Evangelho de João
Jesus e a Liberdade
João 8:1-9:41
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O que é a liberdade?
Para muitos tem a ver com poder fazer o que bem entender. Para outros é poder se esconder tanto ao ponto que não pode ser descoberto o dano feito ou planejado. Ou seja, a liberdade é um bem que se tem ou se compra e que cada vez fica mais caro.
Gostemos ou não, liberdade e caráter são duas faces de uma mesma moeda: faltando uma delas a outra perde valor.
Via de regra, no meio evangélico há os que gostam de misturar o conceito de liberdade com o de liberalidade e libertinagem ao passo que há os que – por falta de liberdade – gostam de vigiar a liberdade alheia.
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O texto
Somos cientes de que o capítulo 8 de joão (ou seja os versículos que vão do 7:53 ao 8:11) não fazem parte do texto original, mas entendemos que isso não lhe resta valor até porque o que ali está contido está em consonância com o restante do evangelho, em particular com o de João, se bem que o relato tem mais jeitão de sinótico do que joanino.
Dito isto, precisamos observar a maravilha destas duas passagens. Há duas pessoas que haviam perdido sua liberdade. Uma por conta do pecado e outra…. bom, oras, é claro que alguém havia pecado, ninguém nasce cego porque sim. Bom, ao menos era o que a sociedade da época pensava e por isso tinha relegado este cego de nascença ao abandono e miséria social e espiritual.
Há aqui duas liberdades: 1) A liberdade de um pecado em particular 2) A liberdade dos efeitos do Pecado em geral.
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As pessoas sendo libertadas
A mulher cometia com regularidade o adultério. Tinha-se entregado a este prazer como se um vício fosse. As primeiras vezes ninguém sabia. Depois ficou conhecida, marcada, estigmatizada e não deu mais bola ao seu próprio destino. Este pecado, no início prazeroso e motivante, a havia enjaulado. Parecia livre mas não era. Prestes a ser morta, Jesus a liberta.
Já o jovem nascido cego era vítima não de um pecado em particular. Penso eu que os editores posteriores do evangelho se viram meio como que obrigados a incluir o pedaço do capítulo 8 da mulher adúltera porque a imagem de um ser nascido em trevas e que essas trevas fossem consideradas um fruto do pecado (particular mas desconhecido no caso) pareceria repulsivo aos primeiros leitores não judeus. A inclusão da mulher adultera sendo perdoada antes do cego, por mais repulsiva que a atitude pareça à sociedade do momento (judia, grega e romana) era mais palatável do que a retorcida visão de um Deus injusto e carrasco que se comprazia em descontar nos filhos os erros dos pais.
Este jovem, muito inteligente por sinal, era um segregado social por conta de uma posição teológica correta mas parcial. Dito em termos mais longos: é verdade que toda doença e a própria morte é resultado do Pecado na vida do ser humano; mas não é certo pensar que cada doença e cada morte é fruto de um pecado específico da pessoa ou dos seus pais.
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O Pecado e os pecados
Fazemos então uma distinção entre aquilo que é um pecado pessoal e o que é o Pecado como força que opera em toda a criação de forma invasiva.
Esta distinção a mostramos neste escrito utilizando a letra ‘P’ – em maiúscula – ao inicio da palavra Pecado para nos referirmos a esse poder que permeia sistemicamente toda a criação de Deus em maior ou menor medida, ao passo que utilizamos a letra ‘p’ – em minusculas – para nos referir às decisões particulares e pessoais que diferem da vontade de Deus.
Então, se bem no primeiro exemplo há uma liberação de um pecado específico (e com isso uma apertura para a vida) no segundo exemplo há uma liberação da condenação improcedente que os lideres judeus mantinham sobre seu irmão. Em qualquer dos dois casos quem perdia a liberdade era a aberração religiosa à que os dois casos estavam sujeitos. Não é por acaso que os dois blocos são antepostos a diálogos e discursos que tem a ver com liberdade, cegueira, etc.
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O discurso de Jesus
Não é correto dizer que há um único discurso nessas duas passagens. Há vários e separados no tempo. Todavia, o discurso ou o grande assunto é o mesmo: Jesus é a Luz do Mundo. Encontramos essa afirmação logo depois do relato da mulher adultera (8:12) e no encontro com o cego de nascença (9:5).
Então, não é errado considerar tudo o que Jesus fala a respeito de si mesmo um único pronunciamento sobre o fato de que Ele é a Luz do Mundo. As outras alocuções são colocadas justamente para reafirmar este fato. No capítulo oito vemos que ele está em pé de igualdade com o criador (8:27) e que é maior que Abraão (8:53-59). Já no capítulo nove observamos que ele se coloca como quem traz a abertura dos olhos espirituais ou aquele que faz o ser humano enxergar (9:39)
Todavia, por trás disso tudo está o velho discurso filosófico da descoberta da verdade. Antes de ser tido por blasfemo (9:59 como consequência ao “EU SOU” que ecoa do 8:27 e do Gênesis) a tentativa é de tratá-lo como mentiroso. Observe por exemplo os versículos 8:13; 40; 44b-46 e 55.
É – em síntese – o grande dilema humano: a descoberta da verdade como coisa objetiva e uma vez descoberta, viver por ela. Os grupos que se antepõem a Jesus, os escribas e os fariseus, levavam a serio a vida espiritual deles. Homem nenhum em sã consciência confia sua vida em uma coisa que sabe ser errada. Ele precisa estar plenamente convicto que aquilo que ele acredita é o correto, ou seja, a verdade. De outra forma, ele passaria a tentar descobrir uma outra verdade, seja por humildade, por desconhecimento, ou por descobrir que aquilo que ele pratica não é a verdade.
Jesus se planta como a luz e – por conseguinte – o discurso dele ou é verdade ou mentira. Não há como ser morno ao respeito disso. Estamos em uma época em que as coisas são relativas e antes desta época as coisas já eram relativas mas não levavam esse nome por não ter Einsten elaborado uma teoria com esse nome. Levamos então essa relatividade subjetiva a campos em que não deveria ser levada. Tanto levamos a sério nossa própria perspectiva das coisas que nos esquecemos que somos uma brisa neste mundo e logo logo passamos.
Nesse ponto então, nossa sociedade pouco se distingue dos fariseus e os escribas. Temos plena convicção das nossas próprias verdades e, como a morte única seguida da ressurreição não podem ser comprovadas cientificamente, acreditamos em qualquer coisa contraria a estas porque – ao final das contas – se não pode ser provado, achamos que é mentira.
É fácil julgar os escribas e fariseus. Difícil é encarar que somos tão cegos e guias de cegos quanto eles. Mas cegos do que? O que é que os fariseus, escribas e pessoas comuns não enxergavam? O que é que a sociedade religiosa e o homem de a pé de hoje não conseguem ver?
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Falsas Liberdades e Falsas Prisões
Um outro elo que vemos entre os dois relatos é o da ideia de que um ser humano é livre na medida que peca ao passo que outro que se preserva, está aprisionado. A mulher adultera levada uma vida que por muitos poderia ser invejada. Já a cegueira do homem, não era invejada por ninguém. Nada prendia à mulher, tudo era uma limitação para o cego.
Por outro lado, da mulher nada mais sabemos. Ela simplesmente some após as palavras de Jesus “Vá embora e não peques mais” Já o cego de nascença se mostrou quase que arrogante quando foi interrogado pelos líderes judeus e humilde ao se ajoelhar perante Jesus. Estava o cego na sua aparente prisão aguardando pelo seu libertador? Poderia a mulher em algum momento da sua aparente liberdade ter tido tempo para pensar em algum libertador?
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Falsa visão
Dizem que um bom mestre não é aquele que da as respostas mas sim o que é capaz de provocar mais perguntas. Não é à toa que chamamos Jesus de Mestre. Numa das passagens mais lindas e enigmáticas da escritura ele diz assim “Se fôsseis cegos, não teríeis pecado; mas como agora dizeis: Vemos; por isso o vosso pecado permanece”
Os fariseus que estavam acompanhando Jesus, se sentem atingidos pela colocação “e os que vêm sejam cegos” pois eles achavam que viam e que podiam conduzir os outros. Todavia, externam a opção contraria para que Jesus os inclua na que eles queriam estar. Ou seja, não queriam estar entre aqueles que viam porque segundo as palavras de Jesus se tornariam cegos por conta do seu juízo.
É claro que eles achavam de si mesmos que eram guias de cegos, luz dos que estavam em trevas. Talvez o camuflavam se fazendo de humildes, mas, no fundo, no fundo, eles achavam que eram os melhores. A sociedade seria pior sem eles. As pessoas se perderiam sem a luz deles.
Jesus conhecia o que havia no coração deles (2:24-25) e por essa razão não entra no joguinho deles e sintetiza todo o problema com a mesma firmeza que os tinha tratado de mentirosos em versículos anteriores: Se vocês fossem cegos, não seriam culpados de pecado; mas agora que dizem que podem ver, a culpa de vocês permanece. Simplesmente fascinante.
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Prisão, cegueira, liberdade
A verdadeira prisão do homem é o Pecado. A cegueira é uma consequência do próprio Pecado que se manifesta em aparente liberdade e saber das coisas divinas. Esse sistema de duas partes, torna o homem preso numa ilusão de liberdade que nem ele mesmo consegue enxergar.
Torna-se, então, necessário um libertador; alguém que puxe o ser humano (cada indivíduo, na realidade) desse calabouço em que ele vive. Mas como?
Se o indivíduo diz que não enxerga, é mentiroso. Se diz que vê o pecado permanece. É o equivalente teológico de se ficar o bicho come, se correr o bicho pega.
Jesus dá a solução, mas não é um remédio agradável para quem vê de fora. Trata-se de uma rendição incondicional. Diz João 8:31 “Se permanecerem firmes, … serão meus discípulos” e acrescenta “e conhecerão a verdade, e a verdade os libertará” Há um processo ali que inicia com uma mudança de cabeça ao crer em Jesus (8:30) mas a liberdade só é alcançada por quem permanece firme na palavra passando pelo estágio de ser discípulo.
O caminho de Cristo não se trata de um caminho de autoconhecimento. Nem sequer é o caminho de descoberta de valores, verdades ou práticas ocultas para os não iniciados. Tampouco é um caminho comunitário em que o objetivo da liberdade se consegue em conjunto.
O caminho de Cristo tem a ver com rendição incondicional e morte espiritual.
Quer ser livre? Renda-se.