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Onde nos perdemos?

De toda a literatura Joanina o capítulo 4 do seu evangelho é o mais carregado de sarcasmo por parte da mulher e de firmeza por parte de Jesus. Geralmente confundimos firmeza com rigor, desprezo ou severidade e sarcasmo com ironia.

As colocações da mulher são sarcásticas refletindo, provavelmente, uma situação de dor e rejeição. No primeiro estágio vemos ela se escondendo da sociedade em que vivia (quem vai ao meio-dia no deserto tirar água de um poço? Apenas quem já foi vilipendiado de alguma forma e em repetidas ocasiões) Até o momento em que Jesus se revela à mulher, a linguagem agressiva dela e suas colocações são a constante.

Paralelamente, não encontramos em Jesus condescendência ou palavras politicamente corretas: O lugar de adoração é Jerusalém; e você vive em conflito constante consigo mesmo, com a sociedade e com o papel que lhe foi dado ao nascer. Em resumo é isso que Jesus, firmemente, lhe diz.

A mulher não está sendo apenas irônica; se possível fosse, ela arrancaria um pedaço de carne do seu interlocutor. Jesus se mantêm firme. Não chega nem perto de ser rude ou “estúpido” nas suas respostas, nem lhe falta educação. Ele é apenas firme atendendo à necessidade da mulher e não apenas ao seu interesse numa boa briga de rua.

O ponto de inflexão se dá quando Jesus coloca em realce a busca da mulher. Sendo mulher, samaritana, e com vários relacionamentos frustrados nas costas, ela continua sua busca pela verdade, a busca pelo Messias.

Diferente do homem no tanque de João 5, esta mulher estava em uma busca incessante da realização da promessa antiga. Não eram só palavras ou discursos. A vida dela estava em jogo.

Tal é assim que – ao Jesus se revelar – tudo muda no relato. A mulher que antes se escondera, agora ia atrás dos seus algozes sociais e muda tudo. Até o trajeto de Jesus muda e fica mais dois dias enquanto os samaritanos se convertiam. Nem só de pão viverá o homem, mas de toda transformação social que a pregação da verdade pode trazer.

Hoje a forma pública da igreja não passa de uma caricatura ultrajante de Jesus o Cristo. Negocia-se tudo apenas para agradar à sociedade. A culpa imposta pelo movimento feminista nos cega os olhos impedindo-nos ver a realidade de um Messias que restaura a imagem de Deus (homem e mulher) tal como era no inicio. Essa mesma culpa nos impede ver que antanho não foi assim: o inicio da igreja (na ressurreição do Messias) as testemunhas escolhidas eram as mulheres, a primeira igreja estabelecida na Europa foi sob os auspícios de uma mulher, o reconhecimento apostolar de Paulo em Romanos, era inicialmente para as mulheres, a proposta de Paulo em Efésios é de uma igreja sem divisões, enfim: esquecemos não apenas o propósito, mas também os meios e a herança.

Negamos-lhe assim o poder (dynamis) do evangelho (boas noticias) de transformar ( e transtornar às vezes ) sociedades inteiras já que isso é necessário se o Reino de Deus deve ser implantado. Sem o evangelho, não há possibilidade de justiça e deixamos a sociedade seguir seu rumo de idolatria em que apenas a ira de Deus pode ser manifestada.

Vias de fato, nos envergonhamos do evangelho que realmente salva a diferença do Cesar.

“Pode-se colocar o início do ano no aniversário de César, pois a divina providência trouxe à vida dos homens: paz, salvação, abolição de guerras. O dia do nascimento do deus foi para o mundo o início de boas notícias”


Uma inscrição feita na Ásia menor, em 9 a.C.

Não é à toa que Paulo inicia sua reflexão aos Romanos por ai.

Jesus e a Igreja

Evangelho de João

Jesus e a Igreja

João 13:1-17:26

    1. Introdução

A maior parte do tempo confundimos local de reunião com igreja e instituição eclesiâstica com igreja. É claro que não vejo problemas em utilizar os termos de forma intercambiavel quando vamos explicar para um cidadão aonde estamos indo ou o que é que faz esse grupo de pessoas em um local. Ou seja, você não vai dizer para seu vizinho leigo que está indo para o “local de reunião” ou coisa assim. Você está indo para a igreja, oras.

Me refiro ao que realmente acreditamos ser a igreja. Se bem igreja significa simplesmente assemblêia, ou – literalmente – chamados para fora, o relacionamento entre fé e igreja é indisolúvel. A prova mais simples disso é a que encontramos em Mateus 16:13-20. Na confissão de Pedro há várias coisas contidas: 1) é uma revelação dada por Deus. 2) é uma declaração de fé distinta em essência do que o povo pensava sobre o próprio Cristo (“Tu és o Cristo o filho do Deus vivo”). 3) É sobre essa fé que Jesus construiria sua igreja.

Esse resumo, não destoa nem um pouco com o que encontramos em João 13:1-17:26. É uma passagem extensa, mas há uma unicidade no texto inteiro. Ou seja, o trecho tanto como assunto e como evento forma uma unidade que – nas suas nuances – enriquece o panorama geral.

Os dois grandes assuntos que se repetem en cada parte deste extenso bloco podemos ressumi-los assim: Jesus está se preparando para voltar ao Pai, a fé em ser Jesus enviado pelo pai é essencial para fazer parte deste grupo. A palavra “igreja” não aparece no trecho escolhido assim como não aparece a palavra “trindade” em lugar nenhum da Biblia; porém, ao avançarmos pelo texto observamos que é da igreja (e da trindade) que o texto trata.

    1. Estrutura

Diferentemente dos outros blocos, as reações externas são inexistentes neste. Isso se deve ao fato de estarmos nos adentrando a um momento particular na vida de Jesus e unicamente seus discípulos.

Outra coisa distinta é que o bloco é composto quase que unicamente de discursos e orações de Jesus. Por conta disso, os dialogos ficam reduzidos a uns poucos parágrafos mas que são essenciais para o desenvolvimento do texto.

O capítulo 13 é distinto de tudo o que Jesus já fez no resto do evangelho. Faltava uma ilustração clara de que o Mestre e Senhor veio para servir e que era isso que esperava dos seus discípulos. Esta atitude dos primeiros 17 versículos do capítulo 13, tem ecos no restante do bloco, em particular quando pensamos na ideia de identidade. Ou seja, quem é o Cristo? Qual a sua relação com o Criador? O que é que ele espera dos seus discípulos? Por que?

    1. O paradigma da identidade

Não há resposta cabível para todas essas perguntas sem a resposta que o próprio Jesus dá ao dizer “Quem me vê, vê o Pai (14:9)” e “Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros. Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros” (13:34b,35) e “… Se eu, sendo Senhor e Mestre de vocês lavei-lhes os pés, vocês devem lavar os pés uns dos outros” (13:14) e também “Como o Pai me amou, assim eu os ameu; permaneçam no meu amor. Sevocês obedecerem aos meus mandamentos, permanecerão no meu amor, assim como teno obedecido aos mandamentos de meu Pai e em seu amor permaneço” (15:9,10) e não poderia faltar “Agora que vocês sabem estas coisas, felizes serão se as praticarem” (13:17) e “Tenho lhes dito estas palavras para que minha alegria esteja em vocês e a alegria de vocês seja completa” (15:11). Mas há também a identidade com consequências negativas: “Se o mundo os odeia, tanham em mente que antes me odiou. … Se me perseguiram, também perseguirão vocês… Aquele que me odeia, também odeia meu Pai.” (15:18, 20b, 23)

As referências dadas não são exaustivas porém nos permite vislumbrar uma harmonia fantástica no bloco. Mas veja o diálogo entre Jesus e Tomé em 14:5-14 sobre a equivalencia entre Jesue e o Pai ou o 14:15ss em que Jesus fala de enviar o Espirito quando voltar ao Pai, mas diz logo no 18: “Não os deixarei órfãos; voltarei para vocês” com o que fica claro que há uma identidade entre Pai, Jesus e o Espirito.

Em resumo, há uma relação de identidade entre Deus Pai, Jesus e os seus discípulos. Seguindo a leitura do texto, vemos que essa identidade é extensiva ao Espirito Santo: João 16:14-15. Esta relação de identidade é tão estreita que conhecer um, implica em conhecer os outros e rejeitar um é rejeitar os outros. Não é à toa que Paulo em II Cor.5:17 fala que estar em Cristo é pertencer a uma nova ordem, a uma nova criação que não pertence a este mundo por mais que esteja nele.

E tem mais, estar identificado com Cristo é estar identificado com o Espirito e sua obra como está relatado em 15:26-27. Todavía o texto mais claro quanto à identidade, está em 17:22 “Dei-lhes a glória que me deste, parq que eles sejam um: eu neles e tu em mim. Que eles sejam levados à plena unidade, para que o mundo saiba que tu me enviaste, e os amaste como igualmente me amaste”

    1. A essencialidade da fé na encarnação

Veja os seguintes versículos: 13:3, 14:4-5, 17:27, 17:8b, 17:25. O que vincula todos eles? O fato de ser Jesus enviado pelo Pai. Para muitos basta com ter uma fé… qualquer tipo de fé, em praticamente qualquer coisa por mais aberrante que seja para que consideremos aquela pessoa como nosso irmão ou irmã.

Se bem somos irmãos como raça e devemos amor, carinho, respeito, cuidado e genuino interesse por cada ser criado, não devemos misturar as coisas e achar que qualquer um é nosso irmão eterno. Jesus faz uma distinção clara nisto ao dizer “Não estou rogando pelo mundo, mas por aqueles que me deste, pois são teus” (’17:9b) Ou, se fica mais claro, João 1:12-13 “Contudo, aos que o recebera, aos que creram no seu nome, deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus, os quais não nasceram por descendência natural, nem pela vontade da carne nem pela vontade de algum homem, mas nasceram de Deus

Essa fé em que o Cristo é vindo do Pai, cumpre sua missão e volta para o Pai é essencial à igreja. Dito em outras palavras: quando não há fé nesse fato, estamos na presença de outra coisa e não da igreja pois a essência da igreja é a fé no fato do Cristo ser exatamente quem ele disse ser.

Por extensão, qualquer pregação que promova uma imagem de Cristo diferente desta, não é uma pregação cristã, já que para ser cristão, é nescessário justamente a fé no Cristo – isto é – no enviado.

Por se fosse pouco, é impossível ao ser humano natural entender, aceitar e muito menos se identificar com o Cristo sem a intervenção do alto. João 16:7-11 é muito forte para silencia-lo com achismos secundários: “… é para o bem de vocês que eu vou. Se eu não for, o Conselhieiro não virá para vocês; mas se eu for, eu o enviarei. Quando ele vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juizo. Do pecado, porque os homens não crêem em mim; da justiça, porque vou para o Pai, e vocês não me verão mais; e do juizo, porque o principe deste mundo já está condenado

Me interessa enfatizar neste ponto o convencimento do pecado. O pecado aqui é não crer em Cristo. No contexto em que encontramos este trecho, não se trata de uma crença histórica, isto é, não se trata de crer que existiu um homem na galileia chamado Jesus que fez milagres e foi morto. Nem se trata sequer de crer que ele ressucitou já que para os primeiros leitores do evangelho isso não era novidade ne fato assustador. Crer aqui é depositar a fé na encarnação do Cristo. Isso é essencial e não vem por mérito ou esforço humano, mas sim pela intervenção sobrenatural do Espirito Santo na criação.

    1. A oração e seus frutos

A igreja – e não o individuo – é atendida em suas preces. Convenhamos que isso não é muito ortodoxo que digamos. Temos a impressão que a oração é um lance individual. Porém, se observamos a criação, tudo é pareado. Nada há que exista em si mesmo. Até aquelas plantas que portam seus dois gêneros, tem dois gêneros. Os animais que podem mudar de sexo segundo a ocasião fazem exatamente isso: mudam o sexo ou suas funcionalidades.

O individualismo é um subproduto do pecado. A morte social, isto é, a separação do meu irmão de raça acontece não por outra razão básica do que o pecado original. A igreja é uma nova ordem, uma nova criação. Como tal volta ao paradoxo original da criação do ser humano: “Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus os criou; homem e mulher os criou” Gen 1:27

O que encontramos no bloco? Bom várias referências a que a oração será atendida, só que sempre vinculada à fé na encarnação do Cristo: 14:13; 15:16; 16:23-24, 26

É em certo sentido, parecido com Mateus 6:33 “Busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas lhes serão acrescentadas

Jesus e a morte

Evangelho de João

Jesus e a Morte

João 11:1-12:50

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Introdução

Enquanto estamos vivos nos achamos grande coisa. Mesmo até quem tem que mexer com cadáveres, se acha grande coisa. Porém, quando a morte bate de pertinho, entendemos nossa própria grande limitação1.

Caminhamos para a morte. É inevitável. Por conta do nosso espírito ser eterno, nos achamos com capacidade de realização eterna. Provar isso é bastante simples: observe os mais idosos, repare que eles tem sonhos como se ainda tivessem 30, 50, 70 anos de vida por diante.

A morte é a última grande consequência nesta terra da entrada do Pecado2 no mundo. A limitação da vida é um corolário das nossas próprias decisões irreversíveis como raça. Escolhemos – como raça – nos parecermos com o Criador e por conta disso nos distinguimos ainda mais. É uma ironia fatal (sem ironias).

Assim como o cego de nascença não tinha escolhido ser cego mas a cegueira era um fruto do Pecado (e o apedrejamento era o curso socio-legal do pecado de adultério mesmo que a adultera não teria escolhido essa consequência) assim também não escolhemos ter vida perecível.

O início de tudo

O que faz o criador? Se respeita plenamente a decisão do Homem3 e o deixa seguir seu próprio rumo sem intervir, ele mesmo se torna irresponsável pela sua própria criação. Se ele intervêm na marra e lhe impõe suas decisões, o Homem o poderia – com justiça – acusar o criador de injusto, intervencionista e por ai vai. Isso por só elencar um par de opções simplificantes.

O pior é que o inimigo da criação (que transformamos, como raça, em príncipe deste mundo pelas nossas decisões livres lá no Éden) ficaria impune. Por mais que o que ele fez foi plenamente legal (pois escolhemos no pleno uso da nossa liberdade), é imoral e por tanto alguma forma de tirá-lo do poder deve de existir. Ao mesmo tempo, Deus é justo, ou seja, ele não poderia enganar a humanidade como o príncipe deste mundo fez.

A solução

A morte de Jesus na cruz tem várias consequências muitas delas imensuráveis desde nossa perspectiva de criaturas sujeitas a este mundo material. A síntese deste assunto está em João 12:31 e 32: Agora, é o juízo deste mundo; agora, será expulso o príncipe deste mundo; e eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim. O ápice da história não é o nascimento do Cristo numa manjedoura e sim a morte do mesmo na cruz. É a morte e não a ressurreição do Cristo o que destrona o príncipe deste mundo. A legalidade da morte foi eliminada por ter morrido o único ser humano justo e com isso o Criador readquire os seus direitos sobre o ser humano e sua existência eterna.

A estrutura do texto

Neste trecho observamos o seguinte fluxo: Cap 11: fato – discurso – ação – reação Cap 12: fato – ação – discurso – reação.

Ou seja, é mais ou menos a mensa estrutura que observamos em cada um dos blocos de João. Não poderia ser de outra forma, já que é a própria estrutura primária do texto a que foi usada para estabelecer os blocos.

Novamente, as duas grandes partes que compõem o bloco mostram certo paralelismo e os assuntos estão entrelaçados. Igual que nos outros blocos, o destaque é para a incredulidade de muitos em contraposição com a credulidade (muitas vezes dubitativa) de poucos.

Lázaro

Quando Jesus trata com Marta sobre a morte do Lazaro, a fé de Marta (muitas vezes criticada por preferir os afazeres da casa do que estar com o mestre) é exposta – assim como sua dor – na frase recolhida em João 11:24 “Eu sei que ele vai ressuscitar na ressurreição, no último dia”. Isso refletia talvez a classe social à que Marta, Maria e Lazaro pertenciam (Bethania significa casa dos pobres) e quase que por conseguinte a linha doutrinaria e politica à que pertenciam: os fariseus4. Isso porque os fariseus eram mais povão que os saduceus e acreditavam na ressurreição. Mas também refletiria algum ensinamento prévio dado por Jesus; mas ai estaríamos especulando ainda mais, já que não há registro específico disso.

Seja como for perante a morte do seu amigo Lazaro, Jesus expõe seus sentimentos e também seu poder. Este homem é o que dizia que podia perdoar pecados e se bem haviam controvérsias sobre se um homem podia ou não perdoar outro homem o que não haviam dúvidas era que ninguém poderia ressuscitar mortos. Em João não temos a frase “Qual é mais fácil? dizer: Os teus pecados te são perdoados; ou dizer: Levanta-te, e anda?” como em Lucas 5:23 porém a proposta é a mesma: Os capítulos 8 e 9 falam do perdão de pecados, o 10 fala de Jesus e seu rebanho e o 11 e 12 falam do poder de Jesus sobre a morte. E da mesma forma que nos evangelhos sinóticos, é esse perdão dos pecados (e a liberação da raiz do pecado) o alicerce sobre o qual pode ser construída a igreja demolindo a construção anterior mas mantendo a mesma base: O criador é Senhor da criatura.

A espera de Jesus antes de ir até Betânia e as três colocações que repetem “Se estivesses aqui ele não teria morrido” levam a pensar que este milagre era mister de acontecer antes de ele mesmo ser morto. Ou seja, todos (Marta v.20, Maria v.32, os amigos da família v.37) achavam que Jesus poderia ter impedido a morte, mas não que poderia vencê-la revertendo seus efeitos. Nem mesmo Marta – que é a que chega mais perto – consegue descifrar o que está por vir.

Quatro dias no túmulo não foram suficientes para deter a vida. Porém, mesmo a vida sendo devolvida a um morto que já cheirava mal, nem por isso a fé dos homens se voltaram para Jesus. O interesse de Jesus em que as pessoas cressem, fica manifesto no v.42. O fato de que era isso que naturalmente se esperava dos que entendiam o propósito de Jesus, fica recolhido no v.45 nas palavras “muitos … vendo o que Jesus fizera, creram nele” E finalmente, que os líderes religiosos do momento sabiam que o povo poderia chegar a crer fica registrado no v.48 “Se o deixarmos, todos crerão nele, e então os romanos virão e tirarão tanto o nosso lugar como a nossa nação

A unção em Betânia

Até hoje o corpo de um judeu é preparado mais ou menos da mesma forma em que eram preparados no tempo de Jesus. De fato, o ritual pelo que os judeus se conduzem hoje é o instituído pelo rabi Gamaliel, o mesmo que ensinou Paulo.

Basicamente ele é um ato religioso judaico e não apenas um mero ritual higiênico por mais que a higiene esteja presente. Um resumo simples deste ritual deveria elencar as seguintes características: 1) Só judeus podem fazer parte da sociedade sagrada que cuida do corpo. 2) O corpo é completamente limpo e envolto em uma mortalha obrigatoriamente simples. 3) O corpo não pode ser embalsamado nem cremado. 4) O corpo deve ser sepultado na terra. 5) Caso seja usado um caixão, este deve ter buracos para que o corpo entre em contato com o solo. 6) Tudo o que não for parte natural do corpo, deve ser retirado e não podem ser enterrados juntos com o corpo. 7) Após a lavagem do corpo, são despejados pouco mais de 12 litros de água para purificá-lo. 8) Após enxugado, o corpo é vestido com as mortalhas. 9) Em caso dos homens, veste-se o Talit (xale de seda) e se possível, o mesmo que era usado quando ele fazia suas prezes em vida. 10) Entre a lavagem do corpo e o enterro não se deve ter uma interrupção de mais de 3 horas.

Seis dias antes da Páscoa5 Jesus e seus discípulos estão em Betânia com Lazaro e suas irmãs. O jantar foi preparado para o mestre. Lazaro, o ressuscitado, era a atração para uma multidão que estava do lado de fora.

Neste cenário, Maria a irmã de Marta e de Lazaro, derrama uma pequena fortuna sobre Jesus. Segundo os cálculos presentes em Marcos e em João, se tratava do equivalente a trezentos dias de um trabalhador braçal. Ou seja, descontados os sábados e feriados para festas religiosas, era o que uma pessoa comum poderia conseguir (se não gastasse nada) em mais de um ano. Se tomamos como exemplo que uma diarista ganha R$120,006 por dia e a dracma e o denário equivaliam ao salário de um dia de trabalho braçal, então estamos falando de alguma coisa como R$ 300*100, ou seja, R$ 36.000 em valores de hoje. Talvez assim possamos sentir a indignação de Judas ao ver que o equivalente a um carro popular estava sendo despejado logo sobre os pés7 de Jesus. Era muuuito dinheiro sendo jogado fora de uma só vez.

A interpretação do fato dada por Jesus é dupla. Por um lado, responde às supostas inquietações levantadas por Judas e talvez algum outro sobre o melhor uso que se faria desse dinheiro se fosse destinado aos pobres dizendo “os pobres vocês sempre terão consigo”. Por outro lado, abre uma linha interpretativa que nenhum dos presentes tinha levantado ainda: “que o guarde para o dia do meu sepultamento

Então o que parece um simples relato de um jantar se transforma em uma alusão gritante ao último inimigo do ser humano. Os traços não são mais os suaves e delicados traços de uma obra renascentista e assumem as cores vibrantes e o alto-contraste de uma obra impressionista.

Na mesma mesa estão um traidor, uma mulher subjugada pela figura do jovem mestre, um homem ressurreto, uma mulher pragmática, os discípulos que poucas semanas depois abalariam Jerusalém, e o criador do mundo que em poucos dias haveria de ser submetido à morte.

Os gregos que visitam Jesus

Se há uma passagem enigmática em João, e essa dos gregos que procuram por Jesus. A reação de Jesus não é a de atendê-los senão a de dizer “Chegou a hora de ser glorificado”.

O que esses gregos fazem aqui?

Bom, desde o ponto de vista da mecânica do relato, a mesma coisa que o oficial romano do 4:43ss. Ou seja, mostrar que o alvo da vinda de Jesus não é só o povo Judeu e sim a criação toda. Isso fica mais evidente quando vemos o versículo que prepara esse caminho neste bloco: 11:51,52: “[Caifás] … sendo o sumo sacerdote aquele ano, profetizou que Jesus morreria pela nação judaica, e não somente por aquela nação, mas também pelos filhos de Deus que estão espalhados, para reuni-los num povo.

Pela segunda vez no relato joanino, uma voz vem do céu para confirmar o propósito divino nesta história toda. A primeira no batismo e agora com a visita dos gregos.

A escolha da figura do trigo no contexto da visita dos gregos nos relembram duas coisas: 1) o trigo junto com a cevada constituíam a base da dieta grega. 2) As terras gregas eram ideais para o plantio de oliveira com o que se formaram colônias gregas fora do seu território para produzir o grão cuja demanda sobrepujava a produção.

Tal era a importância do trigo na cultura helênica que algumas moedas levavam a figura do trigo. Um estudo moderno8 indica que um robô da Grécia do século I era movido a trigo.

Com toda essa informação, não parece fruto do mero acaso que Jesus escolhesse o trigo para ilustrar claramente o que haveria de acontecer com ele para os visitantes gregos (v12:24ss). Mais adiante, ele escolheria uma outra imagem que falaria ao inconsciente coletivo judeu ao dizer “Mas eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim” v.32

A incredulidade dos judeus e “o último dia”

O trecho final do nosso bloco se inicia com uma palavra desalentadora “Mesmo depois de que Jesus fez todos aqueles sinais miraculosos, não creram nele” (v37)

A explicação de João é direta e simples mas não simplista. Ele cola duas passagens de Isaías. O capítulo 53 e o 6. A explicação de João é a seguinte: Não criam, porque não podiam. Os olhos lhes tinham sido fechados para não conseguir crer. Ou dito de outra forma, eles não criam para que se cumprisse a profecia de Isaías. Para muitos isso parece injustiça, mas é exatamente o contrário já que desta forma, o verdadeiro soberano recebe glória, ao passo que nossa liberdade, sempre nos leva para longe do Cristo e sua salvação. Ou, usando as palavras de João, Isaías falou isso porque ele viu a glória de Jesus. Esta glória, segundo o próprio Jesus e a voz vinda do céu, estava atrelada à sua morte. Ou seja, se não fosse pelo próprio Jesus ter dito, não veríamos glória na morte. Do mesmo jeito, naturalmente não achamos justiça em exigir uma fé genuína de homens que não podem tê-la. A única perspectiva possível é desde a soberania do Criador.

O trecho final se encerra com uma referência à morte e ao julgamento que na mente dos judeus aconteceria logo após a morte.

Se alguém ouve as minhas palavras, e não lhes obedece, eu não o julgo. Pois não vim para julgar o mundo, mas para salvá-lo. Há um juiz para quem me rejeita e não aceita as minhas palavras; a própria palavra que proferi o condenará no último dia.” (v47-v48)

Costumamos pensar nesse “ultimo dia” como um evento distante no futuro. Deixe-me lhe mostrar o que os judeus (para quem foram escritas em primeiro lugar estas palavras) pensam sobre a morte e o julgamento usando uma referência ao Tahará ou a purificação do corpo do morto:

A tradição judaica reconhece a democracia da morte. Portanto, exige que todos os judeus sejam enterrados com o mesmo tipo de roupa. Ricos ou pobres, todos são iguais perante D’us, e o que determina sua recompensa não é aquilo que vestem, mas aquilo que são.

Há 1900 anos, Rabi Gamaliel instituiu essa prática para que os pobres não se envergonhassem e os ricos não rivalizassem entre si ao exibir roupas dispendiosas ao serem enterrados.

As roupas a serem vestidas devem ser apropriadas para alguém que em breve estará em julgamento perante D’us Todo Poderoso, o Mestre do Universo e Criador do homem. Portanto, devem ser simples, feitas à mão, perfeitamente limpas e brancas. Estas mortalhas simbolizam pureza, simplicidade e dignidade. Mortalhas não têm bolsos. Portanto, não podem levar riquezas materiais. Nem um pertence do homem, exceto sua alma, tem importância. 9

1Talvez um livro palatável para o leitor comum seja “O carrasco do amor” de Irvin D.Yalom. O autor mostra com uma linguajem simples diversos encontros (mistura de realidade e ficção) no setting psicológico nos quais os diversos protagonistas demostram sua angustia com a morte. Da introdução (p.13) escolhi a seguinte frase: “À medida que envelhecemos, aprendemos a tirar a morte da mente; desviamos a atenção do tema; nós a transformamos em algo positivo; a negamos com mitos confortadores; lutamos pela imortalidade por meio de obras imortais, lançando nossa semente no futuro por meio de nossos filhos ou abraçando um sistema religioso que ofereça perpetuação espiritual

2Já combinamos anteriormente chamar de Pecado com ‘P’ maiúscula àquele poder que permeia toda a criação desde a escolha de Adão e Eva e chamar de pecado com ‘p’ minuscula às decisões particulares contrarias à vontade divina seja por ação, omissão ou pensamento.

3Novamente Homem (com ‘H’ maiúscula) indica a raça, ao passo que um indivíduo o representaremos com ‘h’ minúscula.

4Os fariseus (que segundo Josefo, um historiador judeu e por sinal fariseu que viveu entre os anos 37 e 100, eram estimados em 6000 à época) eram mais bem quistos pela sociedade comum, pelo homem de a pé, do que os saduceus. Há, pelo menos, dois fariseus importantes que o leitor evangélico conhece bem: Gamaliel (Atos 5:34) e Paulo (Atos 22:3; Fil.3:5). O grande problema de Jesus (e João o Batista) com os fariseus, não era teológico e sim ético; mais especificamente, o divórcio existencial entre o discurso e a prática do discursado.

5Há um sábio desbalanço no jeito em que o autor arranja seus assuntos cronologicamente. Se o capítulo 1 fala da eternidade até o batismo de Jesus, do capítulo 1 até o 11 o relato abrange três anos da vida adulta de Jesus. Na metade do livro e até o final do mesmo, o tempo para em uma semana. Porém, do capítulo 13 até o 19 ele se concentra em uma única noite que é a que Jesus foi traído e morto. Então esta introdução em dois movimentos ao assunto morte é de extrema importância.

6http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2015/04/pesquisa-aponta-variacao-no-preco-dos-servicos-oferecidos-por-diaristas.html

7Mateus e Marcos vão dizer que é sobre a cabeça

8http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL78601-5603,00.html

9http://www.chabad.org.br/ciclodavida/Falecimento_luto/falecimento/taharah.html

Jesus e as essencialidades

Evangelho de João

Jesus e as essencialidades

João 6:1-7:52

Introdução

O que é essencial para a vida? A comida? A água? O pão? Jesus? As festas?

Há dois elementos que aparecem nas duas partes do bloco: A água e o pão. A personagem em cada um dos blocos é distinta e a mesma em certo sentido: o povo que busca e o povo que rejeita.

É muito interessante a estrutura que João nos propõe: Criação, Pessoas, Perguntas. Claro, como de costume, neste bloco há outros grandes assuntos entremeados. Temos por exemplo a economia do reino, os milagres, a família de Jesus, o povo… enfim, uma riqueza quase infindável. Me parece, porém, que há um fio condutor nesses capítulos seis e sete. A pergunta que junta temas, relatos e ilustrações tão diversas, é o seguinte: O que é essencial para a vida? Se já respondemos que a vida é uma criação de Deus, se já dizemos que as pessoas são realmente mais importantes do que as ideologias, o que é que sobra se tirarmos as antíteses das coisas expostas?

Parece-me que o medo às perguntas mais básicas é o que nos leva a revestir a existência de perguntas aparentemente reais. Com isso, ficamos às voltas com problemas imaginários ao passo que o realmente essencial se nos escapa. João propõe o seguinte: Criação → Pessoas → O Que é essencial?

Este bloco pode por sua vez ser dividido em duas partes: Essencialidade Geral, Essencialidade Particular. Enquanto o capítulo seis fala da multidão e do povo que procura por Jesus, o capítulo sete fala da família terrena de Jesus, do Povo Judeu em sua festa mais importante, da primeira tentativa de prender Jesus e dos líderes judaicos que não creem.

Por sua vez, a proposta de Jesus em qualquer uma das perspectivas é a mesma: Jesus é a essência da Vida. No seis ele é o Pão da Vida e no sete ele é a Água Viva. Dito em outras palavras, não interessa se você é parte da plebe (o problema de quem está na elite) ou parte da elite (o problema de quem é massa) a essência da sua vida se encontra em Jesus e fora dele o que você tem não é vida.

Estrutura do texto

João parte de dois eventos compartilhados com o relato sinótico do evangelho: A multiplicação dos Pães (presente em Mateus1, Marcos2 e Lucas3) e Jesus caminhando sobre as águas (presente em Mateus e Marcos).

Quando comparamos o conjunto estrutural (capítulos 6 e 7 seguidos do 8) vemos que há uma similaridade fantástica com os sinóticos (ou ao menos com Mateus e Marcos). Os três trazem os relatos acomodados na seguinte sequencia: Multiplicação dos Pães, Jesus andando sobre as águas, o problema da tradição judaica, a fé de uma mulher.

Claro que não é foco deste estudo vasculhar nessa macro estrutura, mas a mencionamos no intuito de despertar um interesse maior nessas interações que vez ou outra aparecem e que se tornam especiais, já que João dificilmente se vê compelido a seguir os sinóticos4.

Seja como for, a estrutura continua a ser a mesma que em outros blocos de João: Relatos, Discurso (ou interação), Reação, Repetição do Discurso, Mais reações.

Os sinais miraculosos (pães e água) dão lugar a um discurso de Jesus que provoca uma reação no povo. Jesus se afasta e volta a cena para mais um discurso e mais reações.

Os afastamentos de Jesus

Há uma tendência generalizada que nos leva a pensar que uma pessoa forte não se afasta. Como o ideal é ser forte, o ideal – por extensão – é não se afastar da luta. Parafraseando Freud, somos de carne mas somos obrigados a agir como se fossemos de ferro.

Estes dois capítulos de João estão recheados de momentos em que Jesus se afastou. Retirou-se do local, da multidão, dos eventos do momento seja para pensar, orar, ou preservar a vida.

I) Os relatos de Mateus e Marcos são concordantes em dizer que a primeira multiplicação de pães e peixes aconteceu após a decapitação de João o Batista5. Lucas coloca o evento após o envio dos doze. Seja como for, os quatro relatos iniciam com um breve retiro de Jesus e seus discípulos (Jo 6:3). Se como se diz comumente a voz da maioria não é a voz de Deus, então a voz de uma multidão não necessariamente reflete a vontade do Criador.

II) O segundo afastamento de Jesus (Jo 6:15) acontece logo após alimentar a multidão e esta – aparentemente – se ”converter” em massa. Ao separar-se dessa massa, ele mantêm o foco na vontade divina e recua da tentação de formar um reino terreno. Se há uma prova de que o reino de Deus não é terreno, é este afastamento aqui.

III) O terceiro afastamento (Jo 7:1) busca preservar a vida pois o tempo dele (de morrer) ainda não tinha chegado. Consciente e propositalmente Jesus adia o momento de encontro com os seus captores. Porém, quando a festa chega ao seu ponto mais alto, ele aparece e coloca uma das frases mais formosas de toda a Biblia: “Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva

Os sinais miraculosos

Existem dois sinais miraculosos que acham ecos com ao menos dois eventos do antigo testamento: A multiplicação dos pães – que ecoa com o maná dos tempos de Moisés – e a caminhada sobre as águas – que nos lembra da travessia do povo hebreu no mar vermelho sob comando de Moisés.

Não é por acaso que João (e os outros relatores do evangelho) colocam Jesus como superior a Moisés. E também não é por acaso que a reação é tão violenta por parte de quem ouvia inicialmente as palavras de Jesus.

Jesus é superior a Moisés

Moisés tinha adquirido tal envergadura na mente coletiva que não conseguiam perceber que se tratava apenas de um tipo6 do Cristo que haveria de vir. Não se tratava de colocar a Moisés em uma posição inferior à que merecia, mas sim em uma posição inferior à que o povo o tinha elevado.

Como tudo em João, é na própria estrutura e propósito do seu livro que encontramos as razões pelas que escreve o que escreve. Esta sessão que estamos analisando resolve um problema existencial levantado no 5:45-477. Veja especialmente o versículo 46: Se vocês cressem em Moisés, creriam em mim, pois ele escreveu a meu respeito.

As interações que se seguem nos versículos 6:30-32, 48-51, 58; 7:21-24, 37-398 denotam que o grande problema dos judeus era desapegar de Moisés.

Aquele que crê não é o mesmo que Aquele que crer

Como bons evangélicos temos a tendência a achar que crer é mais um ato do que uma essencialidade existencial. Os versículos 6:25ss precisam ser analisados mais detidamente deixando que o texto diga o que tem para dizer. Se concordamos ou não com ele são outros quinhentos.

Para a pergunta de “O que precisamos fazer para realizar as obras que Deus quer?” (v28) Jesus responde com o que chamo de ‘não-ato’. Ele diz: “A bora de Deus é esta: crer naquele que ele enviou” (v29). Ora, esse crer ai tem que ser analisado junto com as outras frases que o próprio Jesus pronuncia sob este assunto; a saber: Eu sou o pão da vida. Aquele que vem a mim nunca terá fome; aquele que crê em mim nunca terá sede.” (v35) “Porque a vontade de meu Pai é que todo aquele que olhar para o Filho e nele crer tenha a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia” (v40) “Asseguro-lhes que aquele que crê tem a vida eterna” (v47) “Contudo, há alguns de vocês que não crêem.”(v64) “Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva” (v38)

É claro que este assunto requer uma analise mais demorada, mas à guisa de resumo podemos dizer o seguinte: a maior parte do tempo, Jesus trata a fé como uma coisa sendo desenvolvida corriqueiramente e não um ato único irrepetível. Não quero dizer com isso que a vida cristã não tenha (ou não deva ter) um início. Não se trata de ter ou não ter cultos evangelísticos ou de conduzir uma pessoa em uma oração de arrependimento. Sempre há de haver um ponto inicial se possível. Todavia, o que me parece que falta é a noção de que Jesus não insiste tanto no ponto inicial como na vida do dia-a-dia. Veja por você mesmo, é obvio que o seu dia de nascimento é importante mas quero ver você viver todos os dias da sua vida só com aquele primeiro ar que entrou nos seus pulmões ou o primeiro leite bebido.

O problema da religiosidade

Julgamos comumente que o problema da religiosidade são as ações externas. Achamos que se uma pessoa costuma ir regularmente aos cultos ou se ajoelhar para orar ou se tiver algum relicário, rosário ou coisa semelhante, já é uma pessoa religiosa e por tanto sem vida espiritual.

Se bem isso não é de tudo errado ele condena o próprio Jesus já que ele mesmo tinha o hábito de ir na sinagoga (6:59).

O que vemos nestes dois capítulos de João, é justamente um combate contra a religiosidade mas não necessariamente contra certas rotinas. Religião é re-ligar; voltar a juntar. Nesse sentido, nossa religião é Jesus, o Cristo.

Religiosidade (ou em termos comuns, religião) é um conjunto de passos que devem ser seguidos para atingir um bem espiritual. É a substituição do essencial pelo temporário, o celestial pelo terreno, o Cristo por uma imagem dele.

Os judeus tinham erguido Moisés a uma posição que não lhe pertencia. Ele era o herói nacional, o que levava os louros. Esqueciam assim que o realmente importante era o Messias para o qual o próprio Moisés apontava.

Acreditar na missão de Moisés ou louvá-lo pelos seus feitos não era errado. Lembrar dos atos dele no deserto e de como ele tinha conduzido o povo também não. Tornar ele mais importante do que Jesus sim.

Para a vida eterna (que começa aqui e agora), Jesus é essencial. Todo o resto é supérfluo por melhor que seja.

Então, qual é seu Moisés?

1Mt 14:13-21
2Mc 6:30-44
3Lc 9:10-17
4É claro que cabe a crítica de que o capítulo 8 foi acrescido bem mais tardiamente ao evangelho na versão joanina. Todavia, os outros dois capítulos seguem a mesma orientação nos três evangelhos mencionados.
5Por que é que João não traz o relato da morte da decapitação de João o Batista? Bom, ao meu ver porque isso não modifica em nada a fé de quem lê. João o evangelista tinha como propósito condensar as coisas que Jesus tinha feito para que os leitores cressem. Logo, sendo que a passagem não é essencial a esse propósito, facilmente pode ser descartada. Por esse princípio, o da auto-limitação na escrita para manter o material focado, devem ser analisados todos os textos joaninos.
6A palavra tipo aqui está sendo usada no sentido de modelo prévio. Ou seja, Moisés nada mais era do que um modelo pelo qual o povo poderia identificar o Messias (o Cristo) quando este chegasse. Veja Heb.3:1-6
7A mesma ideia do final do capítulo 5 aparece em 7:19: Moisés não lhes deu a Lei? No entanto, nenhum de vocês lhe obedece
8A ilustração das águas brotando do interior de quem crê em Jesus, me leva a pensar na rocha no deserto que Moisés bateu. Paulo faz uma análise semelhante em 1Cor.10:4

Jesus e as Pessoas

Evangelho de João

Jesus e as Pessoas

João 2:23-5:47

    1. Introdução

Os primeiros dois capítulos de João parecem estarem encharcados de tanta água que se menciona. Se bem a água não se esgota nesses dois primeiros capítulos e continua sendo referenciada abundantemente até o capítulo 7, decidimos por uma questão prática focar a água só nos primeiros dois capítulos e observar que o assunto vai se esvaziando naturalmente no decorrer das páginas desta rica versão do evangelho1.

Tanto no Gênesis como em João a água vem antes do ser humano. Esta antropogenia2 bíblica encontra certos ecos em algumas teorias científicas mas não é da nossa alçada entrar nesses relacionamentos e simplesmente ver que uma coisa vem antes do que a outra.

O foco aqui são as pessoas. João reduz o amplo conjunto de seres humanos a três grandes relatos mas que, uma vez contabilizados os outros menores, dão um total de seis. Os grandes são os que sempre lembramos: Nicodemos, a Mulher junto ao poço e o Paralítico. Os três relatos menores (mas não menos importantes) são o de João Batista, o filho do oficial e os judeus em geral.

As pessoas e não as ideias são a coisa mais prezada para o Criador. Todavia, as ideias – isto é o que as pessoas pensam, imaginam, sonham – delimitam a vida de cada indivíduo, e a inter-relação entre esses indivíduos conforma a sociedade que por sua vez permeia o indivíduo.

As pessoas que João escolhe são variadas. Todas elas têm seu reduto no qual são aceitos e admirados, todas elas carregam o tormento (ou a realização) de não serem aceitas por um certo grupo de pessoas pelas que gostariam (ou odiariam) de serem aceitos, todas tem dúvidas, todas tem certezas e todos são (aparentemente) muito diferentes entre si.

João é um mestre ao propor uma balança não de dois mas sim de três pratos em cada um dos seus relatos. Por exemplo, Nicodemos tem em João o Batista seu contrário em muitos aspectos mas só em Jesus as águas espirituais do novo nascimento e o batismo de arrependimento e introdução ao reino acham sua concretização. Resumindo, ficamos com uma visão muito simplificada se pegamos só um dos relatos ou se consideramos só dois dos seus personagens. Três relatos principais, três relatos secundários, três grandes personagens em cada um deles. Não me parece, então, que seja o acaso ou o descuido. Sendo então que João pinçou e organizou o material no intuito de que os leitores (primeiros e atuais) creiam em Jesus, vale então a pergunta: Que tipo de pessoa está for a do alcance da fé?

Os relatos estão separados no tempo. Se bem nos capítulos 1 e 2 temos o início das coisas e depois o início do ministério do Cristo relatado dia a dia3, no capítulo 2, 3, 4 e 5 pode que haja até um ano de distância entre alguns eventos.

Os últimos versículos do capítulo 2 nos colocam na festa da páscoa. A primeira da que Jesus participa já tendo iniciado seu ministério. Vale mencionar que são justamente as páscoas mencionadas em João que nos levam a estimar o tempo de ministério de Jesus em três anos e meio.

É nessa páscoa que Jesus se levanta e arrebenta com tudo fazendo a profecia sobre a sua ressurreição.

    1. Jesus conhece as pessoas

O texto que é foco de nosso estudo hoje, nos propõe uma coisa bonita: “Enquanto [Jesus] estava em Jerusalém … muitos viram … e creram nele” (João 2:23)

Que coisa magnífica! Jesus age, eles vêm os sinais miraculosos, muitos creem nele. Aleluia!.JesusEAsPessoas

Todavia, João nos indica que “Jesus não se confiava a eles”4 e que essa desconfiança estava baseada no conhecimento que ele tinha das pessoas. Ele frisa que não tinha necessidade de que ninguém viesse com lorotas sobre os outros, já que ele sabia do lance. Uma leitura mais detida, nos revela que não fala de pessoas particulares e sim do ser humano como raça. A Bíblia de Jerusalém vai trazer “e não necessitava que lhe dessem testemunho sobre o homem, porque ele conhecia o que havia no homem” Esse “homem” aqui não é o macho da nossa espécie, é o ser humano como um todo.

Isso nos leva de novo a analisar o v.24. Repare no contraste “Jesus não se confiava a eles [os que creram] porque conhecia a todos [ os homens ]” É esta a introdução para o que João vai começar a tratar aqui e vai se estender pelo resto do seu relato mas que acha sua colocação mais chocante em João 5:41-42. O nosso problema não é particular, é generalizado. Como exemplo ele tratará de três (seis) tipos de pessoas em uma mesma situação: Um encontro com Jesus. O contraste entre estas tres pessoas e notável.

    1. Nicodemos

Logo após João dizer que muitos creram nele e relatar o episódio do chicote no templo durante a celebração da Páscoa, vemos que um fariseu se aproxima de Jesus.

Temos a tendência de colocar fariseus, saduceus e hipócritas numa mesma sacola. Fariseus e Saduceus levavam a Lei a sério e sim, havia muitos que eram hipócritas assim como há hipócritas em qualquer grupo religioso, político, social. Mas a generalização não é saudável. Por outro lado, vale salientar que os saduceus (que costumavam ser a maioria no Sinédrio e mais bem posicionados socialmente) não acreditavam na ressurreição, ao passo que os fariseus (mais bem-aceitos pelo povo de a pé pois não costumavam ser ricos) sim acreditavam nela.

O dialogo entre estes dois pensadores é uma delicia. Cheio de curvas e jogos de palavras ele nos apresenta um panorama rico no que – a meu ver – é um papo tranquilo entre amigos.

Diferentemente do que a mulher junto ao poço do capítulo 4 ou aos judeus do capítulo 5, Jesus não o aperta ou o acusa. Nicodemos está buscando a verdade. De outra forma, Jesus o colocaria em aperto ou lhe declararia o seu pecado. E mais em vista de que os textos que introduzem este papo declaram claramente que Jesus conhecia as pessoas e não se entregava a elas. Talvez, claro, haja uma ponta disso no encerramento do papo, quando Jesus diz “Quem pratica o mal odeia a luz” em contrapartida com “Ele veio a Jesus, à noite” mas me parece mais a utilização circunstancial por parte do mestre de uma situação palpável para conduzir seu discípulo a uma descoberta espiritual maior do que uma repreensão como nos outros dois casos.

Então, numa noite fresca e tranquila de primavera na palestina, um mestre se encontra com outro e conversam sobre a vida. A origem dela e o fim (como propósito e como encerramento) da mesma.

    1. A mulher samaritana

Os samaritanos são (até hoje) um povo rejeitado pelos judeus; em especial os judeus ortodoxos. Uns 500 anos antes de Jesus, este povo construiu um templo no monte Gerizim que rivalizava com o que havia em Jerusalém.

Os samaritanos são judeus sim (De fato, o estado de Israel os reconhece como tais) surgidos das dez tribos do norte que se separaram das outras duas uns 930 anos antes de Jesus.

Então quando João está descrevendo este encontro entre uma mulher samaritana e o Messias, a história de ressentimentos, desprezos e humilhações já estava rolando solta havia um bom tempo.

Para um judeu da época dos acontecimentos, os samaritanos (por melhor que pudessem chegar a estar econômica ou politicamente mente) estavam sob a permanente ira de Deus. Essa perspectiva, torna mais rica o arranjo que João faz com o texto. Repare que o 3:36 finaliza dizendo que a ira de Deus permanece sobre quem não crê em Jesus. Isto de que “a ira de Deus permanece” era um pensamento típico da época. É o mesmo pensamento que o Apostolo Paulo vai revisar na epístola aos Romanos. Para os leitores da época, então, os samaritanos nunca poderiam chegar a se verem livres da condenação divina já que eles tinham nascido nessa condição.

O contraste entre a mulher junto ao poço e Nicodemos é enorme. Jesus transita com liberalidade e liberdade entre estes dois extremos: De um lado um homem bem-visto na sociedade com colocações intelectuais; Do outro, uma mulher, samaritana, quase com certeza pobre e com um passado que a condenava.

Diferente do que com Nicodemos, esta mulher não vem até ele. Jesus é quem tem necessidade de passar por Samaria. Também o diálogo discorre de forma diferente; enquanto Nicodemos é o que tem perguntas e não é reprendido esta mulher parece que tem que entrar na marra. Sarcástica. Ferida. Insensível. Cheia de vergonhas.

Diferente de Nicodemos, esta mulher sai a contar para todo mundo o que aconteceu. Não fica encima do muro. Se bem o papo com Nicodemos foi profundo, durou apenas uma noite. A mulher provoca tal catársis no seu povo, que Jesus e seus discípulos precisam ficar dois dias na cidade.

A mulher, some na história, Nicodemos reaparece na crucificação.

    1. O paralítico

Provavelmente tinha acontecido um ano entre os capítulos 3 e 4 e o capítulo 5.

Uma das nossas personagens chega a Jesus, a outra vem carregando um cântaro. Já nossa terceira personagem não vem nem vai. Ele precisa ser carregado, levado, deixado, buscado, lembrado.

O cenário é único. Não só porque é diferente dos outros dois cenários, mas porque não vemos Jesus em cenário similar no restante do novo testamento. João nos relata um fato com fantásticos detalhes que só podem fazer sentido se é destinado para pessoas que não conheciam o lugar de primeira mão, mas também para aqueles que gostariam de confirmar os fatos. É digno de menção o fato de que o relato não é contestado ou colocado em dúvida. Ou seja, de fato, ali as pessoas eram curadas quando o anjo do Senhor agitava as águas. De outra forma, João colocaria alguma coisa como “pois as pessoas acreditavam que… “ mas não é o caso.

É notável a pergunta que Jesus faz a este homem. “Você quer ser curado?

Ou seja, qualquer um que visse um homem paralítico num lugar em que todos sabiam que aconteciam coisas miraculosas suspeitaria que o homem queria ser curado. Pior, João introduziu este longo bloco (que tem seu ápice em 5:42) dizendo que Jesus conhecia o ser humano. Sejamos honestos, o que realmente Jesus estava querendo quando pergunta ao paralítico se queria ser curado? Lido rapidamente parece uma piada de mau gosto uma ironia ou uma tirada de sarro.

Uma leitura um pouco mais demorada nos leva a uma proposta: O poder está em Jesus mas a decisão no homem. Todavia, isto nos cria mais problemas do que soluções.

E eu tenho uma outra pergunta: De entre todos os doentes e inválidos: cegos, mancos e paralíticos, por que Jesus escolhe apenas este e o cura da forma que o curou? Resistirei à tentação de falar favoravelmente da eleição soberana de Deus e me limitarei a dizer que aqui se manifesta a glória de Deus como no capítulo 9

Parece-me que esta passagem é parecida com o cego de nascença. Em particular por ter sido feito o milagre em um sábado, por pôr as pessoas para fazer alguma coisa e porque acaba em uma discussão com os judeus sobre a autoridade de Jesus que leva à conclusão de que Jesus é a vida assim como na outra passagem ele é a vida.

    1. Um mapa dos relatos

Acho importante mapear os eventos. Isso nos pode dar uma perspectiva um pouco mais condensada do que o texto e nos permite analisar o bloco de forma única.

Nicodemos

Mulher

Paralítico

Característica

Fariseu. Bem-visto

Samaritana. Rejeitada

Pária. Quase Invisível

Local

Desconhecido
Monte das Oliveiras?

O poço de Jacó

O tanque de Betesda

Momento

Noite

Meio dia

Sábado

Iniciativa

Nicodemos

A necessidade

Jesus

Proposta

Nascer de novo

Adorar em espírito e em verdade

Levantar-se e andar

Impossibilidades

Velhice

Imoralidade

Paralisia

Estilo de dialogo

Dialético

Sarcástico

Direto

Pessoas alcançadas

Talvez ele mesmo

O povo de Sicar

Judeus

Duração do encontro

Algumas horas

Dois dias

Alguns minutos

    1. Os relatos paralelos

Há alguns relatos que geralmente os tratamos como se fossem desconectados dos relatos principais que encontramos nos capítulos 3, 4 e 5. Proponho que sejam lidos como o autor os colocou, isto é, um seguido do outro mas tendo em vista o que ele quer construir.

Se Nicodemos, a mulher junto ao poço e o paralítico são os relatos mais conhecidos, dificilmente os tratamos como uma unidade. E mais difícil ainda, consideramos os relatos de João o Batista, o Filho do Oficial e os judeus como relatos relacionados com os primeiros e muito menos como parte de uma grande unidade.

    1. João o Batista

A mais fácil e natural de ver é a unidade do capítulo 3. O assunto é o mesmo só que colocado de ponto de vistas diferentes. Tome por exemplo o texto 3:3 “Ninguém pode ver o Reino de Deus, se não nascer de cima5” e o 13 “Ninguém jamais subiu ao céu, a não ser aquele que veio do céu” e agora repare na resposta de João o Batista no 3:27 “Uma pessoa só pode receber o que lhe é dado dos céus” e depois no 3:31 “Aquele que vem do alto está acima de todos

Então, o relato de Nicodemos e o de João Batista estão conectados não pela narrativa em si mesma, mas pelo assunto sendo tratado aqui: O Reino de Deus.

Este reino só pode ser percebido (visto) por quem nasce de novo ou do alto, isto é, pela vontade divina e não pelo ser humano comum. João o Batista (que segundo Mateus tinha por pregação “Mudem de cabeça pois o Reino [que vem] dos céus está perto”) aparece aqui como o dirimidor de uma discussão entre um judeu e os seus discípulos sobre a purificação cerimonial (provavelmente uma referência ao batismo que já era praticado antes de João o Batista) mas João o Batista logo leva o assunto para o Reino que nos é dado de cima. Jesus é o noivo que chega para se casar com sua noiva. Esta noiva está sendo preparada pelos servos entre os quais João o Batista tem uma clara visão do seu próprio lugar.

Se o Batista findasse por ai, não conectaríamos com o Reino, mas vemos claramente que é uma ilustração do Reino por ele (ou o Evangelista) continuar com “Aquele que vem dos céus está acima de todos”. Ou seja, é claro que para ele o noivo e a noiva são só ilustrações palatáveis de um Senhor que chega de longe para tomar posse dos seus domínios.

Todavia, como a visão que eles tinham de reino era a de um tirano irresponsável que atropelava tudo o que achava pela frente, João o Batista propõe duas ilustrações agradáveis: O noivo e o pai.

Seja como for, os dois relatos chegam ao mesmo ponto: Quem não aceita Filho (como enviado do alto pelo Criador) continua condenado (compare 3:16-21 com 3:31-36)

    1. O oficial

No capítulo 4, encontramos a mesma coisa que no capítulo 3. O relato não junta os dois eventos, mas os dois eventos se juntam sob um mesmo assunto: O Reino chega aos não judeus.

Igual que na passagem de João o Batista do capítulo 3, esta passagem é muito rica em si mesma e pode e deve ser tratada como uma unidade tanto na escola bíblica como na vida devocional como nas pregações. Porém, ela tem uma riqueza extraordinária ao colocá-la ao lado da mulher samaritana.

Fica difícil dizer o que era que os judeus mais odiavam, se uma mulher samaritana de vida licenciosa ou a bota do soldado romano. Este rei mencionado no 4:46 é bem provável que seja o mesmo que mandaria mais tarde decapitar João o Batista já que ele era tetrarca de Galileia e Cafarnaum fica na Galileia.

O Reino chega aos que estão permanentemente sob a ira divina.

Este sistema de duas partes (a mulher e o oficial), satisfaz dois propósitos e atinge um imensurável número de pessoas: Primeiro, ele atinge aqueles que gostariam de serem inclusos no reino mas não podem por conta da religiosidade em vigor. Segundo, ele ataca a raiz do problema que são os impedimentos artificiais construídos pelos detentores do pedágio. A falta de fé dos que supostamente estavam ai para demarcar o caminho a Deus os tinha (ou nos tem) embrutecido ao ponto de não mais saberem para que estão no mundo.

A mulher junto ao poço e o oficial, encontram o caminho não por conta do esforço pessoal, mas porque o Reino está atingível a eles também. A fé não tem limites, a religião sim.

1Na realidade o assunto ‘água’ não se termina nunca em João e mereceria todo um estudo separado. À guisa de exemplo, vale mencionar que após o 7 ele está presente na cura do cego de nascença, no lavar dos pés dos discípulos, no lado de Jesus traspassado por uma lança e na última pesca maravilhosa.

2Antropogenia é a ciência que estuda as origens dos seres humanos. Estamos usando a palavra aqui num contexto mais restritos cientes da amplitude do que a palavra original pretende significar.

3A contagem dos primeiros dias de Jesus é interessante pois a fórmula “no dia seguinte” não mais aparece no evangelho a não ser em uma ou outra ocasião separada. Porém aqui, temos uma alta concentração de “no dia seguinte”. Já no 2:1 ele utiliza a fórmula “no terceiro dia”. Então, seria um dia relatado em 1:19-28, outro do 1:29-34, outro do 1:35-42, outro do 1:43 ao 1:51. Se a colocação “no terceiro dia” do 2:1 se refere ao terceiro de dois dias não relatados após o 1:50, dão um total de sete dias. Mas ai já é forçar a barra demais…

4Algumas traduções vão trazer “Não confiava neles” mas se bem essa pode ser a primeira ideia, o certo é que o que João está dizendo é que não “se” confiava a eles. Ou seja, não se entregava como a um amigo da alma.

5NVI vai traduzir “de novo” mas há duas coisas a dizer aqui: Primeiro que segundo me dizem, a melhor forma de traduzir ali é “do alto” Segundo, que Nicodemos interpreta ao longo do diálogo como sendo “de novo

Jesus e a Liberdade

Evangelho de João

Jesus e a Liberdade

João 8:1-9:41

    1. O que é a liberdade?

Para muitos tem a ver com poder fazer o que bem entender. Para outros é poder se esconder tanto ao ponto que não pode ser descoberto o dano feito ou planejado. Ou seja, a liberdade é um bem que se tem ou se compra e que cada vez fica mais caro.

Gostemos ou não, liberdade e caráter são duas faces de uma mesma moeda: faltando uma delas a outra perde valor.

Via de regra, no meio evangélico há os que gostam de misturar o conceito de liberdade com o de liberalidade e libertinagem ao passo que há os que – por falta de liberdade – gostam de vigiar a liberdade alheia.

    1. O texto

Somos cientes de que o capítulo 8 de joão (ou seja os versículos que vão do 7:53 ao 8:11) não fazem parte do texto original, mas entendemos que isso não lhe resta valor até porque o que ali está contido está em consonância com o restante do evangelho, em particular com o de João, se bem que o relato tem mais jeitão de sinótico do que joanino.1

Dito isto, precisamos observar a maravilha destas duas passagens. Há duas pessoas que haviam perdido sua liberdade. Uma por conta do pecado e outra…. bom, oras, é claro que alguém havia pecado, ninguém nasce cego porque sim. Bom, ao menos era o que a sociedade da época pensava e por isso tinha relegado este cego de nascença ao abandono e miséria social e espiritual.

Há aqui duas liberdades: 1) A liberdade de um pecado em particular 2) A liberdade dos efeitos do Pecado em geral.

    1. As pessoas sendo libertadas

A mulher cometia com regularidade o adultério. Tinha-se entregado a este prazer como se um vício fosse. As primeiras vezes ninguém sabia. Depois ficou conhecida, marcada, estigmatizada e não deu mais bola ao seu próprio destino. Este pecado, no início prazeroso e motivante, a havia enjaulado. Parecia livre mas não era. Prestes a ser morta, Jesus a liberta.

Já o jovem nascido cego era vítima não de um pecado em particular. Penso eu que os editores posteriores do evangelho se viram meio como que obrigados a incluir o pedaço do capítulo 8 da mulher adúltera porque a imagem de um ser nascido em trevas e que essas trevas fossem consideradas um fruto do pecado (particular mas desconhecido no caso) pareceria repulsivo aos primeiros leitores não judeus. A inclusão da mulher adultera sendo perdoada antes do cego, por mais repulsiva que a atitude pareça à sociedade do momento (judia, grega e romana) era mais palatável do que a retorcida visão de um Deus injusto e carrasco que se comprazia em descontar nos filhos os erros dos pais.

Este jovem, muito inteligente por sinal, era um segregado social por conta de uma posição teológica correta mas parcial. Dito em termos mais longos: é verdade que toda doença e a própria morte é resultado do Pecado na vida do ser humano; mas não é certo pensar que cada doença e cada morte é fruto de um pecado específico da pessoa ou dos seus pais.

    1. O Pecado e os pecados

Fazemos então uma distinção entre aquilo que é um pecado pessoal e o que é o Pecado como força que opera em toda a criação de forma invasiva.

Esta distinção a mostramos neste escrito utilizando a letra ‘P’ – em maiúscula – ao inicio da palavra Pecado para nos referirmos a esse poder que permeia sistemicamente toda a criação de Deus em maior ou menor medida, ao passo que utilizamos a letra ‘p’ – em minusculas – para nos referir às decisões particulares e pessoais que diferem da vontade de Deus.

Então, se bem no primeiro exemplo há uma liberação de um pecado específico (e com isso uma apertura para a vida) no segundo exemplo há uma liberação da condenação improcedente que os lideres judeus mantinham sobre seu irmão. Em qualquer dos dois casos quem perdia a liberdade era a aberração religiosa à que os dois casos estavam sujeitos. Não é por acaso que os dois blocos são antepostos a diálogos e discursos que tem a ver com liberdade, cegueira, etc.

    1. O discurso de Jesus

Não é correto dizer que há um único discurso nessas duas passagens. Há vários e separados no tempo. Todavia, o discurso ou o grande assunto é o mesmo: Jesus é a Luz do Mundo. Encontramos essa afirmação logo depois do relato da mulher adultera (8:12) e no encontro com o cego de nascença (9:5).

Então, não é errado considerar tudo o que Jesus fala a respeito de si mesmo um único pronunciamento sobre o fato de que Ele é a Luz do Mundo. As outras alocuções são colocadas justamente para reafirmar este fato. No capítulo oito vemos que ele está em pé de igualdade com o criador (8:27) e que é maior que Abraão (8:53-59). Já no capítulo nove observamos que ele se coloca como quem traz a abertura dos olhos espirituais ou aquele que faz o ser humano enxergar (9:39)

Todavia, por trás disso tudo está o velho discurso filosófico da descoberta da verdade. Antes de ser tido por blasfemo (9:59 como consequência ao “EU SOU” que ecoa do 8:27 e do Gênesis) a tentativa é de tratá-lo como mentiroso. Observe por exemplo os versículos 8:13; 40; 44b-46 e 55.

É – em síntese – o grande dilema humano: a descoberta da verdade como coisa objetiva e uma vez descoberta, viver por ela. Os grupos que se antepõem a Jesus, os escribas e os fariseus, levavam a serio a vida espiritual deles. Homem nenhum em sã consciência confia sua vida em uma coisa que sabe ser errada. Ele precisa estar plenamente convicto que aquilo que ele acredita é o correto, ou seja, a verdade. De outra forma, ele passaria a tentar descobrir uma outra verdade, seja por humildade, por desconhecimento, ou por descobrir que aquilo que ele pratica não é a verdade.

Jesus se planta como a luz e – por conseguinte – o discurso dele ou é verdade ou mentira. Não há como ser morno ao respeito disso. Estamos em uma época em que as coisas são relativas e antes desta época as coisas já eram relativas mas não levavam esse nome por não ter Einsten elaborado uma teoria com esse nome. Levamos então essa relatividade subjetiva a campos em que não deveria ser levada. Tanto levamos a sério nossa própria perspectiva das coisas que nos esquecemos que somos uma brisa neste mundo e logo logo passamos.

Nesse ponto então, nossa sociedade pouco se distingue dos fariseus e os escribas. Temos plena convicção das nossas próprias verdades e, como a morte única seguida da ressurreição não podem ser comprovadas cientificamente, acreditamos em qualquer coisa contraria a estas porque – ao final das contas – se não pode ser provado, achamos que é mentira.

É fácil julgar os escribas e fariseus. Difícil é encarar que somos tão cegos e guias de cegos quanto eles. Mas cegos do que? O que é que os fariseus, escribas e pessoas comuns não enxergavam? O que é que a sociedade religiosa e o homem de a pé de hoje não conseguem ver?

    1. Falsas Liberdades e Falsas Prisões

Um outro elo que vemos entre os dois relatos é o da ideia de que um ser humano é livre na medida que peca ao passo que outro que se preserva, está aprisionado. A mulher adultera levada uma vida que por muitos poderia ser invejada. Já a cegueira do homem, não era invejada por ninguém. Nada prendia à mulher, tudo era uma limitação para o cego.

Por outro lado, da mulher nada mais sabemos2. Ela simplesmente some após as palavras de Jesus “Vá embora e não peques mais” Já o cego de nascença se mostrou quase que arrogante quando foi interrogado pelos líderes judeus e humilde ao se ajoelhar perante Jesus. Estava o cego na sua aparente prisão aguardando pelo seu libertador? Poderia a mulher em algum momento da sua aparente liberdade ter tido tempo para pensar em algum libertador?

    1. Falsa visão

Dizem que um bom mestre não é aquele que da as respostas mas sim o que é capaz de provocar mais perguntas. Não é à toa que chamamos Jesus de Mestre. Numa das passagens mais lindas e enigmáticas da escritura ele diz assim “Se fôsseis cegos, não teríeis pecado; mas como agora dizeis: Vemos; por isso o vosso pecado permanece”

Os fariseus que estavam acompanhando Jesus, se sentem atingidos pela colocação “e os que vêm sejam cegos” pois eles achavam que viam e que podiam conduzir os outros. Todavia, externam a opção contraria para que Jesus os inclua na que eles queriam estar. Ou seja, não queriam estar entre aqueles que viam porque segundo as palavras de Jesus se tornariam cegos por conta do seu juízo.

É claro que eles achavam de si mesmos que eram guias de cegos, luz dos que estavam em trevas3. Talvez o camuflavam se fazendo de humildes, mas, no fundo, no fundo, eles achavam que eram os melhores. A sociedade seria pior sem eles. As pessoas se perderiam sem a luz deles.

Jesus conhecia o que havia no coração deles (2:24-25) e por essa razão não entra no joguinho deles e sintetiza todo o problema com a mesma firmeza que os tinha tratado de mentirosos em versículos anteriores: Se vocês fossem cegos, não seriam culpados de pecado; mas agora que dizem que podem ver, a culpa de vocês permanece. Simplesmente fascinante.

    1. Prisão, cegueira, liberdade

A verdadeira prisão do homem é o Pecado. A cegueira é uma consequência do próprio Pecado que se manifesta em aparente liberdade e saber das coisas divinas. Esse sistema de duas partes, torna o homem preso numa ilusão de liberdade que nem ele mesmo consegue enxergar4.

Torna-se, então, necessário um libertador; alguém que puxe o ser humano (cada indivíduo, na realidade) desse calabouço em que ele vive. Mas como?

Se o indivíduo diz que não enxerga, é mentiroso. Se diz que vê o pecado permanece. É o equivalente teológico de se ficar o bicho come, se correr o bicho pega.

Jesus dá a solução, mas não é um remédio agradável para quem vê de fora. Trata-se de uma rendição incondicional. Diz João 8:31 “Se permanecerem firmes, … serão meus discípulos” e acrescenta “e conhecerão a verdade, e a verdade os libertará” Há um processo ali que inicia com uma mudança de cabeça ao crer em Jesus (8:30) mas a liberdade só é alcançada por quem permanece firme na palavra passando pelo estágio de ser discípulo.

O caminho de Cristo não se trata de um caminho de autoconhecimento. Nem sequer é o caminho de descoberta de valores, verdades ou práticas ocultas para os não iniciados. Tampouco é um caminho comunitário em que o objetivo da liberdade se consegue em conjunto.

O caminho de Cristo tem a ver com rendição incondicional e morte espiritual.

Quer ser livre? Renda-se.

1A colocação do 7:53 “Jesus foi para o monte das oliveiras. De madrugada ele voltou ao pátio do Templo” parece se encaixar melhor logo após Lucas 21:38

2Algumas tradições cristãs a identificam com Maria Madalena, mas isso é mera conjectura podendo esta ideia tanto ser aceita como rejeitada

3Romanos 2:17-23

4Recomendo assistir o Show de Truman e Matrix para uma melhor compreensão da ideia de prisão maravilhosa.

Jesus e Pilatos

Evangelho de João

Jesus e Pilatos

João 18:1-19:42

É evidente que esta passagem não trata só de Pilatos e Jesus. Inclui também Pedro, Judas, Malco, João, Maria, Caifás, Anás, os Sacerdotes, Judas, os soldados na cruz, José de Arimateia e Nicodemos entre outros. Todavia, se é para escolhermos as personagens centrais, é de Pilatos e Jesus que se trata.

Num esforço consciente de resgatar certo brilho original ao texto, me é necessário analisar Pilatos não sob o holofote tradicionalmente aceito quase que limitando ele só a um carrasco destinado a satisfazer os desejos e sentenças capitais do sinédrio. Existem, claro, várias formas válidas de conjecturar sobre este assunto, mas o exercício proposto tem por propósito assumir um outro ponto de vista para poder – talvez – resgatar o antes mencionado brilho.

Temos a tendência de condenar todo e qualquer tipo de império. Isso é claro em especial em américa latina por esse complexo de inferioridade social e sempre nos sentirmos menos que o grande país do norte, o assim chamado, império americano. O certo é que se morássemos ao norte do Rio Colorado (divisa dos Estados Unidos com México) pensaríamos diferente.

Brincadeiras à parte, o apelo é para desvencilhar-nos do olhar negativo e pessimista para com o império. A verdade é que o império uma vez estabelecido, ele precisa ter um sistema legal coerente e confiável para que seus súditos (velhos e novos) continuem a produzir e o império ou bem cresça ou pelo menos não encolha. Isso é uma coisa que – se bem não pode ser observada pelo perdedor ou conquistado – é claramente observável em todo e qualquer império. Chega um momento em que certa estabilidade legal é necessária. E é isso que temos no tempo de Jesus.

Roma era nessa época um império jovem. Tinha uma longa tradição como República (509 A.C a 27A.C.) que por sua vez tinha como pano de fundo uma monarquia que se tinha estendido de 753 A.C. até o 509 A.C.

Como império jovem herdeiro de uma república e com um senado ainda forte era mister aos procuradores, governadores e outros representantes oficiais do império se comportarem à altura das circunstâncias que por sinal eram cada vez mais decadentes. Diferente de outros impérios, o romano tinha claro que era mister manter as comunidades em paz (se bem que talvez hoje não chamaríamos de paz o que eles chamavam de paz). Fora delitos que não dissessem respeito ao próprio império e a esta almejada paz, não era do interesse do mesmo se meter em problemas menores. Ai que está a chave necessária para ir formando uma imagem um pouco mais justa do próprio Pilatos.

Quando digo justa, não quero dizer com isso que o próprio Poncio Pilatos fosse justo ou algum ser perfeito ou um governante de caráter ilibado. Historiadores como Filo de Alexandria, Josefo e Tácito o descrevem como alguém que não respeitava limites, brutal, cruel, corrupto, violento, inflexível, duro, sem consideração, enfim, não é a imagem de um governador benevolente nem muito menos.

O início de Pôncio Pilatos em Judeia esteve marcado de provocações, ameaças, ressentimentos e desconfianças por parte do sinédrio em particular e os judeus em geral. Ele chegou à noite e fez os soldados colocarem estandartes com a imagem do imperador de frente para o complexo do templo. Isso afrontava diretamente a crença dos judeus sobre idolatria. Por conta disso eles foram protestar em Cesareia. Durante cinco dias se mantiveram debatendo. Mesmo sob ameaça os representantes do sinédrio não se dobraram. Pilatos só recuou por conta do alto custo político já que estava lá apenas um mês e meio. O restante da permanência dele na região se viu marcado por eventos similares tanto em Judeia como na Samaria que encharcaram de sangue, corrupção e roubalheira sua permanência lá.

Então o que há para resgatar? A pessoa.

O posto que Pôncio Pilatos ocupava era por indicação política. Ou seja, Pilatos estava lá por puro interesse material e para satisfazer os interesses daqueles que lhe haviam indicado para o posto. A paz local era nada mais do que um mal necessário para a manutenção do seu posto. Havia a necessidade de agradar o Sinédrio para dessa forma continuar a poder surrupiar as bens do povo.

Eu tenho, então, algumas perguntas:

  • Por que um homem destes reluta em condenar mais um judeu revoltoso à cruz?

  • Por que ele entra e sai quatro vezes do seu aposento interno onde levou Jesus?

  • Por que ele – segundo a versão de mateus1 – lava as mãos publicamente?

  • O que é essa colocação de “O que é a verdade”?

  • Por que ele fica “com mais medo ainda” quando os judeus com uma religião inferior a seus olhos lhe informam que Jesus se faz igual ao Criador?

Eu tenho uma pergunta que é a síntese dessas: Não era mais fácil simplesmente acatar a decisão do sinédrio, crucificar Jesus agradando dessa forma os líderes judeus? Outras vezes ele tinha afrontado o sinédrio a troco de nada. Por que não simplesmente agradá-lo e boa?

Eu acho que há mais coisas aqui daquilo que temos visto tradicionalmente. E também acho que João é mais refrescante na sua versão do que Mateus, Marcos e Lucas. Penso que isso é assim porque – como o próprio relato nos revela – João tinha acesso de primeira mão à casa do sumo sacerdote2 e ele nos deixa entrever alguns enredos que não vemos nos outros evangelhos por mais que seja justo no relato do juízo, condenação, morte e ressurreição de Jesus em que João mais coincide com o restante dos autores. Parece-me então que João está querendo mostrar – como faz no restante do seu livro – a pessoa de Pôncio Pilatos perante a pessoa de Jesus o Cristo.

    1. Os acontecimentos prévios ao encontro

Local: João coloca o início dos acontecimentos que precipitam a morte de Jesus num horto além do ribeiro de Cedrom3. Esse lugar era conhecido por Judas que após ter recebido a coorte e oficiais de justiça os conduz ali.

Judas e seu estilo de vida: Me provoca a imaginação isso de “após ter recebido” o detalhe é enriquecedor pois nos esquecemos que você só pode receber os outros em algum lugar que é seu. De outro jeito, você se encontra. Com isso podemos conjecturar a vida que o próprio Judas levava. Sabemos de alguns discípulos que abandonaram tudo para seguir Jesus. Dele mesmo sabemos que não tinha lugar onde encostar a cabeça.

A prisão de Jesus: A presença criadora de Jesus se deixa entrever na expressão “eu sou”. Ao dizer isso os guardas (e Judas que estava junto) caíram por terra. “Eu Sou” remete – claramente – à resposta que o criador deu a Moisés no monte Horeb (Êxodo 3:14). A queda dos que o rodeavam pode sim representar alguma coisa desse poder sendo manifestado, mas me parece pairar no ar um certo temor pelo que estava acontecendo. Ao final das contas, eles iam prender um homem muito popular entre o povo, era a páscoa, e os captores bem provavelmente nutriam algum tipo de fé ou admiração por este que não tinha problema nenhum em se encontrar com seus captores.

A reação de Pedro: Malco perde uma orelha (que logo lhe é restituída) no afã de Pedro por defender seu mestre. A imperícia deste marinheiro de primeira viagem no uso da espada, a adrenalina do momento, a escuridão quebrada pelas tochas ou simplesmente uma mistura disso tudo faz com que ele acerte apenas a orelha do servo do sumo sacerdote. Este artigo definido ai dizendo “o servo do sumo sacerdote” bem pode se referir ao único dos servos do sumo sacerdote presentes naquela busca, ou – mais provavelmente – ao servo pessoal do sumo sacerdote que estava ali para cuidar diretamente dos interesses do seu senhor. Seja como for, tanto a notícia da decepação da orelha como sua posterior restituição iam chegar rapidamente ao sumo sacerdote e há uma diferença enorme entre milagres contados por ouvidas de terceiros ou quartos do que por diretamente vinculados.

Anás e Caifás: Ser sacerdote era um negocio de família. Sempre tinha sido e na época de Jesus não era diferente. Caifás que era o sumo sacerdote aquele ano provavelmente não era forte o suficiente como o era seu sogro Anás ou talvez era prudente demais e não convinha ao restante dos lideres que se queriam desfazer de Jesus. Seja como for, mesmo sendo Caifás o responsável, Jesus é levado perante Anás.

João e Pedro: Esta dupla aparece (junto com Tiago) em vários relatos do evangelho. Eles pareciam se identificar, gostar da companhia um do outro e compartilharem algumas das experiências mais bonitas do ministério terreno de Jesus. Nesta ocasião, apenas João e Pedro aparecem. João é o rapaz bem conectado. Ele era conhecido do sumo sacerdote e é por essa razão que os dois conseguem entrar. Reluto em criticar Pedro e sua negação. João era bem conhecido da casa, os outros discípulos tinham caído fora, sobrou para o pescador de sotaque carregado explicar – sob o medo de também correr o mesmo fim do seu mestre – o relacionamento dele com o preso.

1Mateus 27:24

2João 18:16

3http://biblia.com.br/dicionario-biblico/c/cedrom/

Introdução: Jesus e a criação

Evangelho de João

Jesus e a criação

João 1:1-21:25

  1. Razões e propósito

Falar sobre o evangelho de João pode parecer para muitos como chover sobre o molhado. Porém, diferentemente do que possa parecer há um desafio enorme neste evangelho. Dentre esses desafios talvez seja o maior levar o povo a deixar de ver o obvio para passar a ver o transcendental.

Não que o obvio não seja importante. Muito pelo contrário. São as coisas obvias e singelas as que nos trazem as melhores recordações e por consequência, concluímos que são essas as coisas que realmente importam ou perduram. Pensemos nas lembranças mais antigas e lindas que temos e quase, com certeza, é de uma descoberta que conseguimos capturar, de um abraço de um amigo, do sorriso de um filho, enfim…

Quando o conhecido teólogo Karl Barth – já famoso na Europa e tendo escrito vários livros – visitou por única vez os Estados Unidos, os repórteres lhe pediram que resumisse sua teologia. Ele respondeu “Sim, Cristo me ama

É claro que se uma pessoa no seu estado mais natural (se é que isso é possível) consegue chegar à conclusão que Cristo lhe ama e passa a viver sua vida norteada por isso, nada mais lhe é necessário pois todo o desassossego humano finda quando este acha o amor de Cristo.

Repetir a frase “Cristo me ama” sem o conteúdo apropriado é não se atentar para o que uma frase tão curta de fato significa; é simplificar a observação do espaço a dizer “pois é, ele é bonito”; é se tornar simplista para justificar a falta de interesse na profundidade de uma fala dessas.

A proposta, então, é sair do obvio. Não para descobrir nada novo, mas talvez para ver que aquilo que parece tão obvio, não é obvio assim e há um sem-fim de matizes1 que só enriquecem nossa visão.

Então como enfrentar o desafio? Bom, para início de conversa, rearranjei o material que João nos entrega no evangelho dele. A ideia é olhar para o mesmo evangelho de sempre mas ao agrupá-lo de forma diferente, ganhar perspectiva. Sei que isso por um lado nos aproximará de algumas coisas mas também nos empanhará outras visões. É mais ou menos como ficar muito perto de um dos alto-falantes em um sistema surround 5.1: necessariamente perderemos de foco o todo da obra.

A seguinte tabela é um resumo ordenado desse rearranjo proposto para esta leitura. Pretendemos percorrer esses oito tópicos rapidamente à velocidade de um por semana para depois voltarmos sobre eles mais detidamente.

Título

Início

Fim

Jesus e a Água

1

2

Jesus e as Pessoas

3

5

Jesus e as Essencialidades

6

7

Jesus e a Liberdade

8

9

Jesus

10

Jesus e a Morte

11

12

Jesus e a Igreja

13

17

Jesus e Pilatos

18

19

Jesus e Pedro

20

21

Esta, obviamente, é apenas umas das formas de rearranjar o material tendo em vistas um vóo rápido.

  1. Jesus e a criação

O

Portanto, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram.
Romanos 5:12

Porque, como pela desobediência de um só homem, muitos foram feitos pecadores, assim pela obediência de um muitos serão feitos justos.
Romanos 5:19

evangelho de João começa com um paralelo notório com a descrição da criação do livro do Gênesis. Assim como o arco-íris após o dilúvio é um sinal de um pacto da parte de Deus para com o homem, assim o vinho após a água transformada é um sinal de um novo pacto da parte de Deus para com sua criatura. Da mesma forma em que a escolha de Adão tentando encontrar uma outra vida conduziu a raça à morte, assim a escolha de Cristo – o novo Adão – conduz a raça à vida, paradoxalmente, por meio de sua própria morte.

Analisar, então, o evangelho de João à luz da perspectiva do relacionamento entre Jesus o Cristo e a criação nos deve levar a certas conjecturas e análises que não o faríamos desde o ponto meramente evangélico por dizê-lo de alguma maneira.

      1. Jesus e a água

Um dos elementos símbolos que aparecem em repetidas ocasiões em João e que nos remete à criação, é a água. À guisa de exemplo, podemos mencionar que o termo água aparece 24 vezes em João ao passo que unicamente 6 em Marcos, 13 em Lucas e 14 em Mateus. Em nenhuma ocasião o termo água é utilizado nos outros evangelhos como símbolo mas sempre como descrição do elemento material em alguma parábola ou relato.

Assim por exemplo, encontramos os relatos dos demônios que foram aos porcos e se afogaram, ou quando Jesus anda sobre as águas, ou quando é batizado ou quando o defunto quer que Lázaro umedeça o dedo e lhe alivie o tormento, ou quando a criança é lançada no fogo ou na água pelo demônio.

Já em João, a água é símbolo de tudo o que está relacionado com a vida e a morte. Está no batismo de arrependimento de pecados de João (pelo qual também Jesus passou mas com significado diferente: a justiça), no milagre da transformação da água em vinho (que é melhor que o anterior), na prosa com Nicodemos como mais um dos requisitos para entrar no reino dos céus (junto com o Espirito), na impossibilidade de sarar o paralítico (mas sim a muitos outros), na proposta de vida oferecida para a mulher samaritana (mas ironizada por ela), nos rios de águas torrentosas que simbolizam o Espirito Santo na presença de quem crê (com o qual a vida se transmite a outros), e brotando do lado de Jesus junto com sangue na sua morte (com o qual não havia necessidade de quebrar-lhe as pernas e se cumpria a profecia).

Enfim, ler João e achar que água é só água, é perda de tempo e sem querer criar clichês, os dois primeiros capítulos de João estão tão cheios de água que é impossível não chamar o evangelho de refrescante e mais se levamos em consideração a terra seca e ruas empoeiradas dos primeiros leitores.

      1. Jesus e as Pessoas

Mas não só de água está constituído nosso estudo. Tanto no Gênesis como e João a água vem antes do ser humano. Esta antropogenia2 bíblica encontra certos ecos em algumas teorias científicas mas não é da nossa alçada entrar nesses relacionamentos e simplesmente ver que uma coisa vem antes do que a outra.

O foco aqui são as pessoas. João reduz o amplo conjunto de seres humanos a três grandes relatos mas que quando contabilizados os outros menores dá um total de seis. Os grandes são os que sempre lembramos: Nicodemos, a Mulher junto ao poço e o Paralítico. Os três relatos menores (mas não menos importantes) são o de João Batista, o filho do oficial e os judeus em geral.

As pessoas e não as ideias são a coisa mais prezada para o Criador. Todavia, as ideias – isto é o que as pessoas pensam, imaginam, sonham – delimitam a vida de cada indivíduo e a inter-relação entre esses indivíduos conforma a sociedade que por sua vez permeia o indivíduo.

As pessoas que João escolhe são variadas. Todas elas têm seu reduto no qual são aceitos e admirados, todas elas carregam o tormento de não serem aceitas por um certo grupo de pessoas pelas que gostariam de serem aceitos, todas tem dúvidas, todas tem certezas e todos são (aparentemente) muito diferentes entre si.

João é um mestre ao colocar uma balança não de dois mas sim de três pratos em cada um dos seus relatos. Por exemplo, Nicodemos tem em João o Batista seu contrário em muitos aspectos mas só em Jesus as águas espirituais do novo nascimento e o batismo de arrependimento e introdução ao reino acham sua concretização. Resumindo, ficamos com uma visão muito simplificada se pegamos só um dos relatos ou se consideramos só dois dos seus personagens. Três relatos principais, três relatos secundários, três grandes personagens em cada um deles. Não me parece o acaso.

      1. Jesus e as Essencialidades

O que é essencial para a vida? A comida? A água? O pão? Jesus? As festas?

Há dois elementos que aparecem nas duas partes do bloco: A água e o pão. A personagem em cada um dos blocos é distinta e a mesma em certo sentido: o povo que busca e o povo que rejeita.

É muito interessante a estrutura que João nos propõe: Criação, Pessoas, Perguntas. Claro, como de costume, neste bloco há outros grandes assuntos entremeados. Temos por exemplo a economia do reino, os milagres, a família de Jesus, o povo… enfim, uma riqueza quase infindável. Me parece, porém, que há um fio condutor nesses capítulos seis e sete. A pergunta que junta temas, relatos e ilustrações tão diversas, é o seguinte: O que é essencial para a vida? Se já respondemos que a vida é uma criação de Deus, se já dizemos que as pessoas são realmente mais importantes do que as ideologias, o que é que sobra se tirarmos as antíteses das coisas expostas?

Parece-me que o medo às perguntas mais básicas é o que nos leva a revestir a existência de perguntas aparentemente reais. Com isso, ficamos às voltas com problemas imaginários ao passo que o realmente essencial se nos escapa. João propõe o seguinte: Criação → Pessoas → O Que é essencial?

Este bloco pode por sua vez ser dividido em duas partes: Essencialidade Geral, Essencialidade Particular. Enquanto o capítulo seis fala da multidão e do povo que procura por Jesus, o capítulo sete fala da família terrena de Jesus, do Povo Judeu em sua festa mais importante, da primeira tentativa de prender Jesus e dos líderes judaicos que não creem.

Por sua vez, a proposta de Jesus em qualquer uma das perspectivas é a mesma: Jesus é a essência da Vida. No seis ele é o Pão da Vida e no sete ele é a Água Viva. Dito em outras palavras, não interessa se você é parte da plebe (o problema de quem está na elite) ou parte da elite (o problema de quem é massa) a essência da sua vida se encontra em Jesus e for a dele o que você tem não é vida.

      1. Jesus e a Liberdade

O que é a liberdade?

Para muitos tem a ver com poder fazer o que bem entender. Para outros é poder se esconder tanto ao ponto que não pode ser descoberto o dano feito ou planejado. Ou seja, a liberdade é um bem que se tem ou se compra e que cada vez fica mais caro.

Gostemos ou não, liberdade e caráter são duas faces de uma mesma moeda: faltando uma delas a outra perde valor.

Via de regra, no meio evangélico há os que gostam de misturar o conceito de liberdade com o de liberalidade e libertinagem ao passo que há os que – por falta de liberdade – gostam de vigiar a liberdade alheia.

Somos cientes de que o capítulo 8 de joão (pelo menos os versículos que vão do 7:53 ao 8:11) não fazem parte do texto original, mas entendemos que isso não lhe resta valor até porque o que ali está contido está em consonância com o restante do evangelho, em particular com o de João.

Dito isto, precisamos observar a maravilha destas duas passagens. Há duas pessoas que haviam perdido sua liberdade. Uma por conta do pecado e outra…. bom, oras, é claro que alguém havia pecado, ninguém nasce cego porque sim. Bom, ao menos era o que a sociedade da época pensava e por isso tinha relegado este cego de nascença ao abandono e miséria social e espiritual.

Há aqui duas liberdades: 1) A liberdade de um pecado em particular 2) A liberdade dos efeitos do Pecado em geral.

A mulher cometia com regularidade o adultério. Tinha-se entregado a este prazer como se um vício fosse. As primeiras vezes ninguém sabia. Depois ficou conhecida, marcada, estigmatizada e não deu mais bola ao seu próprio destino. Este pecado, no início prazeroso e motivante, a havia enjaulado. Parecia livre mas não era. Prestes a morrer, Jesus a liberta.

Já o jovem nascido cego era vítima não de um pecado em particular. Penso eu que os editores posteriores do evangelho se viram meio como que obrigados a incluir o pedaço do capítulo 8 da mulher adúltera porque a imagem de um ser nascido em trevas e que essas trevas fossem consideradas um fruto do pecado (particular mas desconhecido no caso) pareceria repulsivo aos primeiros leitores não judeus. A inclusão da mulher adultera sendo perdoada antes do cego, por mais repulsiva que a atitude pareça à sociedade do momento (judia, grega e romana) era mais palatável do que a retorcida visão de um Deus injusto e carrasco que se comprazia em descontar nos filhos os erros dos pais.

Este jovem, muito inteligente por sinal, era um segregado social por conta de uma posição teológica correta mas parcial. Dito em termos mais longos: é verdade que toda doença e a própria morte é resultado do Pecado na vida do ser humano; mas não é certo pensar que cada doença e cada morte é fruto de um pecado específico da pessoa ou dos seus pais. É essa a distinção que fazemos ao utilizar a letra ‘P’ – em maiúscula – ao inicio da palavra Pecado para nos referirmos a esse poder que permeia sistemicamente toda a criação de Deus em maior ou menor medida, ao passo que utilizamos a letra ‘p’ – em minusculas – para nos referir às decisões particulares e pessoais que diferem da vontade de Deus.

Então, se bem no primeiro exemplo há uma liberação de um pecado específico (e com isso uma apertura para a vida) no segundo exemplo há uma liberação da condenação improcedente que os lideres judeus mantinham sobre seu irmão. Em qualquer dos dois casos quem perdia a liberdade era a aberração religiosa à que os dois casos estavam sujeitos. Não é por acaso que os dois blocos são antepostos a diálogos e discursos que tem a ver com liberdade, cegueira, etc.

      1. Jesus

Quem é Jesus ao final de contas? Como ele se definia a si mesmo?

No Evangelho de João encontramos várias vezes Jesus se definindo a partir do testemunho. Há por exemplo a referência pelo oposto de João 5:31: Se eu testifico de mim mesmo, o meu testemunho não é verdadeiro. Ou também o positivamente como em João 5:32 Há outro que testifica de mim, e sei que o testemunho que ele dá de mim é verdadeiro. Ou ainda aquele que é considerado herético por parte dos Judeus tanto da época como agora João 8:18: Eu sou o que testifico de mim mesmo, e de mim testifica também o Pai que me enviou.

Diferentemente de outras versões do evangelho, a de João não utiliza muito a expressão “Filho do Homem” para Jesus se referir a sim mesmo. A ênfase joanina não é da humanidade do Cristo nem tampouco da divindade deste e nem sequer fica a meio caminho. A ênfase é mostrar um ser enviado por Deus para resgatar sua criação (não só seu povo). Este ser é divino (por isso se igualava com o criador e era tido por blasfemo) mas também era humano e por isso capaz de morrer na cruz. Dai que a autodefinição que Jesus faz por um lado está espalhada em todo o escrito de João por via dos testemunhos (e isso também se vê nas cartas) e das palavras chaves “eu sou” mas encontra grande concentração de declaração de propósito e rejeição por parte dos ouvintes no capítulo 10.

Podemos então dividir o capítulo 10 em duas grandes partes: O discurso de Jesus e a reação dos Judeus. Por mais que estes eventos estão espaçados no tempo, vemos que estão vinculados por conta da referência que encontramos na segunda parte à primeira.

O versículo 6 nos indica que não entenderam o que Jesus estava querendo dizer com a comparação entre o pastor e o assaltante dos v 1 ao 5. Por isso Jesus destrincha a ideia com duas outras ilustrações que resultaram tão clara para os ouvintes que queriam linchá-lo.

Então, João 10:1-5 é igual em conteúdo a João 10:7-18 que por sua vez, encontra clara referência em João 10:25-30 o que leva aos ouvintes a pegarem pedras pois desta vez tinham entendido direitinho que estavam sendo chamados de ladrões, bandidos, cabritos, lobos trajados de ovelhas e basicamente incrédulos insensatos (10:37-38)

Com esta estrutura em mente, fica obvio de porque esta sessão, a meu ver, define Jesus em perspectiva da criação e em termos que até um cego espiritual consegue enxergar. Não se iluda o leitor pensando que as pessoas que não creem em Jesus o fazem por não entendê-lo. Não creem porque entendem na alma o princípio da soberania do criador sobre a criatura e se rebelam contra isto que lhes resulta – ao seu ver – pouco vantajoso.

Então, quem é Jesus? Bom, sintetizando suas palavras: ele é o tudo. Ele é a porta do aprisco e o bom pastor. De qual aprisco? Deste no qual o leitor se encontra e do outro no qual o leitor não ousaria entrar pois tanto este quanto o outro contêm ovelhas que pertencem ao bom pastor.

      1. Jesus e a morte

Enquanto estamos vivos nos achamos grande coisa. Mesmo até quem tem que mexer com cadáveres, se acha grande coisa. Porém, quando a morte bate de pertinho, entendemos nossa própria grande limitação.

Caminhamos para a morte. É inevitável. Por conta do nosso espírito ser eterno, nos achamos com capacidade de realização eterna. Provar isso é bastante simples: observe os mais idosos, repare que eles tem sonhos como se ainda tivessem 30, 50, 70 anos de vida por diante.

A morte é a última grande consequência nesta terra da entrada do Pecado3 no mundo. A limitação da vida é um corolário das nossas próprias decisões irreversíveis como raça. Escolhemos – como raça – nos parecermos com o Criador e por isso nos distinguimos ainda mais. É uma ironia fatal (sem ironias).

Assim como o cego de nascença não tinha escolhido ser cego mas a cegueira era um fruto do Pecado (e o apedrejamento era o curso socio-legal do pecado de adultério mesmo que a adultera não teria escolhido essa consequência) assim também não escolhemos ter vida perecível.

O que faz o criador? Se respeita plenamente a decisão do Homem4 e o deixa seguir seu próprio rumo sem intervir, ele mesmo se torna irresponsável pela sua própria criação. Se ele intervêm na marra e lhe impõe suas decisões, o Homem o poderia – com justiça – acusar de injusto, intervencionista e por ai vai. Isso por só elencar um par de opções simplificantes.

O pior é que o inimigo da criação (que transformamos em príncipe deste mundo pelas nossas decisões livres como raça lá no Éden) ficaria impune. Por mais que o que ele fez foi plenamente legal (pois escolhemos no pleno uso da nossa liberdade), é imoral e por tanto alguma forma de tirá-lo do poder deve de existir. Ao mesmo tempo, Deus é justo, ou seja, ele não poderia enganar a humanidade como o príncipe deste mundofez.

A morte de Jesus na cruz tem várias consequências muitas delas imensuráveis desde nossa perspectiva de criaturas sujeitas a este mundo material. A síntese deste assunto está em João 12:31 e 32: Agora, é o juízo deste mundo; agora, será expulso o príncipe deste mundo; e eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim. O ápice da história não é o nascimento do Cristo numa manjedoura e sim a morte do mesmo na cruz. É a morte e não a ressurreição do Cristo o que destrona o príncipe deste mundo. A legalidade da morte foi eliminada por ter morrido o único ser humano justo e com isso o Criador readquire os seus direitos sobre o ser humano e sua existência eterna.

Quando Jesus trata com Marta sobre a morte do Lazaro, a fé de Marta (muitas vezes criticada por preferir os afazeres da casa do que estar com o mestre) é exposta assim como sua dor na frase recolhida em João 11:24 “Eu sei que ele vai ressuscitar na ressurreição, no último dia”. Isso refletia talvez a classe social à que Marta, Maria e Lazaro pertenciam (Bethania significa casa dos pobres) e quase que por conseguinte a linha doutrinaria e politica à que pertenciam: os fariseus. Isso porque os fariseus eram mais povão que os saduceus e acreditavam na ressurreição. Mas também refletiria algum ensinamento prévio dado por Jesus; mas ai estaríamos especulando ainda mais, já que não há registro específico disso.

Seja como for perante a morte do seu amigo Lazaro, Jesus expõe seus sentimentos e também seu poder. Este homem é o que dizia que podia perdoar pecados e se bem haviam controvérsias sobre se o homem podia ou não perdoar outro homem o que não haviam dúvidas era que ninguém poderia ressuscitar mortos. Em João não temos a frase “Qual é mais fácil? dizer: Os teus pecados te são perdoados; ou dizer: Levanta-te, e anda?” como em Lucas 5:23 porém a proposta é a mesma: Los capítulos 8 e 9 falam do perdão de pecados, o 10 fala de Jesus e seu rebanho e o 11 e 12 falam do poder de Jesus sobre a morte.

1Matiz: s.m. Diferentes tons por que passa uma mesma cor.
Fig. Leve diferença entre coisas do mesmo gênero: matizes de opinião.

2Antropogenia é a ciência que estuda as origens dos seres humanos. Estamos usando a palavra aqui num contexto mais restritos cientes da amplitude do que a palavra original pretende significar.

3Já combinamos anteriormente chamar de Pecado com ‘P’ maiúscula àquele poder que permeia toda a criação desde a escolha de Adão e Eva e chamar de pecado com ‘p’ minuscula às decisões particulares contrarias à vontade divina seja por ação, omissão ou pensamento.

4Novamente Homem (com ‘H’ maiuscula) indica a raça, ao passo que um indivíduo o representaremos com ‘h’ minuscula.