Sobre as relações viscerais do Exercito Brasileiro e a formação da república; de como isso o impede de subverter a ordem na atual conjuntura; e de qual deva ser sua conduta como cristão na situação que vivemos nesta transição democrática.
Em 15 de novembro de 1889, a república foi proclamada. Nela se misturam quatro situações de grande magnitude que tinham se acumulado ao longo dos anos: militares insatisfeitos com o soldo, a carreira e a proibição de manifestar suas posições políticas; civis desgostosos com a monarquia; descontentamento entre as elites emergentes por se verem sub-representados na vida política da monarquia; grupos que desejavam uma maior participação pelo voto; e claro, a questão abolicionista. Essa é, em resumo, a receita da proclamação da república.
O Manifesto Republicano
Não por um acaso o movimento republicano começa em 1870 logo depois da Guerra do Paraguai, dando início a uma separação entre os interesses da população e a capacidade da monarquia de atender aos mesmos. Esse movimento é formalizado pelo Manifesto Republicano que em suas linhas finais diz assim:
Somos da América e queremos ser americanos. A nossa forma de governo é, em sua essência e em sua prática, antinômica e hostil ao direito e aos interesses dos Estados americanos. A permanência dessa forma tem de ser forçosamente, além da origem de opressão no interior, a fonte perpétua da hostilidade e das guerras com os povos que nos rodeiam. Perante a Europa passamos por ser uma democracia monárquica que não inspira simpatia nem provoca adesão. Perante a América passamos por ser uma democracia monarquizada, aonde o instinto e a força do povo não podem preponderar ante o arbítrio e a onipotência do soberano. Em tais condições pode o Brasil considerar-se um país isolado, não só no seio da América, mas no seio do mundo. O nosso esforço dirige-se a suprimir este estado de coisas, pondo-nos em contato fraternal com todos os povos, e em solidariedade democrática com o continente de que fazemos parte.
O Exército
Podemos afirmar, sem medo a errar, que na nascente desse torrentoso rio chamado república encontra-se o desejo visceral de fazer parte dos povos americanos e não apenas uma extensão de um reino além do oceano que não mais atendia (se é que alguma vez o fez) os interesses do ser brasileiro.
A profissionalização da corporação militar está diretamente relacionada com esse desassossego dos militares com a situação. Entendiam que lhes faltava o reconhecimento devido pelos serviços prestados na guerra do Paraguai. Por outro lado, eles se entendiam como os tutores do Estado brasileiro. Sob essa ótica, nada mais obvio do que almejar que suas opiniões politicas pudessem ser ouvidos. Na monarquia, eles eram proibidos de se manifestarem tanto dentro da corporação como em veículos públicos.
Insuflados pelo positivismo (que acreditava no progresso continuo da humanidade) eles entendiam que esse processo deveria ser conduzido por um governante e que se necessário for, este poderia se afastar do desejo da população. Traduzido: um governo republicano ditatorial.
Nada mais natural para uma instituição fortemente alicerçada em uma cadeia de poder. Sem essa cadeia, não é possível coordenar toda a tropa na hora da crise. É aquela mistura estranha de ideias em que uma instituição dedicada a conservar a ordem deseja impor sua visão de ordem.
Seja como for, é inegável que o Exército Brasileiro em toda sua extensão fez parte do movimento republicano, negociando aqui e acolá o restante da ideia, como corresponde a qualquer democracia.
Além disso, e como consequência da influência do positivismo na tropa, a instituição era a favor da laicidade do estado em contraposição a um estado católico.
Em resumo, a formação da república muito deve ao esforço ciente do Exército.
Das outras forças
Sem a presença do exército, as outras forças dificilmente poderiam pensar em reverter a situação a curto prazo. Desde o manifesto republicano até o desfecho vão quase 20 anos. Sem a participação (o descontento) do exército dificilmente a população poderia se levantar.
As capitanias e posteriores províncias estavam constituídas de tal forma que era virtualmente impossível que se levantassem com força e coordenação suficiente como para subverter a ordem vigente.
Era necessário que essas forças se combinassem de uma tal forma para que a monarquia fosse inviável, que sem o exército isso seria improvável. Ele era, em certo sentido, o fator de força comum a todos os outros movimentos e com a capilaridade suficiente como para poder catalisar isso tudo.
Porém, mesmo assim, leva quase 20 anos em banho-maria até a formalização de um novo projeto de nação.
Que não se enganem os observadores ocasionais: o Exército Brasileiro tem um compromisso institucional com a nação brasileira e seu projeto republicano.
O golpe de 1964
Muito se discute se o que aconteceu em 1964 foi um golpe ou uma intervenção militar. Há ainda os que dizem que se tratou de uma resposta ao clamor popular e que por isso foi um movimento legítimo.
Uma intervenção militar interna, acontece quando os poderes institucionais convocam as forças armadas a defender a ordem pública, a paz social, a estabilidade institucional ou uma mistura dessas três.
Não foi isso o que aconteceu em 1964. Não havendo nenhum pedido formal (por parte do Congresso Nacional) que validasse qualquer uma das marchas das duas frentes militares que se mobilizaram em 31 de março, pode-se concluir que não se tratou de uma “intervenção militar” nos moldes da constituição de 1946.
Foi uma derrocada do poder escolhido democraticamente pelo uso da força sob o ponto de vista de uma parte da população. Ou, como definido por Gabriel Naudé: um golpe de estado. Parte funcional do estado se levantando contra outra parte do próprio estado.
A situação daqueles anos
As ações dos generais Costa e Silva no Rio de Janeiro e Olímio Mourão Filho em Minas Gerais são compreendidas em virtude do estado de coisas que vigoravam na primeira metade dos anos 1960.
Jango com suas “reformas de base” conquistava a desagradável posição de ser indesejado pela classe média urbana, pelas elites, pela igreja, pelo exército e pela imprensa. Era visto como conivente com o comunismo, a desordem social e a desarticulação da ordem na hierarquia militar.
Além disso, as relações com os Estados Unidos (hábil articulador de vários golpes de estado ao longo da America Latina e sua infame “Escola das Américas”) estavam deteriorando-se com as consequências inevitáveis no mercado.
Parte do povo se manifestava a favor de uma intervenção militar com a “Marcha da família com Deus pela liberdade”, por exemplo. O sentimento que havia nesse movimento era o do medo a um possível golpe militar comunista. Em 18 de março de 1964 o manifesto de conclamação foi publicado pela Folha de São Paulo que era assinado por 34 entidades, vários grupos anticomunistas e grupos cristãos (católicos e protestantes).
Se calcula que 800 mil pessoas compareceram ao ato em 18 de março na praça da Sé em São Paulo.
Esse movimento era uma resposta ao comício convocado pelo presidente em 13 de março que – buscando alianças com o Partido Comunista do Brasil, os mais radicais do PTB e os movimento sindical rural e urbano para viabilizar suas reformas – e ao que compareceram 350 mil pessoas.
Ejército Guerrillero del Pueblo. Salta, Argentina
A revolução em Cuba já estava bem arredondada quando Ernesto Che Guevara envia um grupo guerrilheiro (treinado extensamente em Cuba) ao seu pais natal: Argentina. Mais especificamente na província de Salta. Era o “Ejercito Guerillero del Pueblo” cuja função era instaurar a revolução no pais mais ao sul do nosso continente, formando assim uma pinça norte-sul.
Tão revoltoso era el Che (organizando e promovendo a guerrilha em America Latina) que muitos partidos comunistas de América Latina não aprovavam sua estratégia de luta armada generalizada que ele propunha.
Com Fidel em Cuba, o argentino Ernesto Che Guevara promovendo a “guerilla” em Salta (Argentina) durante 1963 e sabendo que o propósito comunista era elevar o proletariado por qualquer meio (o fim justifica os meios) nada mais fácil que compreender do que o medo beirando o pavor que se respirava na sociedade brasileira de 1964.
O sentir era de que em lugar do Hino Nacional Brasileiro, pronto deveríamos cantar o hino da Internacional Socialista, tal a visceralidade do movimento comunista internacional na época.
Como disse, dá para entender a Costa e Silva e a Olímio Mourão Filho, mas não dá para justifica-los. O que se deu posteriormente com o cerceamento de vários direitos básicos e o assoreamento das instituições legais em virtude da batalha contra os insurgentes é simplesmente uma mancha (que muitos consideram necessária) na história das Forças Armadas em geral e do Exército Brasileiro em particular.
E nós?
Estamos vivendo em um pais ideológicamente dividido. Essa divisão permeia a sociedade sem observar limites, sejam eles quais forem.
Essa mesma divisão é observada ao longo do continente americano, mas também na Europa (uma extrema-direita ascendente já governa Itália), na ásia (lembram do assassinato do ex primeiro-ministro japonês em julho de 2022) e na África (Nigéria, Quênia e Angola que são potencias regionais tiveram eleições apertadas)
É muito difícil falar da situação de nosso pais já que há muitas emoções envolvidas e onde entra a emoção, a razão pula pela janela. Então, numa tentativa de metáfora, olhemos para fora.
O pior exemplo vem dos Estados Unidos da mão do ex presidente Donald Trump na sua cruzada particular de dilapidação das instituições do grande pais do norte. A violência (arma do comunismo dos anos 1960) é a moeda comum e corrente destes neo-conservadores. Se coloca em dúvida o método eleitoral (que por lá ainda é impresso)
A partir dessa situação vergonhosa podemos olhar melhor para a nossa e encarar os descaminhos do ex deputado Roberto Jefferson e sua recepção a bala da polícia federal recentemente. Tal parece que – para ele – as instituições do nosso pais não funcionam e por isso pode atirar e jogar granadas nos representantes do estado.
Ele, assim como outras figuras públicas ou como um pai com seus filhos, educa pelo exemplo muitíssimo mais do que pelas palavras. É normal que se espere dos líderes uma liderança e é bom que se espere uma boa liderança.
Mesmo que se chegue à situação em que metade mais um da população brasileira gritasse por uma intervenção militar, ela não acontecerá. O Exército Brasileiro já se sujou as mãos uma vez e não o fará desta, até porque as condições não se dão.
Não corremos risco de uma invasão comunista até porque os próprios comunistas pensantes já optaram por outros caminhos. Todavia, como em todo crime, resta saber porque algumas pessoas assustam outros com este medo que era bem fundamentado em 1964, mas que carece de alicerce em 2022.
Não é a direita ou a esquerda que devem ser evitadas, é o pânico. O pânico bloqueia a capacidade de pensarmos e de agirmos. Nos incapacita de forma profunda e instantânea. E para piorar, é contagioso e se transmite pela fala (seja esta impressa, de corpo presente ou distante). NOTE: Não disse que não é para evitar o comunismo. Este, assim como o nazismo, devem ser evitados e combatidos. Todavia, numa simplificação a-la Hitler, se nomeia comunismo a tudo aquilo que cheira não-conservador.
O que deve ser evitado é o conluio com o poder público. A noiva (isto é, a Igreja) deve preservar-se pura para o seu noivo (isto é, Cristo). De nada serve dizer que confiamos em Deus, mas morremos de pavor de supostos poderes terrenos. De nada serve dizer que ele é nossa esperança se esquecemos da nossa história de salvação e corremos rapidamente aos quarteis para achar oportuno socorro no tempo da angústia. De nada serve dizer que amamos nosso próximo se o odiamos visceralmente por ele não pensar como nós. De nada serve dizer que confiamos em nosso Senhor para o futuro se nem consideramos a história, mas sim os contos que nos chegam pelo WhatsApp.
Há muito para ser reconstruído (ou redimido se assim o preferir). O Reino já foi instaurado. É nossa responsabilidade agir de acordo com os princípios desse Reino com o qual nem a extrema esquerda, nem a extrema direita, nem o extremo liberal têm alguma coisa a ver.
Como cristãos, voltemos ao básico: Jesus é Rei, o ser humano é reflexo dele e como tal precisa ser respeitado; cremos na liberdade de culto, de consciência e de credo; cremos na laicidade do estado; cremos na separação de Igreja/Estado.
O Reino de Deus está no mundo, mas não pertence ao mundo. Ou dito de outra forma: não tem filiação política.
Como nação brasileira: voltemos a querer ser apenas brasileiros: sul-americanos plenamente envolvidos com nossos irmãos continentais em sintonia com o Manifesto Republicano de 1889. Muitos países de America Latina carecem de um bom exemplo republicano.