Amados, achei por bem escrever-vos, não com o intuito de combater algum ponto de vista ou mesmo me opor a alguma ideia, porém com a proposta de esclarecer meu ponto de vista e assim tentar contribuir para um diálogo consistente.
O caminho que algumas teologias têm trilhado na impulsão da cosmovisão iluminista resultou, não de forma casual, na construção de uma cristologia um tanto desfocada, ao que me parece, de uma consciência bíblica mais centrada. No afã de defender a pessoa e obra de Jesus diante dos ataques ateístas, sem, contudo, abrir mão do ferramental racionalista, criou-se uma imagem de um Cristo comparável aos grandes líderes mundiais. Com isso procurava-se exaltar a pessoa do Filho de Deus, mostrando-o como um líder exemplar e perfeito, e assim equiparando o cristianismo às “melhores” e “mais nobres religiões” do Planeta.
Jesus assume um lugar ao lado dos grandes mestres que a história já registrou. Sua missão, com isso torna-se, segundo os valores éticos mais importantes para a humanidade, absolutamente relevante. Os problemas sociais, que se espalham e descem amargos pela garganta, principalmente dos menos favorecidos, faz com que se levantem clamores dos mais justificados por justiça social, ética e dignidade pública.
Neste meio em que se proliferam as injustiças, qualquer líder que queira ser bem visto e ter relevância cultural deve, sem sombra de dúvidas, ser projetado como uma voz que ressoa contra as paredes da indiferença e do massacre social. Com um olhar nesta demanda ética e humanitária, num ambiente de escassez de escrúpulos, surge cada vez mais a importância de estabelecimento de ícones da sociedade que respondam às barbáries e mazelas da “polis”.
Qualquer líder que seja respeitado ou tenha impacto relevante no meio em que vive, precisa, segundo a própria norma social, trilhar o caminho da ética e da ação humanitária e, portanto, se interpor ao mecanismo maquiavélico em que a sociedade está mergulhada.
Por isso, líderes como Mahatma Gandhi, Madre Teresa de Calcutá, Martin Luther King entre outros são levantados como ícones e exemplos quase perfeitos daquilo que faz a diferença no mundo dos viventes. Seguir o exemplo deles ou ser colocado no páreo com eles é o que se exige como qualidades mínimas para quem seja candidato ao respeito e admiração mundial.
A partir desta cosmovisão, imbuída desta chama, a proposta de um Jesus humanitário, um líder que vem para transformar o meio social, reverter os processos políticos dementes e estabelecer um reino justo sobre a terra, é absolutamente tentadora. Fazer de Jesus um grande líder que constrói uma sociedade justa é mais do que tentador, pois o coloca na mesma via dos grandes ícones sociais e faz de muitos deles seus seguidores. Isso é quase tão perfeito que os próprios discípulos de Jesus adotaram prontamente esta visão. Clamores como “quando restaurarás o Reino a Israel?”, “no teu reino queremos estar em tua direita e esquerda”, mostram claramente que eles assim entenderam Jesus e esperaram que ele fizesse.
Não era pra menos, pois se hoje falamos em opressão social, qual não seria a mesma na época em que os romanos, desumanamente, exploravam e “sugavam até a última gota de sangue” de seus escravos – dentre eles, o povo de Israel?
Qual não seria a expectativa e a sede dos discípulos por justiça social, pelo estabelecimento de um reino justo, de uma política humanitária, de direitos iguais e de punição aos corruptos e corruptores? Nesta ânsia por harmonia social, qualquer líder que se prestasse teria que advogar as causas sociais. Tempos semelhantes aos nossos, guardadas as devidas proporções!
Nessa chave hermenêutica, os discípulos criaram uma imagem política de Jesus que ele jamais teve. Esperaram ansiosamente pela justiça e por um reino terreno justo que jamais veio. Quando começaram a perceber que Jesus iria morrer, não se conformaram. O final da vida terrena de Jesus mostra as desilusões dos discípulos e o sentimento de fracasso. Mal sabiam eles que ainda sofreriam por tantos anos nas mãos dos romanos, e que suas expectativas de justiça social jamais seriam satisfeitas.
Talvez, o que os discípulos não entendiam é que o problema humano nunca foi social. O problema humano é existencial. O social é apenas uma consequência do existencial.
Talvez seja aí que esteja a grande dificuldade com as teologias que apresentam um Cristo ao lado dos grandes ícones sociais. Propõem um evangelho das causas sociais, que busca igualdade, que cuida do pobre, que alcança o necessitado, que alimenta o faminto. Com isso fazem da proposta de Jesus a mesma que a dos grandes líderes sociais.
Assim não percebem que o ideal de Cristo jamais trilhou estes caminhos. É claro que existem inúmeros textos bíblicos que chamam o ser humano para uma justiça social. Mas esse não é, e nunca foi o foco. A advertência por uma ajuda humanitária é uma espetada no coração do homem pecador para mostrar-lhe seu principal problema – a impossibilidade de amar realmente o ser humano.
Quando Jesus diz ao jovem rico para vender tudo que tinha e dar aos pobres, parece-me mais uma tentativa de mostrar-lhe onde estava seu tesouro. Aliás Jesus nunca propôs uma revolução contra Roma, nunca instigou uma ação política diferente no senado e nunca deu esperanças aos discípulos de que se eles o seguissem, o mundo poderia ser melhor.
A proposta de Jesus não era social. A proposta de Jesus era existencial. O homem está longe de Deus. Isto significa – o homem está no inferno (existencial) e precisa de se aproximar de Deus, voltar a ter vida. Como resultado disso, ele se tornará alguém melhor para sua sociedade em todos os aspectos em que esteja interagindo com ela.
A diferença entre Jesus e os grandes líderes sociais é fundamental e crucial. Os ícones da sociedade propuseram sempre uma mudança social, Jesus propôs uma mudança existencial. Os líderes tentaram consertar a sociedade, Jesus se interpôs como o transformador pessoal. “É necessário nascer de movo” disse ele a um bom cidadão.
O alvo do evangelho não é transformar as propostas políticas, mas sim as pessoas, ainda que isso leve à transformação de políticas a partir de pessoas transformadas. Quando se prega um evangelho social, perde-se a essência do Evangelho. Pode-se ter uma igualdade social sem pessoas transformadas, mas não se pode ter pessoas transformadas que sejam indiferentes ao mundo social. Porém, começar pelo discurso social é começar pela prática moral e não pela transformação pessoal interior.
Podemos ser seres transformados e vivermos plenamente e totalmente num mundo absolutamente injusto e numa sociedade totalmente deturpada com uma política corrupta, e ainda assim o reino estará em nós. A mensagem de Jesus não falhou, ainda que nunca na história tenhamos presenciado uma igualdade e justiça social, pois o Evangelho de Jesus não teve essa meta. Se ele tivesse essa meta, hoje diríamos que falhou, pois nunca isso aconteceu.
Então quando tiramos o foco do Evangelho, que é libertação existencial das vidas, e o colocamos numa justiça social, invertemos o processo e deixamos o importante pelo secundário.
Jesus nunca foi um líder como o esperado pelo mundo social, pois sua busca era outra. Por isso talvez ele não foi amado como Madre Teresa de Calcutá, Mahatma Gandhi ou Matin Luther King. Embora alguns tenham morrido por seus ideais, Jesus não morreu por seus ideais. Jesus morreu para substituir o pecador na cruz, e assim dar-lhe vida (que não significa necessariamente justiça social, aliás muitos dos que tiveram a vida de Jesus jamais experimentaram a justiça social sobre si mesmos).
Que Evangelho acredito?
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Um Evangelho que muda o ser humano existencial e radicalmente. Como? Tirando-o das trevas e colocando-o na luz. Tirando-o do pecado e colocando-o no perdão. Mudando sua cosmovisão. Isso levará o ser humano a seu justo socialmente, entre outras coisas, mas o contrário não é verdadeiro.
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Um Evangelho que me mostre minha miséria existencial e meu afastamento de Deus e me dê esperanças de estar com Ele, apesar de quem sou.
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Um Evangelho que me capacite a viver abundantemente, mesmo que o meio social não seja aquilo que deveria ser.
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Um Evangelho que me insere no Reino, que me torna um servo de Cristo rumo à cruz. Isso não significa que vou mudar a sociedade, ou que vou conseguir expulsar os romanos da minha política, ou que vou conseguir acabar com as favelas do mundo, pois o mesmo jaz no maligno. Embora eu deva viver a diferença com o meu próximo, o Evangelho do reino veio para transformar o meu ser.
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Um Evangelho que condena a miséria social e a injustiça, mas numa proposta de mostrar o pecado humano e a falência do sistema, não de criar seguidores que possam reverter o processo social, embora isso possa chegar a ser atingido.
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Um Evangelho que multiplica o pão, mas que não faz disso sua meta. “Vocês vêm a mim por causa do pão” e dizendo isso não multiplicou mais. Pareceria um contrassenso, já que ele poderia acabar com a fome do mundo e assim se tornar um grande ícone humanitário.
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Um Evangelho que fale ao pobre e ao rico, que atinja o pobre oprimido e o rico que não oprime.
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Um Evangelho a ser pregado não a partir das misérias sociais, mas sim a partir da miséria humana existencial.
Assim Jesus não era de esquerda nem de direita, não propôs sistemas políticos ou econômicos. Essas lutas de direita e esquerda são meras convenções políticas. Jesus falou do homem perdido, mostrou o quanto este estava perdido e morreu por ele para que fosse encontrado. A partir daí, na consciência da falência humana e no resgate da humanidade, abre-se as portas para a ação social, porém nunca como um alvo supremo a ser perseguido, mas uma consequência a ser vivenciada, pois o problema humano é muito acima do nível social.
Faz-se assim necessário alguns esclarecimentos pontuais.
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No que se constitui a libertação apregoada no Evangelho?
A libertação não se constitui em alívio do ponto de vista da opressão social. Os discípulos foram libertos por Jesus e continuaram a vida toda debaixo da opressão social. O Evangelho é muito mais do que isso. Se assim o fosse, nações em que a opressão social é minimizada (até mesmo debaixo de uma confissão ateísta) não precisariam do Evangelho.
A libertação proposta por Jesus não enfoca questões sociais, econômicas ou de qualquer outra natureza que não seja o resgate de um ser das trevas. A libertação social é um ideal de muitos líderes e instituições, que tiveram mais ou menos êxito no processo social, sem nem sequer se utilizar do Evangelho.
Jesus liberta o homem de seu pecado existencial que é o único que o separa de Deus. O homem não será condenado por suas injustiças sociais, pois se assim o fosse, aqueles que praticam a justiça sem o emblema da cruz, seriam absolvidos sem a presença de Jesus. O homem será condenado por seu Pecado, que o separa de Deus.
Enfocar a libertação do ponto de vista social é reduzir o evangelho a uma ideologia humanitária e nivelar Jesus aos ícones de projeção social.
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Quem é Jesus?
Parece muito claro que Jesus é incomparável. Ele supera infinitamente qualquer líder social ou agente humanitário de importância inquestionável.
Não precisamos de Jesus para realizar um trabalho social significativo – já temos Mahatma Gandhi, entre outros.
Não precisamos de Jesus para estabelecer uma sociedade mais justa e igualitária – grandes nações do primeiro mundo, como a Suécia ou Dinamarca estão anos-luz na constituição de suas sociedades, muitas vezes até sob a bandeira do ateísmo.
Não precisamos de Jesus para estender a mão ao faminto, à viúva e ao pobre – agências humanitárias e grandes líderes sociais já se mostraram eficazes nisso sem sequer estar debaixo da cruz.
Não precisamos de Jesus para mostrar a justiça e a ética que faz a diferença no meio social – muitos já agiram assim sem sequer serem cristãos. Corpos são queimados em favor dos pobres sem sequer o resquício do verdadeiro amor.
Não precisamos de Jesus para praticar o desprendimento material – Sidarta Gautama que o diga.
Jesus não é definitivamente um “repartidor de heranças”, ou um “provedor de pão” – essa era a expectativa dos judeus, mas ele não se mostrou seduzido por estas propostas. “O pão não foi Moisés que vos deu, o pão sou eu”, revelou Jesus. Quem busca no Evangelho o pão que mata a fome, não pode entender o que é comer a carne do Filho de Deus.
Não precisamos de Jesus para exemplos de qualquer natureza ética ou altruísta – grandes ícones da história se mostraram impecáveis neste aspecto sem nunca abraçarem a cruz.
Mas, definitivamente tem algo fundamental e essencial que só Jesus pode fazer, que é uma característica exclusiva dele. Só Jesus pode perdoar a humanidade em relação ao seu pecado existencial e assim ligá-la novamente a Deus. Isso nenhum líder ou ícone mundial poderia fazer, pois “todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus”.
Essa é a verdadeira mensagem do Evangelho. O homem estava separado de Deus em seu pecado e Jesus veio ligá-lo novamente ao Pai. Resgatou-o de sua condição de pecado e o regenerou, fazendo-o uma nova criação.
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Qual é a tarefa da Igreja?
A tarefa da Igreja não é prioritariamente social. Não somos uma instituição filantrópica de ajuda humanitária. Existem grandes organizações que assim se constituem e fazem um excelente trabalho social sem nunca se constituírem como igreja. Não precisamos da igreja para fazer a ação social. Ela já existia muito antes da igreja.
A igreja não se reúne para resolver os problemas sociais prioritariamente. Quando olhamos para a igreja primitiva, percebemos que os diáconos só foram instituídos depois que o problema se apresentou. A igreja não se reuniu para resolver seus problemas sociais, embora a ajuda entre os irmãos se tornou uma realidade. Mas não foi essa a mola propulsora que os levou a estar juntos. Eles estavam juntos porque se tornaram adoradores. Não somos chamados principalmente para atender projetos sociais, mas sim para sermos adoradores.
Então a igreja tem como tarefa principal adorar a Deus, conhecê-lo e anunciar a libertação do homem do seu Pecado por Jesus. As tarefas sociais, as denúncias ao desequilíbrio econômico, as buscas pela preservação ambiental, o respeito à criação divina, a defesa dos animais, as grandes descobertas científicas que ajudam a preservar o planeta e os homens, são também realizações dos salvos, mas podem muito bem existir sem eles, como a própria história comprova.
A carta aos Gálatas, no capítulo 5, mostra que a libertação tem muito mais a ver com a consciência da falência existencial da humanidade do que qualquer outra coisa. Neste aspecto as “obras da carne” condenadas têm muito mais a ver com as questões internas de uma realidade existencial corrompida.
Sendo assim, fica aqui minha denúncia contra o rebaixamento do Evangelho a uma proposta de ação social, reduzindo assim Jesus a um ícone de exemplo humanitário e no páreo com os grandes exemplos de revolução social do planeta. Ele é muito mais do que isso e seu evangelho vai muito além dessas causas.
Que Deus seja conosco.
Everson Spolaor