesmo que estejamos na mesma sala às vezes)
Então, lá vão minhas respostas às três ideias de Nouwen:
A sociedade dividia e cheia de ódios em que vivemos carece de uma boa leitura. Gostaria de dizer que tem sede, mas não seria verdade porque a esmagadora parte da nossa sociedade não mais sente falta de nada por estarem consumindo ódio reprocessado e amplificado pelas redes sociais.
Salvar o dia com a escrita é uma boa, mas Twitter não é uma opção. Porém, escrever se faz necessário não porque haja quem leia, mas por haver quem pensa. Se eu penso (existo) e e registro relembro da minha agonia existencial. Se isso ajuda alguém, bem-vindo seja o corolário.
Perfurar as camadas do pensar para chegar na agonia da vida é uma boa, mas Facebook não está ai para isso. Parece que nosso século tem medo do profundo. Ou talvez seja a conveniencia de alguns já que esse neo-circo da exposição da vida se junta com o neo-pão da pseudo reflexão da rede antes citada. Mas nada de profundidade. Nada que faça a pessoa pensar. Nada que nos faça pensar, chorar, sentir.
E finalmente, Instagram, com sua intenção de mostrar a vida íntima, não chega nem perto de mostrar os escuros rincones da nossa vivência. Esse exibicionismo cheio de malabarismos cênicos que alimenta um certo voyeurismo masoquista apenas aumenta o nível de desprezo, inveja e ódio. Por outro lado, escrever pode ser uma forma de se auto-revelar ao outro sem que seja essa a intenção última. Porém, se é honesto, o escritor vai encontrar talvez algum eco. Eco este que não está presente nos seguidores de plantão. Podem haver mudanças de comportamento, mas não de pensamento.
A escrita demorada, pensada, intimista pode, sim, fazer a diferença, mas apenas naqueles que tenham ainda um pouco de coragem por viver e não se contentem com o pântano raso das redes sociais
Recentemente estava numa igreja em que o assunto era o discipulado. É obvio que devemos voltar ao simples, mas não pelas razões erradas. Sua vida e/ou da sua congregação já é a de discipulado, você deve voltar ao básico. E se sua vida ou da sua congregação não é de discipulado, deve, então, voltar ao básico.
Numa época lotada de “seguidores” e “influencers” definir o discipulado como âmago do Reino de Deus se torna de vital importância. Nos últimos anos temos assistido ao inchaço de pessoas que se deixam influenciar por outras pessoas sem que por isso haja alguma forma de relacionamento mais profundo. Com isso, há uma escalada no “cancelamento” que nada mais é do que – a partir de um fato isolado, como pode ser um recorte em um vídeo ou áudio feito público, com, ou sem autorização do interessado – a pessoa é jogada na fogueira da opinião pública para ser escarnecida. O número de seguidores parece ser a justa medida de aprovação de uma ideia ou de uma visão de mundo, ou – pior – a vida íntima alheia.
Qual é a nossa resposta? Devemos inventar alguma coisa nova?
O discipulado é a resposta adequada e universal a esse veneno. No discipulado, você compromete sua vida com outra vida para seguirem juntos os ensinamentos e condutas do mestre, Jesus.
Não se trata de uma corrente de seguidores. Alguém poderia dizer que o importante é seguir a alguém, que segue alguém, que segue alguém….. que segue Jesus. Mas a proposta que surge da Bíblia é a de seguirmos junto Jesus em uma relação direta com o mestre.
A sedução dos números
O número, a multidão, a manada, não é o método de Deus na escritura. Se observarmos com cuidado, desde o Antigo Testamento, vemos que ele escolhe uma pessoa e sua família; forma um povo; trabalha com uma tribo em particular; afunila até chegarmos na figura de Jesus.
Outro exemplo válido é o dos cinco mil que foram alimentados: apenas um grupo pequeno eram seus discípulos. Mesmo entre os discípulos, apenas 12 são chamados de apóstolos. Enfim, exemplos não faltam.
Só com isso, já deveríamos olhar de forma estranha os modelos que incentivam o acumulo de pessoas como se fossem coisas. Apenas “seguidores” de Instagram ou qualquer outra rede social das que estão de moda não devem ser o modelo de “mudança do mundo”. Mas você pode me perguntar: Não somos chamados a levar o evangelho ao mundo?Não devemos usar todos os meios que estão ao nosso alcance? Minha resposta é sim para as duas, mas meu alerta, é que temos desistido ao canto da sereia e substituído a pregação, e alcance a meros “seguidores”e é aí onde mora o perigo.
Nessas redes sociais, o verbo “incentivar” pode ser facilmente por “instigar” e isso vai exatamente na contramão do que Jesus parece ter querido construir durante seu ministério terreno. Imagino, que você e eu podemos coincidir que se João o Batista disse que “O Reino de Deus é chegado” (Mt 3:2) e ele estava se referindo necessariamente à vinda de Jesus o Cristo e se depois o próprio Jesus repete a frase (Mt 4:17), logo, o melhor modelo do Reino é a própria vida de Jesus e não algum outro tipo de devaneio.
“Sede imitadores de mim”
Usamos com frequência e com razão o texto de 1Cor.11:1 para falarmos de discipulados: “Sede meus imitadores, como também eu de Cristo.” Precisamos expandir o conceito para sentirmos completamente bem e seguros sobre o uso desse texto para o discipulado.
Como o propósito desta postagem não é se adentrar na tarefa hermenêutica ou exegética, basta apenas umas poucas pinceladas para o leitor interessado possa se aprofundar posteriormente. Se você não estiver interessado nessa questão hermenêutica/exegética agora, pode pular os próximos cinco parágrafos lembrando, porém, que o que se busca é justamente que você pense e elabore suas ideias.
Se ele fala do discipulado e se em 11:2 Paulo começa com outro assunto, ele – necessariamente – deve ter uma interpretação adequada nesse contexto de transição entre o que vinha sendo dito no capítulo 10 e no que vai ser colocado no restante do 11.
De imediato vemos que o assunto, não parece ser o discipulado como tal o se costuma definir: alguém ensina e outro aprende. Se bem essa questão pedagógica está embutida no conceito de discipulado, não esgota o mesmo. Discipulado, sim, tem a ver com ensino, mas tem mais a ver com imitação do andar. Dai que usemos a palavra “seguidor” como sinônimo de “discípulo” enquanto nos distanciamos do conceito do “seguidor de manada” como nas redes sociais.
O que Paulo nos coloca sobre este assunto da ceia (10:16-11:34 que por sua vez está inserido em um assunto maior que é a analogia do Êxodo judeu e do Êxodo da igreja 10:1-11:34) é que devemos considerar as crenças e emoções de nosso companheiro de caminhada. (O contexto maior, do culto, o deixarei de lado apenas para mantermos o foco)
Vemos isso intensamente no exemplo que ele coloca (10:23-1:33) sobre a tensão entre a liberdade pessoal, o sacrificado aos ídolos e a consciência alheia. É nesse contexto que Paulo coloca a frase tão mencionada de “Sede meus imitadores, como também eu de Cristo“
Ouço muitas pessoas falando da liberdade cristã como se fosse sinônimo de libertinagem ou anarquia. Incrivelmente o conceito de liberdade que Paulo propõe tem a ver não com o abandono dos limites (libertinagem) nem com o abandono das leis (anarquia). Tem a ver com o cuidado da consciência alheia não para nos tornarmos mais fracos em conjuntos, mas para que haja mais amor do verdadeiro.
“Suplico-lhes que sejam meus imitadores”
Se já pegou a ideia sobre 1Cor 11:1, então é válido dar uma olhada rápida em 1Cor 4:16 “Portanto, suplico-lhes que sejam meus imitadores.” Essa pérola, Paulo a coloca após ter demonstrado que de entre muitos mestres, eles tinham apenas um tutor. Obvio que alguém poderia querer usar para dizer que Paulo constituía alguma espécie de “cobertura” espiritual e eles estavam fora. Como este artigo não é apologético, não merece maior atenção do que a seguinte: não se trata disso, trata-se de pregadores com um evangelho estranho terem entrado na congregação e por isso Paulo estava socorrendo os irmãos.
Como Paulo socorria os irmãos? Como ele fazia para que as pessoas se voltassem para o que de fato era o cerne do evangelho?
Bem, uma das formas era escrevendo, como de fato estava fazendo. Mas outra das formas era enviando pessoas que estavam convivendo com ele e que podiam lembrar para os coríntios, como era a “maneira de viver em Cristo Jesus” que Paulo seguia. Vemos isso de forma lindíssima em 1 Cor 4:17ss
Pessoas, vivendo como pessoas, cominicandosse com pessoas, lembrando como as pessoas novas em Cristo se comportam. É isso.
A arrogância tinha tomado conta da igreja (4:18-20) e Paulo faz o básico: relembra eles como é o viver cristão. Não se trata daquilo que mostramos aos domingos no templo. Na realidade não tem nada a ver com isso. O viver cristão tem a ver com tudo o que acontece fora do templo, tanto em lugares públicos como no espaço privado e particular.
Interessante que o efeito da explosão das redes sociais, não é o amparo do próximo, mas sim a arrogância: A petulante imposição da imbecilidade individual sobre qualquer proposta de amor ao próximo.
Voltemos ao básico. Voltemos a viver de forma discipular. Antes de sermos abandonados e outros tomem nosso lugar.